/Como tudo começou
Ainda que todos os dias sejam ruins, ainda que todos os dias sejam chuvosos e tempestuosos… tudo parece melhor quando estamos juntos.
Ela é tudo de ruim que uma pessoa pode ser, mas, de alguma forma, é tudo o que me faz bem.
Eu e a Syara — sempre fomos só nós contra o mundo.
Conhecemo-nos desde que nascemos. Não somos irmãos, nem parentes, mas as nossas famílias sempre foram amigas. Eu sou seis anos mais velho, então sempre foi minha responsabilidade cuidar dela. Mesmo estudando em escolas diferentes, eu ia buscá-la todos os dias.
Para os nossos pais, éramos inseparáveis, quase irmãos. Mas eu… nunca a vi assim.
E confesso que, às vezes, tive vontade de matá-la — por cada confusão que me meteu.
Ainda assim, era impossível não rir, mesmo irritado. E quando eu tentava revidar, ela sempre dava um jeito de parecer a vítima. No fim, eu levava a bronca.
Filhos únicos de casais amigos. Jantares de família, aniversários, feriados… sempre juntos. Sempre.
Até que fui para a universidade, e o “sempre” começou a diminuir.
— Estou aborrecida! Que tal se fizermos alguma coisa? — disse ela, sentando-se na beira da minha cama com aquele brilho travesso nos olhos.
— Nem pense nisso. Não pode simplesmente ficar quieta?
— Nollan! — choramingou.
— Pronto. O que você quer agora? Me passa a garrafa de água, por favor — apontei para a mesa de estudos.
— Toma! — respondeu, estendendo-me a garrafa com um sorriso sinistro.
Olhei para ela, desconfiado.
— O que é que você colocou nessa água?
— Nada! — disse, dando dois passos para trás.
— Está com um ar suspeito, Syara… seja lá o que for, não tem graça.
Ela abaixou a cabeça, e um sorriso lateral, perverso, desenhou-se nos lábios.
— Você está com medo de mim? — perguntou, levantando o olhar devagar.
Suspirei.
— Por tua culpa, meus pais acham que eu uso drogas!
Há dois meses, ela bateu o meu carro novo no muro do vizinho. Adivinha quem levou a culpa?
E, há uma semana, ela me dopou num jantar de família — agora todos pensam que eu sou um drogado.
— Me erra, Syara! — resmunguei.
— Ai, não seja exagerado. Aquele jantar estava um tédio — respondeu mexendo na minha prateleira de livros. — Precisávamos animar as coisas.
— Animar? Você quase acabou com a minha vida social!
— Mas você sabe como animar a noite — provocou, rindo.
Olhei-a de lado.
— Sua psicopata maníaca.
— Você me adora assim mesmo, e sabe disso — respondeu, doce, distraída entre os meus livros.
— Esse teu rostinho de inocente sempre te salva — brinquei, segurando suas bochechas.
— Então! Vamos sair? — perguntou, empolgada outra vez.
— Eu não quero.
— Mas eu quero!
— Tenho prova amanhã — falei, fechando o caderno.
— Eu não! Por favor, vamos! — pulava na cama, implorando.
— Não, Syara. Tenho uma viagem daqui a dois dias.
— Tia Rose! — gritou de repente — O Nollan não quer sair comigo!
— Nollan! — a voz da minha mãe ecoou da sala.
Suspirei.
— Um dia, eu mato você.
— Não se eu te matar primeiro — sussurrou.
Fiquei paralisado por um instante.
— Como é que é? — perguntei.
— Nada não — respondeu com um sorriso forçado.
E, mais uma vez, cedi aos caprichos da menina Syara.
Chegamos.
Parei o carro e tirei a mudança.
— Isso vai ser divertido! — disse ela, saindo animada.
— Hey! Espera! Toma cuidado, garota.
— Vem logo! Isso vai ser incrível!
Corremos pelo caminho até o penhasco. O vento batia forte, uivando entre as pedras. A terra cheirava a umidade, o som distante do mar subia das profundezas. O horizonte se tingia em tons de cobre e cinza — o tipo de beleza que só o perigo sabe ter.
A vista era linda… e assustadora. Foi aí que percebi a verdadeira intenção dela.
— Estás pronto? — perguntou.
— Você enlouqueceu, Syara. — respondi, olhando para o abismo à frente.
Aquele penhasco era proibido — e por boas razões. Bastava um passo em falso para desaparecer.
— Não me chama assim. Já tenho quase dezoito anos — disse, caminhando até a beira.
— Nós não devíamos estar aqui. Isso é perigoso — tentei me segurar em uma pedra solta.
— Então por que veio? — perguntou, parando e virando-se para mim.
— Eu não sei. É automático. Onde você vai, eu vou junto.
Ela sorriu.
— Não se mexe muito. Se não tomar cuidado, você cai. Estamos quase chegando. Mas, seja o que for, não salta ainda.
— Quem seria idiota o bastante pra saltar daqui? — fiz uma pausa. — Espera… você disse ainda?
Syara me olhou com aquele olhar suspeito.
— Está pronto?
— Syara, isso é perigoso — repeti, sentindo o vento empurrar meus ombros.
— É só não olhar pra baixo — respondeu, e então deu dois passos para frente.
— Syara! — gritei.
Ela riu, girou o corpo para trás e gritou contra o vento:
— É super tranquilo!
E antes que eu pudesse correr até ela…
Syara saltou.