5 anos depois
Alice Giordano Não sou o tipo de pessoa que teve a sorte ao seu lado. Na verdade, posso dizer com certeza que a sorte nunca me notou. Quando perdi minha mãe, aos vinte e sete anos, fui descartada pelo meu próprio pai como se eu fosse um fardo - enviada para um convento, longe dos olhos dele, longe da sua frieza. E foi lá, entre freiras e orações, que vivi os dias mais felizes da minha vida. A fé era meu alívio. Rezava com fervor, pedindo um futuro melhor, um pai que me amasse, uma vida que não doesse tanto. Mas Deus, talvez ocupado com promessas maiores, me entregou um destino ainda mais cruel. Numa noite fria e encharcada de chuva, Luca Giordano apareceu no convento. Irrompeu pelas portas sagradas com a arrogância de sempre, e me levou com ele - quase à força - para um país desconhecido, com promessas que eu sabia que nunca seriam cumpridas. Polônia. Terra onde minha mãe nasceu, junto da mãe dele. Nada fazia sentido. Ele parecia paranoico, agressivo, mais sombrio do que eu lembrava. Abandonou a vinícola, a única coisa que amava de verdade, e nos instalou numa casa minúscula em Varsóvia. Dois quartos apertados, uma sala triste e uma cozinha onde mal cabiam dois pratos. E o pior: um silêncio constante, como se o medo morasse conosco. Ainda assim, encontrei algo aqui. Varsóvia era viva, cheia de gente, de culturas, de vozes diferentes. Apaixonei-me pelas línguas e sonhei, pela primeira vez, em ser tradutora. Trabalhar com idiomas, me comunicar com o mundo. Mas Luca - meu carcereiro - sempre deixava claro: minha vida já estava escrita. E não era ele quem tinha escrito, mas séculos de homens que achavam que sabiam o lugar de uma mulher. Eu achava que já o odiava o suficiente. Até descobrir a verdade. Minha tia Sara, irmã da minha mãe, foi quem me contou. Ela morava aqui em Varsóvia e nos ajudou como pôde nos últimos cinco anos. Um dia, com os olhos pesados e a voz trêmula, me revelou o motivo da nossa fuga. O motivo pelo qual meu pai vivia se escondendo. Ele havia matado a família Mancini inteira. Todos. Por vingança. Por orgulho. Eu quis não acreditar. Mesmo com todo o desprezo que sentia por ele, me agarrava à ideia de que, ao menos, tinha algum resquício de caráter. Mas não. Meu pai era um assassino. Um fugitivo. Um monstro. A história fez tudo se encaixar: o nome falso, o pavor de sair de casa, o ódio do mundo lá fora. E como se o destino achasse que isso não era o bastante, jogou mais uma sombra sobre mim: Oton Nowak. Outro carrasco. Mais velho, muito mais rico, e obcecado por mim. Dizia que me amava, que queria se casar. Eu só via um homem com olhos de predador. E meu pai, como o miserável que era, me vendeu a ele. Sim. Vendeu. Oton pagou uma quantia absurda. E hoje seria o meu casamento. Quando ouvi a negociação, quase desmaiei. Chorei como nunca antes. Chorei até o corpo doer, até faltar ar. Nunca me senti tão sozinha, tão sem saída. Mas minhas preces, dessa vez, não foram ignoradas. Deus ouviu. E me deu um milagre. Minha tia Sara comprou uma passagem para Londres. Uma chance. Um recomeço. Eu ficaria na casa de uma amiga de infância dela. Não conhecia ninguém, mas sabia o idioma. Estava disposta a fazer qualquer trabalho, qualquer sacrifício, para me manter longe daquele pesadelo. Era loucura fugir? Claro que era. Mas melhor morrer tentando do que viver como propriedade de um homem que me via como carne em exposição. Que Deus me perdoe, mas desejei que Oton tivesse um infarto no altar. Depois, me senti tão culpada por esse pensamento que prometi rezar mais 500 ave-marias pela minha alma. Sara era tudo que me restava. Desde que cheguei à Polônia, ela me tratou como filha. E agora, arriscava tudo por mim. - Tia... eu não queria te envolver nisso - sussurrei, sentindo a ansiedade apertar o peito. - Mas você é a única pessoa que me resta. Eu não posso me casar com aquele homem. Prefiro voltar para o convento e viver o resto da vida em silêncio do que me prender a esse horror. Ela me abraçou com força, como se tentasse me proteger do mundo inteiro. - Não diga isso, Alice. Você é inteligente, determinada... vai conseguir um emprego, vai ser livre - disse com um carinho que me fez chorar de novo. - Seu pai está com medo. Ele é um fugitivo. Não vai fazer nada arriscado. E Oton... bom, ele vai ficar furioso. Por isso, evite os holofotes. Ri com um nó na garganta. Eu odiava holofotes. Fugiria deles mesmo se minha vida não estivesse em risco. - Isso não será um problema - sorri com tristeza, me afastando, olhando pela última vez para a mulher que me salvou. - Vou sentir sua falta. - Eu também, querida. Mas não temos tempo. Ele virá te buscar em breve. Você precisa estar longe antes disso. - Você tem certeza que vai ficar bem com...? - Vá, Alice! - interrompeu com firmeza. - Antes que seja tarde demais. Eu cuido do seu pai. Ela me deu um beijo na testa, e então corri. O táxi já me esperava. O plano era simples: Luca acordava às nove. Meu voo partia às oito. Tudo cronometrado. Nada podia dar errado. O medo me acompanhava. Mas havia também uma centelha de coragem - frágil, sim, mas viva. As irmãs do convento costumavam dizer que o mundo não era o inimigo... os homens maus, sim. Mas eu me sentia tão ingênua. Tão despreparada. Como distinguir os bons dos maus, se passei a vida inteira sob as rédeas de um monstro? Eu não sabia. Mas, dessa vez... eu ia descobrir. Encostei a cabeça no banco do carro e fechei os olhos, tentando silenciar o turbilhão dentro de mim. A estrada seguia em frente, mas minha mente corria em círculos. Londres. Uma cidade imensa, rica, lotada de pessoas que eu nunca vi, com histórias que eu jamais conhecerei. E em meio a tudo isso... eu. Sozinha. O coração batia forte no peito, mais por medo do que por excitação. Pela primeira vez na vida, eu estava indo para algum lugar sem que meu pai soubesse. Sem ser vigiada, controlada, limitada. Era a liberdade que eu tanto pedi a Deus... e agora que ela finalmente chegava, parecia assustadora demais para ser real. Nunca trabalhei. Nunca tive um lar que fosse só meu. Nunca estive em um espaço onde pudesse respirar sem olhar por cima do ombro. Meu mundo sempre foi feito de muros invisíveis, de ordens ditadas com voz de aço, de promessas que pareciam castigos. E agora, a única certeza que me acompanhava era o desconhecido. Será que eu estava fazendo a coisa certa? E se tudo isso fosse um erro? Talvez eu estivesse apenas trocando uma prisão por outra. Talvez a liberdade fosse mais cruel do que o cativeiro, porque ela exigia coragem - algo que eu ainda não tinha certeza se possuía. Mas entre o medo do novo e a certeza do inferno que deixava para trás, decidi me apegar à esperança. Mesmo que ela ainda fosse só um sussurro no meio do caos.AliceNão precisei sequer colocar os pés para fora do aeroporto para sentir que aquele lugar representava o meu futuro, a minha salvação. Não importava o quanto fosse difícil - eu enfrentaria qualquer obstáculo só para ficar ali, longe do destino que Luca havia traçado para mim.Eu deveria pegar o táxi que me levaria até a casa da amiga da minha tia, mas preferi ser cautelosa. Conheço muito bem o meu pai. Se ele arrancasse qualquer informação da Sara, eu estaria de volta à Polônia antes do sol nascer.Luca era um assassino. E só por isso, o medo de ele descobrir que Sara me ajudou me corroía por dentro. Não acreditava que ele chegaria ao ponto de matá-la - afinal, estava em um país onde não confiava em ninguém além de si mesmo -, mas não podia contar com a sorte.Minha tia havia juntado, com muito esforço, uma quantia razoável. Mesmo contra minha vontade, ela me entregou esse dinheiro antes da minha partida. Partir sem ela já havia sido doloroso o suficiente. Sair levando o que ela ju
Alice GiordanoNão era tão tarde quando chegamos ao apartamento de Julia. Ela me mostrou todos os cômodos e deixou claro que eu podia mexer em tudo - exceto no que estava dentro de seu quarto, o que era bastante óbvio.Ainda custava a acreditar no que estava acontecendo comigo. Nunca imaginei que um dia estaria em Londres, cursando Literatura, com a chance real de viver aqui - desde que conseguisse um emprego fixo. Esse era o meu objetivo agora.Jamais voltaria para a Polônia. E, sinceramente, acho que nem para Alessandria eu poderia voltar - tudo por causa do meu pai. Depois do que Sara me contou, passei a temê-lo ainda mais. Um homem capaz de matar uma família inteira e, além disso, vender a própria filha para um desconhecido, era capaz de qualquer coisa.Mais uma vez, minha consciência gritava, lembrando que minha tia ainda estava perto demais daquele homem. E isso me apavorava.Liguei para ela assim que me sentei na minha nova cama, deixando a mala para desfazer depois. Julia tinh
Alice GiordanoAinda não era tão tarde quando chegamos ao apartamento de Julia. Assim que cruzamos a porta, ela fez questão de me mostrar cada cômodo - a cozinha compacta, mas moderna, a sala com um sofá aconchegante e algumas plantas que davam vida ao ambiente, e o banheiro de azulejos claros. Ao final, apontou para o seu quarto e disse, com um sorriso leve, mas firme:- Pode se sentir em casa, mexa em tudo que precisar... menos aqui. - disse, referindo-se ao próprio quarto.Era compreensível. Um limite que eu respeitaria sem questionar.Enquanto caminhava pelo apartamento, ainda tentava acreditar que tudo aquilo estava mesmo acontecendo comigo. Londres. Eu, em Londres. Nunca imaginei que estaria nessa cidade, prestes a cursar Literatura, com a possibilidade real de construir uma vida aqui - desde que conseguisse um emprego fixo. Era esse o caminho que eu precisava seguir.Voltar para a Polônia? Nunca mais. E muito menos para Alessandria. Meu pai havia tirado de mim qualquer chance d
O dia de ontem foi surpreendentemente leve e bem aproveitado ao lado de Julia. Confessei a ela, entre risos e alguma vergonha, que não estava conseguindo acompanhar seu ritmo acelerado de fala. Ela sorriu e explicou que falava assim quando ficava nervosa - o que de certa forma nos ajudou a relaxar e quebrar o gelo logo de início.Foi divertido descobrir um pouco de Londres por seus olhos. Ela vivia ali há três anos, com o irmão, e conhecia bem cada esquina. Julia era brasileira e sempre sonhou em estudar fora do país. Falava disso com brilho nos olhos. Com entusiasmo, me apresentou alguns doces típicos do Brasil que tinha guardados na despensa - brigadeiro, paçoca, e um doce de leite macio que quase me fez chorar de alegria. Amei todos, sem exceção.Conversamos até tarde da noite. Era curioso e um pouco assustador pensar que, em apenas um dia, eu havia feito uma amizade tão verdadeira num país totalmente novo. Era como se alguma força estivesse me guiando ao encontro de pessoas certas
Giovanni ManciniUm mês antesEu nunca pedi para estar aqui - respirando, vivendo, assumindo o papel de empresário atrás de uma mesa elegante, rodeado por funcionários que esperam ordens. A verdade é que, se eu pudesse escolher, estaria sete metros debaixo da terra, enterrado ao lado de Polina e do nosso filho. Mas meu padrinho me salvou. Infelizmente.Passei três meses em uma cama, desejando do fundo da alma que a morte me levasse. Cada batida do meu coração era um lembrete cruel de que ainda estava vivo. Mas algo maior me puxou de volta - uma força mais intensa do que a dor: a raiva.Demorei para aceitar que não morreria, mesmo que esse fosse o único desejo que restava em mim. E, como não tive coragem de tirar a própria vida, fui forçado a continuar com o que me restava: lembranças, cicatrizes... e ódio.Os últimos anos foram os maiores professores. Me ensinaram lições que eu gostaria de ter aprendido antes de perder tudo o que realmente importava. Quando o destino está traçado, nad
Alice GiordanoA ansiedade corroía cada parte de mim no meu primeiro dia de aula. Nunca imaginei que um dia estaria feliz por esse motivo - entrar em uma das faculdades mais renomadas de Londres era algo que sequer ousava sonhar anos atrás.Apesar de não vivermos mais no século dezenove ou vinte, meu pai sempre agiu como se ainda estivéssemos naquela época. Falava constantemente sobre arranjar um casamento para mim, como se fôssemos uma família antiquada, onde as mulheres eram obrigadas a aceitar maridos escolhidos pelo patriarca.Odiava quando ele tocava nesse assunto. Durante muito tempo, acreditei que, com os anos, ele mudaria de ideia. Que talvez me amasse o suficiente para me deixar escolher meu próprio caminho. Mas eu estava errada. Luca nunca foi o pai carinhoso que desejei. Ele só se importava com ele mesmo e com as vantagens que poderia extrair de mim. Por tudo o que já vivi, ainda carregava o medo - o medo de cair novamente numa armadilha dele.Antes de sair do quarto, parei
Não sabia se me sentia aliviada ou decepcionada por ter apenas uma aula com o homem em quem esbarrei mais cedo. Agora, sentada no sofá do apartamento, repassando mentalmente cada momento do dia, concluí que talvez isso fosse até uma coisa boa.Eu não vim para Londres para me apaixonar. Vim para estudar. Consegui uma vaga em uma das melhores universidades e, graças à ajuda da Julia e do seu irmão, também conquistei um emprego. Um envolvimento amoroso só complicaria tudo.- Alice, tenho uma proposta pra você. Eu sei que você acabou de chegar, que não tem esse perfil de baladeira, mas essa é uma ótima oportunidade pra conhecer mais lugares. Além do mais... - Julia começou, e eu já sabia onde ela queria chegar. Há dois dias ela falava da tal festa. Só que eu... eu nunca fui de festas. Sempre fui a garota enclausurada, criada longe de tudo. Lugares com muitas pessoas, música alta e cheiro de álcool me causavam desconforto. Além disso, fui criada por freiras. O espírito festeiro nunca fez p
- Estou bem, só... preciso ir ao banheiro - falei, forçando um sorriso que até para mim soou amarelo.Só então notei que Julia não estava mais por perto. Meu impulso era procurá-la, dizer que queria ir embora, mas nem coragem eu tinha de confessar isso a Pierre. O banheiro foi apenas uma desculpa - uma saída estratégica para escapar daquela situação que me deixava cada vez mais desconfortável.Ele assentiu educadamente e apontou a direção. Segui, mas nem cheguei a entrar. O ar ali dentro parecia pesado, abafado... e quando percebi que o corredor do banheiro era próximo da saída, fui atraída por ela como por instinto. Antes de sair, me virei discretamente para ter certeza de que Pierre não estava olhando. Então, respirei fundo e atravessei a porta.O vento frio da noite me atingiu de forma revigorante, como um banho de realidade. O barulho abafado da música lá dentro ainda chegava aos meus ouvidos, mas do lado de fora tudo parecia mais... real. Respirei fundo, tentando encontrar um pou