Como Enlouquecer Um Pirata

Waverly estava irredutivelmente perdida.

Ela soube disso assim que vislumbrou o pirata à sua frente.

E ele não era nada como ela achava que um pirata seria... foi a primeira coisa que lhe ocorreu quando teve certeza de que não despencaria para algum desmaio nos próximos segundos.

A segunda, foi todo o resto.

Ele era alto. Trajava uma espécie de fraque escuro aberto em V no peito, exibindo uma grossa corrente de prata repousada sob as linhas fundas de um peitoral esculpido e espantosamente definido, a cor da pele beirando o mel silvestre. Golas altas contornadas por lhama entrelaçada. As mangas levemente bufantes desciam até os pulsos, onde abotoaduras de jaspe brilhavam soturnas, um cinto grosso cruzava seu quadril estreito, que carregava uma linda espada dourada pendurada em um boldrié cravejado em rubis. As calças de couro eram lisas, suas pernas desaparecendo dentro de canos longos e lustrosos das botas negras. O punho entalhado de uma Arcabuz aparentemente cara se projetando por outro cinto. A sombra da barba de alguns dias sem fazer escurecia os contornos quadrangulares de sua face, curvas suaves e ao mesmo tempo fortes delineando suas expressões, o lábio inferior levemente mais cheio que o superior, formando um conjunto harmonioso com o nariz fino e reto.

Mas a maior surpresa estava nos olhos.

Verdes como colitas, circulados por pálpebras esfumaçadas por carvão, cílios escuros como as asas de um corvo e tão longos que tocavam as altas maçãs do rosto. Duas esmeraldas brilhantes engolidas pelo negrume de todo seu ser, uma fina cicatriz cortava quase imperceptivelmente uma das sobrancelhas, e os cabelos estavam escondidos em baixo de uma espécie de turbante escuro.

A mão que segurava seu manto possuía dedos longos e fortes. Unhas bem feitas e quase tão impecáveis quanto as dela. Anéis de ouro por eles e um único diamante pagão em sua orelha direita.

Tudo nele parecia pagão de um modo obstinadamente pecaminoso. E pecaminoso de um modo terminantemente pagão. Era... era... devia ser o que as freiras costumavam chamar de representação terrena do pecado.

As grossas sobrancelhas, que pareciam desenhos à tisna estavam arqueadas esperando uma reação, e ela veio confusa, rasgando a garganta de Waverly com se ela estivesse tentando regurgitar um camelo.

― Ah... Mhmmm?

Não foi exatamente uma brilhante demonstração de seu senso de comunicação. O engasgo primitivo saiu meio que por conta própria. De repente, ela era tão esperta quanto um furão.

O pirata a analisou enquanto ela descobria uma forma de não se afogar com a própria língua, as sobrancelhas voltando a ir para o alto. Ele semicerrou os olhos, as íris esverdeadas quase sumiram em meio ao leque escuro de cílios. Ele tinha uma forma de fazer isso que rapidamente lembrava a um gato. Um felino, e não do tipo domesticado. A selvageria parecia estampada em cada pedaço seu, mesmo que houvesse uma quase imperceptível fineza acentuando seus movimentos.

― O quê? Vocês possuem algum dialeto próprio por aqui? Porque se for, vai ser realmente trabalhoso completar a missão.

Completar a missão.

Oh, céus! Tremendo, Waverly executou uma nova tentativa.

― Nhh... Dhunhh...

Oh, droga.

Ela estava, oficialmente, imbecilizada. Não era como ela tivesse estudado sobre as formas sobre como se comportar diante de um pirata que deseja tomar seu reino. Lidar com um pirata comum já seria uma significativa missiva de coragem.

Agora, lidar com aquele pirata meio que seria o diabo. Aquilo totalmente testaria seus limites de capacidade. Lendas haviam nascido de muito menos. Talvez ela se tornasse alguma Santa Waverly depois de morta.

Algo sobre aquilo devia ser profano... proibido! Sim, devia ser terminantemente proibido que bandidos em potencial fossem tão altamente... atraentes. Era um crime perfeitamente qualificável e tenebroso esbanjar tão descaradamente todos aqueles excessivos... atributos masculinos aos montes para quem quisesse ver. Era um desavergonhado! E Waverly teve absoluta certeza de que ele estava bem ciente disso.

O pirata se aproximou alguns passos, parecendo imensamente curioso, e Waverly recuou alguns outros. Acordando do estupor de repente, ela se deu conta de que segurava o crucifixo com tanta força, que as dobras brancas dos nós de seus dedos se punham doloridas. E o maldito carregava um ar plenamente divertido nos olhos, como um caçador observando os diferentes ângulos nos quais pode acuar sua caça.

― Srta? Sou impelido a ressaltar que, se nossa conversa continuar reduzida a gemidos e resmungos de sua parte, terei de tomar algumas atitudes diferentes e não muito apreciáveis quanto a esta falha tentativa de comunicação.

Waverly considerou suas possíveis rotas de fuga com o coração traçando trilhas suicidas dentro do peito, e com um esgar, ela pensou sobre começar a correr novamente. Quantos passos ela conseguiria dar?

O olhar do pirata endureceu, como se ele houvesse lido o aviso em seu rosto... e como se não tivesse gostado nada dele. Naquele instante, algo nele a lembrou sobre uma fera novamente... talvez um urso selvagem, desta vez. Seus dotes animalescos eram aparentes e ao mesmo tempo,  elegantes, destoando completamente qualquer possível tentativa de fuga, ainda que as solas de seus pés coçassem.

Correr, correr, correr...

Ele parou onde estava, implacável e ameaçador.

― Não ouse.

A nota de advertência acentuando sua voz escorregou clara, e ele se trouxe para mais próximo.

Waverly tropeçou novamente.

― Fique longe de mim!!!

Ele parou de repente, um pequeno reclinar no canto direito dos lábios grossos se puxando para um meio sorriso. Um meio sorriso nada divertido, ela constou.

― Oh, ela fala, afinal de contas...

Waverly bufou com pouca graciosidade, esquecendo-se de repente dos principais princípios de uma dama diante de um pirata, entre eles, coisas como berrar até morte.

― Me parece óbvio... ― ela assinalou, temendo se afastar mais e trazê-lo mais próximo ― Diferente de uns e outros, minhas características humanas continuam em perfeito estado. Voz, humanidade e caráter. E nenhuma vontade de sair por aí saqueando reinos... só para deixar claro.

Oh, m*****a idiota!”.

Ele voltou a semicerrar os olhos, e... Oh! Ela passou a realmente odiar aquele movimento. Ele apenas fazia com que cada detalhe bonito em seu rosto se sobressaltasse como um relâmpago... e não era como se fossem poucos. O pirata alisou o queixo com a mão livre enquanto a estudava, os anéis de ouro em seus dedos brilhando sob o furor branco da lua.

― Agora, talvez eu a preferisse quando estava gemendo.

Waverly se afastou um centímetro.

― E-eu não estava gemendo! ― ela rebateu, não conseguindo convencer nem a si mesma.

Ele não pareceu se importar em discordar.

― Qual seu nome?

― Não lhe interessa.

― Nome interessante... ― ele inferiu, arqueando as sobrancelhas daquela forma gigantescamente desconfortável ― Posso saber o que está fazendo sozinha na enseada, à essas horas da noite, durante uma invasão de pessoas sem caráterhumanidade e com uma enorme vontade de sair por aí saqueando reinos, Srta. Não Lhe Interessa? Esta não me parece uma atitude muito esperta vinda de uma mente aparentemente brilhante como a sua.

― Me disponibilizando a responder perguntas patriotas à um estrangeiro ladino, ao que parece... ― ela não conseguiu controlar a velocidade na qual as palavras saíram, odiando que sua língua estivesse trabalhando por conta própria.

― Você não respondeu nenhuma pergunta. ― ele rebateu, seus olhos prásinos brilhando como os reflexos de uma grande onda se levantando contra o sol, sua voz ecoando o perigo em todas as notas possíveis ― Ainda. E já que é tão pertinentemente esperta, já deve ter ouvido algo sobre o que nós, ladinos, fazemos com imprestáveis.

Waverly arregalou bem seus olhos. Primeiro, porque ela não duvidava nem um pouco que fosse dá-la aos tubarões. Segundo, porque ele havia realmente a chamado de imprestável, fato inadmissível que desencadeou outra maré consternada de surpresa por suas vísceras. E terceiro, porque com apenas um movimento calculado, ele de repente estava a sua frente.

E com isso podia-se dizer, bem à sua frente.

― Quem é você? ― ele exigiu, e dessa vez, houve apenas a ordem clara vertendo avisos por ela.

Waverly nem mesmo conseguiu reunir forças para recuar a tempo desta vez. Todo o poder verde crisólito daqueles olhos a aprisionando em uma redoma quente de sensações controversas e agressivas. Seu estômago arquejando de uma maneira bem pouco natural, sua forma levemente morena se agigantando como a pronuncia clara do perigo sólido e real.

― L-lady... Wistewdon...

Sua língua se enrolou tanto que quase teve câimbras.

Ele franziu o cenho, um leve sorriso zombeteiro explorando seus lábios altamente hipnotizantes numa linha curva. Waverly teve a remota sensação de que o mundo girava. E de que ela começava a enquadrar aquele sorriso na lista de coisas para se temer em piratas. Nada de espadas e pistolas, moças... apenas cuidem-se com estes sorrisos!

― Ora, ora... a Dama de Honra da princesa. E eu qui, pensando sobre a injustiça da vida. Mas veja que filho da mãe sortudo eu sou! Acabei de pescar um peixe grande desta vez... ou talvez uma pequena enguia que goste de eletrocutar tudo que ouse se aproximar demais...

Waverly estava chocada demais para pensar em se ofender.

― C-como você... como você sabe sobre isso!?!? Como...-

― Ah, ah! ― ele a interrompeu, erguendo um dedo indicador adornado com um anel polido incrustado com outro rubi. Ele parecia ter uma grande coisa com rubis. ― Sou eu quem faz as perguntas por aqui, Srta. Melowdon.

― É Wistewdon! ― ela rugiu ofendida, apontando seu leque para ele ― E o que o faz achar que estou solicita a responder qualquer coisa que seja?

Ele arqueou uma sobrancelha, e apontou com o queixo algo em tudo aquilo que parecia um pouco mais que evidente.

― Porque ao que parece, você está em plena desvantagem aqui, pequena devota da igreja. E eu agradeceria se você tirasse esse leque de penas de traseiro de pavão do meu nariz.

Waverly voltou a bufar, tentando enviar alguma espécie poderosa de olhar ameaçador em sua direção.

― Rá! Não me conhece! Para um homem razoavelmente grande que porta uma espada ainda maior com tanto orgulho, totalmente não sabe o que uma pequena devota da igreja é capaz de fazer...

Surpresa delineou suas feições. E ela rapidamente se arrependeu de usar a palavra “grande”.

― Está tentando me aterrorizar, Sra. Misterloon? ― ele zombou, fingindo pensar por um momento, os cantos de sua boca maligna se baixando ― Bem, veja... não está funcionando.

― Não achei que estivesse... ― Waverly ainda teve a decência de dizer.

Não era como se ele estivesse gritando de pavor ou algo parecido.

― Agora, permita-me fazer uma tentativa. Posso começar explicando-lhe resumidamente o que acontece agora...― ele se arqueou sobre ela, e o cheiro salgado do mar misturado a sândalo veio numa marcha lenta e quente em sua direção, embolando seus sentidos numa maré angustiante de impotência. Ele sorriu zombeteiramente mais uma vez, semicerrando suas pálpebras. Oh! Ele era... ele era... ― Você acabou de ser honrada com o cargo mais importante da noite: será minha refém.

Bem, funcionou.

Com os olhos muito abertos, Waverly engoliu seu fôlego, muda, sentindo seu pavor crescer de forma exorbitante dentro do peito enlouquecido enquanto assentia quase em choque, disciplinada e morbidamente, engolindo sua proximidade com um esgar.

― Uh... uhun.

E depois de receber uma piscadela marota, ela chutou sua canela com força.

Quando o pirata caiu, abatido, ela correu.

Correu como um coelho belga saltitante.

“É isto, estou morta. Este é o meu fim. Tudo acaba aqui...”.

A morte de Santa Waverly. Ela gostaria de uma Catedral muito grande quando fosse endeusada, e seria a santa protetora das donzelas que corressem perigos nas mãos de piratas. Ou que morressem da mesma forma que ela achava que morreria. Waverly não entendia muito sobre as punições da política pirata, mas imaginava que chutar um não fosse exatamente uma coisa boa a se fazer. Especialmente um tão furioso como o que a perseguia naquele momento.

As cenas de sua vida meio que começaram a passar diante de seus olhos.

Mas nem pensar que ela morreria sem lutar. Nem pensar mesmo! Um chute era o mínimo que ele merecia por ajudar a saquear um reino e possivelmente incendiá-lo. Ela já havia deixado sua marca no mundo, dado sua contribuição para a segurança do reino. Waverly quase se achava um soldado por tamanha audácia, ainda mais quando ouviu o grunhido feroz atrás de si, quase em sua nuca.

Oh, não... Oh n-”.

Waverly não soube dizer ao certo como aconteceu, mas num momento, ela estava correndo como um guepardo de saias, e no próximo, ela foi ao chão numa velocidade assustadora, arrancando grama aos punhados quando pousou de forma não muito graciosa no solo. Ela esperava que fosse apenas impressão sua a forma com a qual suas pernas se embolaram nas saias do vestido, praticamente se amarrando em si mesma e a impedindo de se mover. Mas não foi isso que a impediu de sair rastejando à esmo, mas sim, a forma grande e escura que caiu sobre ela.

Waverly sentia como se merecesse um distintivo de honra.

Em menos de cinco minutos, ela derrubara um pirata duas vezes. Um espetacularmente grande.

Era uma pena que ninguém tivesse presenciado isso.

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