4. Guerra & Carvalho

A luz do sol invadiu suavemente a sala, anunciando o início de mais um dia. Levantei-me da cama com um misto de sono e ansiedade. 

Depois de um café da manhã rápido e um banho, peguei minha mochila e segui em direção ao meu curso técnico. O trajeto era familiar, mas meus pensamentos estavam longe, preocupados com as questões que me assombravam desde a ligação do advogado.

No entanto, ao chegar ao curso, mergulhei nos estudos, tentando deixar de lado, ao menos temporariamente, as preocupações que me consumiam. Ali, entre livros e anotações, encontrei um refúgio onde podia me concentrar e esquecer, por alguns momentos, os problemas que me afligiam.

Após as aulas da manhã, dirigi-me ao hospital onde fazia meu estágio na UTI neonatal. Desde que comecei a trabalhar ali, sentia-me em casa. O ambiente hospitalar, apesar de caótico em muitos momentos, era onde eu me sentia mais viva e realizada.

Ao adentrar a UTI neonatal, fui recebida pelo burburinho característico do local. Médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde movimentavam-se freneticamente, cuidando dos pequenos pacientes que ali estavam internados. 

Dirigi-me ao berçário, onde os bebês prematuros e recém-nascidos eram cuidados com todo o carinho e dedicação. Ao observar aqueles pequenos seres lutando pela vida, senti meu coração transbordar de emoção.

Cada criança ali era um verdadeiro milagre, um símbolo de força e resiliência diante das adversidades. Enquanto cuidava delas, esquecia-me um pouco de minha própria vida e mergulhava de cabeça naquele universo de amor e cuidado.

Hoje, em especial, uma menininha chamada Vitória estava prestes a ter alta. Vitória havia nascido prematura com 22 semanas, lutando bravamente pela vida desde o momento em que veio ao mundo. Segurando-a nos braços, senti uma onda de emoção me invadir, misturando-se às lágrimas de alegria dos pais da menina.

— Você, princesinha, já está indo para casa, com a mamãe e o papai. — Sussurrei para Vitória enquanto a balançava gentilmente, observando-a chupar o dedo com doçura.

Os pais de Vitória, que esperavam ansiosamente do lado de fora do berçario. Eu os cumprimentei com um sorriso, compartilhando da felicidade que irradiava deles. Caminhei até eles e entreguei aquele precioso pacotinho de amor, Vitória, em seus braços.

— Obrigada por tudo o que fizeram por ela. — Os pais agradeceram emocionados, expressando sua gratidão por todo o cuidado que Vitória recebeu enquanto esteve conosco na UTI neonatal.

Enquanto os observava se abraçarem e celebrarem o momento tão esperado, senti-me inundada por uma sensação de realização e gratidão. Saber que fiz parte do processo de cura e crescimento de Vitória foi uma das experiências mais gratificantes da minha vida, e eu estava imensamente grata por fazer parte da jornada dela e de sua família.

No entanto, por mais que eu amasse cuidar das pessoas, não pude deixar de perceber um vazio dentro de mim. Enquanto testemunhava o amor incondicional dos pais de Vitória por ela, não pude evitar o pensamento de que não tinha ninguém para cuidar de mim da mesma maneira. Além de mim mesma. 

🧜🏾‍♀️

Na noite anterior, após o advogado enviar o endereço do escritório, eu não pude evitar a sensação de antecipação e nervosismo que tomou conta de mim. Como uma boa paranoica, fiz algumas pesquisas sobre o escritório e constatei que era uma empresa legítima, localizada em um prédio comercial em um bairro luxuoso, frequentado por clientes de alto nível social. 

Quando finalmente cheguei ao prédio, fiquei impressionada com sua imponência e elegância. A fachada de vidro refletia as luzes da rua, dando ao edifício uma aura de sofisticação. 

— Boa tarde, eu tenho uma reunião agendada com o Diego Guerra. Meu nome é Barbara Castro. — Minha voz saiu um pouco trêmula enquanto me identificava na portaria.

A recepcionista sorriu gentilmente e pediu licença para fazer uma ligação. Enquanto ela falava ao telefone, senti minhas mãos começarem a suar e uma sensação de aperto no peito.

Depois de alguns segundos que pareceram uma eternidade, a recepcionista indicou o elevador e me informou que eu poderia subir até o último andar, onde o escritório dele estava localizado. O som dos meus próprios passos ecoava pelos corredores vazios. 

Ao entrar no elevador, senti um nó se formar em minha garganta. As portas se fecharam lentamente, isolando-me do mundo exterior. O silêncio dentro do elevador era ensurdecedor. Eu me vi encarando meu reflexo no espelho, tentando controlar a respiração e acalmar os nervos.

Cada andar que passava parecia trazer consigo uma mistura de expectativa e apreensão. Meus pensamentos voavam descontroladamente, imaginando o que me aguardava naquela reunião e o motivo pelo qual o advogado havia solicitado minha presença.

Finalmente, o elevador chegou ao último andar, e as portas se abriram lentamente, revelando o corredor impecavelmente decorado que levava ao escritório do Sr. Guerra. Com o coração batendo descompassado, dei um passo hesitante para fora do elevador, pronta para enfrentar o que quer que estivesse por vir.

Fui recebida por um recepcionista sorridente por trás de sua mesa. Seus olhos perspicazes pareciam já estar cientes da minha chegada, e seu sorriso acolhedor transmitia uma sensação de calma que eu desesperadamente precisava naquele momento.

— Boa tarde, senhorita Catro. Seja bem-vinda. Você gostaria de alguma bebida enquanto aguarda? Café, chá, água, refrigerante ou energético? — Sua voz era suave e amigável, e eu me peguei relaxando um pouco diante de sua hospitalidade.

Agradeci gentilmente, mas recusei sua oferta. Minha boca estava seca, mas eu duvidava que qualquer líquido pudesse aliviar a secura que sentia na garganta, ou melhor, na alma. 

O recepcionista sorriu compreensivamente e indicou a direção que eu deveria seguir.

— Por favor, me acompanhe. O Sr. Guerra está aguardando por você.

Segui-o pelo corredor impecavelmente decorado, tentando ignorar os nervos que ainda dançavam dentro de mim.

Finalmente, chegamos diante de uma grande porta de madeira escura. O recepcionista parou e olhou para mim com um sorriso.

— Aqui estamos. O Sr. Guerra está esperando por você dentro. Se precisar de mais alguma coisa, estarei aqui fora.

Agradeci mais uma vez e, com um último suspiro para reunir minha coragem, empurrei a porta e entrei na sala. 

Meus olhos percorreram o espaço, e foi então que o vi. O advogado, um homem na faixa dos 35 anos, emanava uma aura de seriedade e confiança.  Usava o cabelo preso em um coque charmoso, os olhos escuros transmitindo uma expressão firme e determinada. Uma barba bem alinhada adornava seu rosto.

 

— Boa tarde, Barbara Castro. Sou Diego Guerra, é um prazer finalmente conhecê-la.

 

Ele levantou e me estendeu a mão, a qual apertei. 

 

— Boa tarde, Diego. O prazer é meu. — Respondi, tentando manter minha voz firme, apesar da ansiedade que fervilhava dentro de mim. Sentei-me na cadeira em frente à sua mesa, sentindo-me pequena diante da imponência do ambiente e da seriedade do momento.

 

— Por favor, sinta-se à vontade. — Ele disse com um gesto acolhedor. — Entendo que esteja um pouco apreensiva, mas espero que possamos resolver essa questão da melhor forma possível.

— Bom, eu não sei qual notícia me dará. Mas estou aqui para ouvir. 

Sentei em uma cadeira em frente a sua mesa. Ele assentiu, retomando seu lugar á mesa. 

— Vamos direto ao assunto, o motivo pelo qual estamos aqui hoje é delicado. Meu cliente, o Sr. Montebello, manteve uma relação comercial com seu pai, Marcos Castro. Infelizmente, essa relação não foi favorável para o Sr. Montebello. Seu pai, como você deve estar ciente, fez uma série de empréstimos ao longo dos anos, emprestimos estes que foram feitos em nome de algumas propriedades que a sua familia possuia, como por exemplo a casa onde vocês moravam antes. 

— A casa da minha infância? — murmurei, lutando para processar a informação enquanto meu peito se apertava com a dor da perda. — Meu pai a vendeu antes de morrer. A casa que eu tinha tantas lembranças boas. 

Aquela casa, com seu jardim ensolarado onde eu costumava brincar por horas a fio, seus quartos aconchegantes onde compartilhava segredos com minha avó... Era lá que nossa pequena família se reunia, onde compartilhávamos risadas, lágrimas, sonhos e esperanças. Antes de tudo acabar. 

— Aquela casa, seu pai a vendeu para o Sr. Montebello, para pagar a divida que devia para ele. 

— Mas isso não faz sentido... — respondi, minha voz soando embargada pela confusão. — Se meu pai vendeu a casa para pagar a dívida, qual é o motivo de toda essa conversa agora?

— O motivo pelo qual estamos aqui hoje é para discutir o restante da dívida que seu pai contraiu com o Sr. Montebello. A venda da casa foi apenas uma parte do pagamento, mas ainda há uma quantia significativa em aberto.

Com um suspiro profundo, eu recuei instintivamente na cadeira, minhas costas pressionando contra o encosto enquanto minhas mãos se encontravam sobre a mesa, apertando-se nervosamente uma contra a outra.

— Eu não sou especialista em direito, mas sei que os filhos não herdam as dívidas dos pais. — Respondi, tentando me agarrar a qualquer consolo que pudesse encontrar naquele momento de desespero.

Diego assentiu com compreensão, antes de prosseguir: — Você está correta, de fato. Os herdeiros não são responsáveis pelas dívidas deixadas pelo falecido. No entanto, quando um indivíduo contrai uma dívida com garantia de um imóvel, como foi o caso de seu pai com o Sr. Montebello, a execução dessa dívida pode recair sobre o imóvel em questão. E agora, a pergunta que você precisa considerar é: qual foi o único bem que seu pai colocou como garantia para o empréstimo?

Um silêncio pesado pairou sobre a sala, interrompido apenas pelo som abafado dos meus pensamentos tumultuados. Meu coração batia descompassado enquanto eu lutava para processar a pergunta de Diego. Então, como um raio, a verdade cruel atingiu-me com força total.

— A casa... A casa onde eu moro. — Minha voz saiu em um sussurro, carregada de choque e descrença. A realidade era como um soco no estômago, deixando-me sem ar, sem chão.

— Sim, é exatamente isso. A sua casa. Meu cliente, Sr. Montebello, não tem interesse em manter a propriedade. Na verdade, o valor da casa nem mesmo cobre a dívida que seu pai contraiu. Aqui estão os documentos que comprovam o montante total: setecentos e cinquenta e oito mil reais e vinte centavos. 

Meus olhos desviaram-se dos papéis para encarar Diego, sentindo-me impotente diante da magnitude da situação. Cada palavra que ele proferia era como uma facada no peito. 

— E o que exatamente você espera de mim?

— O que eu espero, é que você compreenda a gravidade da situação. Se não for resolvida, isso pode resultar em consequências legais sérias para você.

— O que vem após essa conversa? 

 

Diego recostou-se na cadeira, os dedos entrelaçados.

 

— Bem, no momento estamos fazendo uma notificação formal ao devedor, no caso você, informando sobre a inadimplência e fornecendo um prazo para pagamento ou resolução do problema. Após isso, o tribunal emitiria citações para todas as partes envolvidas, incluindo você e o Sr. Montebello, informando sobre o processo e marcando a data da audiência. Se você não contestar a ação ou não regularizar os pagamentos dentro do prazo estabelecido, vou solicitar ao tribunal uma ordem de adjudicação, permitindo ao Sr. Montebello assumir a propriedade do imóvel. —  Continuou — Mesmo que você conteste a ação, considerando o valor significativo da dívida e o histórico financeiro de seu pai, é altamente improvável que o tribunal favoreça sua contestação. Temos documentos sólidos que respaldam suas reivindicações, e isso dificultará bastante sua posição perante o tribunal. E, mesmo que você opte por contestar, isso só prolongará o processo e resultará em mais tempo e dinheiro gastos, sem garantia de sucesso.

A agonia se apossava de mim, envolvendo-me em um turbilhão de sentimentos turbulentos enquanto ouvia as palavras de Diego. Cada frase proferida por ele era como um golpe direto ao meu coração já despedaçado.

Quando meu pai faleceu, já não tínhamos dinheiro. Tudo foi perdido em processos trabalhistas e dívidas acumuladas ao longo dos anos. 

— Mas como isso é possível? — minha voz saiu embargada, carregada de desespero e incredulidade. — Meu pai... Ele não tinha nada. Não sobrou nada para nós. Como posso pagar uma dívida tão grande?

— O problema não é do meu cliente. O Sr. Montebello está exercendo seu direito legal como credor. E, infelizmente, a situação financeira de seu pai não é relevante para a resolução desse problema.

Suas palavras ecoaram em minha mente, penetrando como flechas afiadas. Não importava o quão injusto parecesse, a lei estava do lado desse homem que eu nunca ouvi falar, e isso tornava nossa situação ainda mais desesperadora.

— E quanto tempo eu tenho para resolver isso? E qual é o primerio nome dele? — perguntei, lutando para conter o tremor em minha voz.

Diego suspirou, parecendo relutante em me dar a resposta.

— O Henrique Montebello estava fora do país nos últimos meses, o que atrasou o processo. Mas agora que ele está de volta, você tem um mês para regularizar essa situação.

— Um mês... — murmurei, sentindo-me oprimida pelo curto prazo. — É impossível. Como posso resolver uma dívida tão grande em tão pouco tempo? Acredite em mim, se eu tivesse esse dinherio nem estava mais no Brasil, vivendo essa vida de merda. 

Olhei para Diego, buscando uma solução, uma alternativa que pudesse aliviar o fardo que pesava sobre meus ombros.

— Seria possível negociar o pagamento em parcelas? Mesmo que sejam poucas, talvez eu possa trabalhar para esse homem, ajudá-lo de alguma forma... Mas, quem é esse esse Henrique Montebello?

Diego arqueou uma sobrancelha, parecendo surpreso com minha falta de conhecimento.

— Henrique Montebello é um empresário de muitas áreas extremamente discreto. Mas agora, diante dessa situação, o que pretende fazer? Como planeja resolver isso?

Resolver? como eu pdoeria resolver aquela situação, eu estava sufocando. 

— Por favor, Diego, você precisa encontrar um momento para falar com esse homem. Talvez ele possa concordar em negociar uma forma de pagamento a longo prazo, algo que eu possa arcar. Eu farei o que for preciso para manter minha casa. Por favor, me ajude.

Diego suspirou, parecendo cansado. 

— Eu entendo sua preocupação, Barbara, mas ele é extremamente discreto. Ele me encarregou especificamente de lidar com esse caso e não costuma se envolver diretamente em negociações desse tipo. Acredite, se houvesse uma maneira de resolver isso de forma diferente, eu teria sugerido. Mas, infelizmente, é uma situação complicada.

Eu inspirei fundo, sentindo o desespero crescer dentro de mim enquanto implorava mais uma vez:

— Diego, por favor, você não entende. Eu não tenho família, estou completamente sozinha nesse mundo. Essa casa é tudo o que tenho, é meu lar. Eu farei qualquer coisa para mantê-la. Por favor, tente convencer o Sr. Montebello a considerar uma alternativa. Eu não sei o que farei se perder isso.

Diego fechou os olhos por um momento, como se estivesse ponderando minhas palavras. Quando os abriu novamente, vi uma mistura de compaixão e preocupação em seu olhar.

— Vou fazer o possível, Barbara. Mas tenha em mente que o Sr. Montebello é conhecido por seu comportamento difícil de lidar, extremamente exigente e inflexível em suas decisões. Seu apelido entre alguns é "Demônio", e isso não é sem razão. Ele é implacável quando se trata de seus interesses. Mas prometo fazer o meu melhor. 

Com um nó na garganta, agradeci a Diego por sua disposição em me ajudar.

Agora, além das dificuldades cotidianas, eu tinha um novo adversário, um "demônio" pessoal, na figura de Henrique Montebello. 

A sensação de estar à mercê das decisões de um homem poderoso e implacável me deixava apavorada.

Com Henrique Montebello pairando como uma sombra sobre minha vida, eu me preparava para uma batalha que talvez não estivesse totalmente pronta para enfrentar. Mas uma coisa era certa: eu não desistiria sem lutar, mesmo que ele me levasse ao inferno.

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