Capítulo I - Só mais um dia (continuação)

Lauren tentou acordar pela terceira vez nos últimos 20 minutos. As manhãs eram difíceis para ela. Sabia que, para a maioria das pessoas, as manhãs eram sonolentas e a tarefa de sair da cama, deixando as cobertas para trás, parecia quase impossível. Mas para Lauren esse processo chegava a ser doloroso, principalmente após alguns sonhos que a acompanhavam sempre, não conseguia entender se eram somente momentos projetados por sua mente, ou lembranças de sua infância. Sentia-se vazia, sem forças, como se a noite de sono, geralmente mal dormida e atormentada pelos tais sonhos, totalmente sem pé nem cabeça, não fosse o suficiente para fazer seu corpo descansar.

Não havia como negar, sentia-se muito mais disposta à noite, mais ágil e cheia de vontade. Para Lauren, o anoitecer trazia consigo uma estranha vontade de conquistar o mundo, sair sem destino em busca de tudo e nada ao mesmo tempo, perder-se em lugares desconhecidos, deparar-se com novas pessoas e situações... No entanto, é claro que isso não era possível. No auge de seus 17 anos, os pais lhe deixavam claro quais eram os seus limites e todas as vezes que mencionava já estar com quase 18 anos era como se estivesse agredindo fisicamente a mãe, que acabava com os olhos marejados e um ar de reprovação no rosto. O envelhecer da filha parecia ser motivo para o apocalipse.

Quando saíam juntas, duas coisas sempre surpreendiam a todos: primeiro, ninguém acreditava que Anna era sua mãe por parecer jovem demais; segundo, jamais relacionavam Lauren como filha dela, pois era alta, com cabelos pretos e os olhos tão escuros quanto a noite. A feição marcante e forte de Lauren conseguia arrancar os segredos mais profundos das pessoas somente com uma boa encarada. Era o oposto da mãe e, claro, poderia explicar o fato através da adoção, mas se limitava a sorrir e tentar ser simpática – algumas vezes até conseguia.

Escutou os gritos agudos da mãe, que andava de um lado para outro no andar de baixo da casa como se fosse capaz de provocar uma guerra mundial caso Lauren demorasse mais para descer. Respirou fundo, jogando as cobertas para fora da cama, e se arrastou para o banheiro, ainda com a sensação de que o amigo de seus sonhos, fosse surgir de qualquer lugar, a qualquer momento. Não daria tempo para um banho e isso a deixava ainda mais irritada. Lavou o rosto demoradamente e passou a escova nos longos cabelos, agradecendo aos céus por serem lisos e sempre irem para o lugar certo. Escovou os dentes e deu uma última olhada no espelho, não era fã de maquiagem e nunca entendeu como a maioria das garotas da escola onde estudava conseguia aparecer às sete horas da manhã tal como numa versão matinal de algum filme adolescente.

Colocou o jeans e o tênis, então vestiu uma camiseta preta que a mãe odiava por apresentar em vermelho: “esse pode ser seu último dia”. Desceu a escada com uma lentidão extrema enquanto colocava o casaco, finalmente adentrando o “lugar especial de Anna”, a grande cozinha cujos detalhes revelavam a identidade de sua mãe. O lugar era claro, com amplas janelas que ladeavam quase todo o cômodo e uma pia imensa que tomava a lateral da parede, onde sua mãe adorava lavar louça pela vista privilegiada do jardim. Ela dizia que ali era o ambiente no qual mais falava com “seu sagrado”. Os armários brancos preenchiam quase todas as paredes e uma grande bancada ficava no meio da cozinha, cercada por bancos altos. A mãe não quis uma mesa comum, pois dizia que assim a família ficaria mais unida, próxima, mesmo que na maior parte do tempo fossem as únicas, mãe e filha, a estarem na casa.

O pai, um senhor de meia-idade, alto, de cabelos grisalhos e aparência rígida, dirigia a congregação local. Aos olhos de todos era o Pastor Robert e, por algum motivo, o era também para a filha, pois não conseguia com ele o acesso que tinha com a mãe. Os trabalhos pastorais e todas as outras responsabilidades que realizava dentro da igreja – coisas que Lauren, assim que fez 12 anos, não quis mais saber do que se tratavam – não lhe davam muito tempo para ser pai ou esposo. Deixar a mulher tão sozinha levou-a a desenvolver uma compulsão descontrolada por limpeza e um cuidado exagerado com a filha.

— Está atrasada. Há horas estou chamando e chamando você. Todas as manhãs será assim, Lala? – Lauren odiava o apelido, mas, como tudo o que a mãe fazia, ele sempre vinha carregado de carinho, mesmo quando presente numa bronca como naquele momento.

— Desculpa, mãe – começou a dizer enquanto seu olhar, mesmo sem querer, se prendeu à cadeira vazia onde deveria estar o pai. – Sabe que as manhãs são terríveis para mim, juro que queria ser uma daquelas pessoas dispostas, levantar cedo e sair cantando da cama... mas não consigo.

 A mãe percebeu que, durante todo o discurso da filha, o olhar dela não deixou a cadeira vazia.

— Ele não voltou para casa. Uma das irmãs está com problemas sérios em relação ao filho e seu pai, junto com o grupo de apoio, está ao lado dela para tentar ajudar... – A voz de Anna se perdeu, deixando as palavras tão baixas que Lauren mal conseguia ouvir. A dor e a solidão da mãe sempre despertavam o temperamento arredio da filha.

— Ele poderia, quem sabe, começar a tomar conta da própria casa para evitar que o problema seja aqui! – As palavras saíram antes que as pudesse conter e, assim que terminou de falar, Lauren se arrependeu.

A mãe levantou da cadeira, já retirando as xícaras e colocando-as sem muito cuidado na pia para serem lavadas. Lauren deixou o ar sair dos pulmões de forma pesada e levantou-se, indo até a mãe e a abraçando com carinho.

–— Desculpa, mãe, desculpa novamente. Ele precisa cuidar das ovelhas, não é isso? – Esse era o enredo de todos os dias, as ovelhas, sempre as ovelhas.

— Exatamente e, enquanto seu pai cuida delas, Ele – a mãe apontou para cima, referindo-se a Deus – cuida de nós. Afinal, Ele atendeu meu pedido e aqui está você, não é mesmo? – E lá estava a mãe, mais uma vez, apoiando-se na adoção de Lauren como justificativa para perdoar a ausência do marido.

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