As pessoas estavam reunidas na praça central; o lugar não passava de um círculo grande com estacas de madeira espalhadas de forma desorganizada. Elas pareciam felizes com a quantidade de alimentos que estavam recebendo, que era mais do que suficiente para o fim do inverno. Ninguém precisaria arriscar suas vidas atrás dos portões de ferro, graças ao príncipe Kain.
Kain andava ao meu lado, chutando de vez em quando algumas pequenas montanhas de neve; não conversávamos desde que saímos da cabana. Ele parecia incomodado; para ser justa, ele parecia furioso. Eu podia estar imaginando coisas, mas tudo indicava que Alex era o motivo. Não sabia se era pertinente questionar um príncipe, mesmo depois de ele exigir que eu o chamasse pelo nome. Então, continuava quieta.
— Mandy. Mandy. Mandy — Ana corria em minha direção, suas bochechas estavam vermelhas, e as mãozinhas seguravam uma maçã com tanta força que, mais um pouquinho, ela a cortaria ao meio.
— O que você está fazendo fora da cama? — perguntei, passando meus braços ao redor de seu corpo magricela para abraçá-la.
— Eu estou bem melhor. Vovó Sena me deu algo muito ruim para beber. — Ela fez uma careta, como se o gosto ainda estivesse em sua língua. Dei uma risada sincera; arruda era eficiente, porém seu gosto deixava a desejar.
— Fico feliz que você esteja bem. Mas nada de exagerar nesse frio, é melhor você entrar.
— Você precisa experimentar isso. É tão docinha! — Ela entregou a maçã para mim. Tentei recusar sem sucesso; a criança sabia como me convencer.
Ana olhou para cima, e acompanhei seu olhar até Kain. Tinha até me esquecido dele.
Kain agachou para ficar do mesmo tamanho da garota, que continuava a encará-lo com fascínio. Ele ofereceu um sorriso largo para ela, levando a mão dela aos lábios num gesto cavalheiresco.
— Como devo chamar essa princesa? — perguntou.
— Eu sou Ana, a melhor amiga de Mandy. E você, quem é?
— Esse é o príncipe Kain Castilho. — apresentei.
O rosto de Ana se contorceu em surpresa; ela olhou para mim e depois para ele várias vezes.
— Alice vai morrer de inveja quando eu contar para ela que um príncipe de verdade é seu amigo. — Ela disse isso correndo para a amiguinha que estava do outro lado da praça, balançando os pezinhos em um muro baixo.
Nem tive tempo de dizer que nós, na verdade, não éramos amigos.
— Gostei da sua melhor amiga. — A cara carrancuda de Kain se desfez; as covinhas em suas bochechas estavam mais fundas. Crianças realmente conseguiam fazer milagres.
— Ela é um amor.
Um grupo de pessoas se aproximou, fazendo reverências e agradecendo a Vossa Majestade pela comida. E eu aqui achando que ninguém sabia quem ele era. Olhares de curiosidade foram direcionados para mim; algumas meninas da minha idade mediram meu corpo de cima a baixo. Eu sabia o que elas estavam pensando: que merda o príncipe tinha na cabeça de andar com alguém como eu. Não era uma beldade, meu corpo era magro demais, meus olhos eram fundos, minha boca cheia e ainda era a pessoa que mais causava confusão nesse complexo.
Não era referência para ninguém.
Demoramos o dobro do tempo para chegar aos portões; cada passo era interceptado por mais gente querendo agradecer ao príncipe. Até parecia que tinham se esquecido de que estávamos sobrevivendo há mais de dez anos sem ajuda nenhuma da família real.
Continuei andando devorando a maçã que Ana me deu vagarosamente com a melhor cara de paisagem que eu conseguia fazer.
Edmundo abaixou a cabeça quando me viu; consegui observar de relance que seu olho direito estava roxo e seu lábio inferior, cortado. Senti satisfação em vê-lo com o rosto daquele jeito; trazia uma profunda alegria saber que ele conseguia ficar pior do que eu quando apanhava.
— Senhor, os cavalos já estão prontos. — Ele disse, sem levantar a cabeça.
— Obrigado. Espero que a dor esteja melhor hoje. — Kain disse sarcasticamente. O guarda apenas assentiu com a cabeça, abrindo um pouco mais o portão para passarmos.
Esperei estarmos a uma distância razoável dos ouvidos do guarda para falar:
— Eu daria um beijo na pessoa que fez aquilo com Edmundo.
Kain fez um som de engasgo; sua mão massageava o pescoço em busca de alívio.
— Cuidado com o que você fala, Mandy.
— Ai, desculpa. Me esqueci que ele é um dos guardas reais. Não deveria falar assim na sua frente. Não me leva a sério.
— Que bom, porque se eu fosse levar a sério, agora você estaria me devendo um beijo. — Kain traçou minha boca com os olhos, mordendo seu lábio inferior.
Minha cabeça estava girando; meu corpo todo estava a ponto de entrar em erupção. Pelos deuses, esse homem queria me matar — e conseguiria se continuasse me encarando dessa forma faminta.
— Você precisa aprender a esconder o que está pensando. — Ele ri, é um som que transmite uma sensação de paz.
— E o que estou pensando?
— Que eu sou o homem mais lindo que você já viu.
— Hum, de fato você é muito bonito, mas já vi melhores. — Dou de ombro
— Então, você realmente estava pensando que eu sou bonito?
— Claro que não. — Fiz uma careta, cruzando os braços. — Só estava tentando inflar um pouco o seu ego.
Kain soltou uma risada curta, descrente, e se aproximou um passo — perto o bastante para que eu sentisse o calor que emanava dele, mesmo no frio cortante do inverno.
— Está fazendo um trabalho terrível, então.
— Você se acha demais. Precisa de alguém que coloque seus pés no chão.
— E você se candidata ao cargo? — A voz dele ficou ainda mais grave, tão provocante que parecia acariciar minha pele.
— Eu sou muito ocupada para lidar com casos perdidos.
Ele inclinou levemente a cabeça, como se estudasse cada detalhe meu, e depois murmurou, numa voz tão baixa que parecia feita só para mim
— Uma pena, porque acho que você seria excelente no trabalho.
Engoli em seco, percebendo que, de alguma maneira, tinha perdido o controle da conversa. E talvez... talvez eu nem quisesse recuperá-lo.
O som dos casco de cavalo aproximando tirando-nos do
O som dos cascos de cavalo se aproximando nos tirou daquele momento no mínimo esquecido para duas pessoas que acabaram de se conhecer.Kain lançou um último olhar intenso para mim antes de recuar um passo, como se guardasse todos os pensamentos perigosos para mais tarde.