Dias depois, com a poeira baixada e as investigações encerradas, Estelle sentiu um vazio profundo. O peso das tragédias que marcaram sua vida parecia ainda pairar no ar, como uma nuvem escura que se recusava a dissipar. A morte de Murilo e Paulo, as consequências de escolhas passadas e a dor de tudo o que havia sido perdido a faziam se sentir como se estivesse presa em um ciclo interminável de sofrimento.Foi então que Antônio recebeu a resposta da universidade, informando que, caso ele não aceitasse a vaga no próximo semestre, o departamento de química teria que ser oferecido a outro professor. Sem hesitar, Antônio e Marta tomaram a decisão de retornar à Inglaterra o mais rápido possível, sabendo que o tempo era crucial.Marta, sempre ao seu lado, havia decidido acompanhar o marido, e seu convite para Estelle acompanhá-los foi, de alguma forma, um impulso que ela precisava. Não estava pronta para recomeçar sozinha, mas sabia que, com a ajuda da irmã do cunhado, poderia encontrar uma n
O avião tocou o solo inglês sob um céu acinzentado e uma fina garoa, como se o clima tivesse decidido refletir o estado de espírito de Estelle. Ao seu lado, Betriza bufava entediada, e Marina dormia com a cabeça em seu colo. Pablo, desperto e alerta, observava tudo com olhos curiosos.O aeroporto parecia silencioso demais. Era tudo muito limpo, muito frio, muito longe. Estelle engoliu em seco. Ao longe, um homem de cabelos grisalhos e uma senhora de postura elegante se aproximavam. Eram os pais de Antônio — e sorriam como se aquele momento fosse a chegada da própria primavera.A mãe de Antônio estendeu os braços com delicadeza e abraçou Antônio e Marta ao mesmo tempo, como quem já havia esperado demais por aquele reencontro. Estelle recebeu um abraço caloroso de Thomas Wycliffe e sentiu o impulso de recuar, mas Marina acordou bem nesse instante e, sem entender muito, caiu nos braços do pai de Antônio como se fosse o lugar mais natural do mundo. Betriza permaneceu imóvel, observando de
Dois anos e meio haviam se passado desde aquela madrugada de gritos, sangue e promessas quebradas. E há anos que a vida de Estelle tinha virado do avesso — desde que ela enfrentou o horror, o engano e a dor de uma escolha que nunca deveria ter sido imposta. Mas o tempo, com sua teimosia silenciosa, seguia seu curso. E Estelle também.A nova casa onde morava com os filhos ficava a poucos minutos de caminhada da residência de Marta. Era menor, discreta, envolta por um jardim com roseiras e lavandas que insistiam em florescer mesmo sob o clima cinzento de Londres. Estelle começava, enfim, a chamá-la de lar. As meninas já respondiam em inglês quando brincavam entre si. Marina falava como uma nativa, e Betriza — embora ainda se fechasse em saudades — aos poucos aceitava a ideia de que sua vida agora acontecia ali, longe das praias brasileiras.Estelle, porém, seguia em trânsito. A mente ainda cruzava pontes invisíveis entre passado e presente. O coração oscilava entre a paz que buscava e as
Dois anos e meio antes — Hospital Penitenciário de Florianópolis. A luz do hospital era branca demais. Fria demais. Quase agressiva. Murilo abriu os olhos com dificuldade, como se a pálpebra tivesse o peso do mundo. A dor vinha antes da memória — uma fisgada no peito, depois uma ardência no ombro, e então o silêncio espesso da sala estéril. Ele não sabia se estava vivo ou apenas sonhando em estar.Só depois, entre respirações curtas e tosses doloridas, lembrou-se do som do disparo. Do chão frio. Da confusão. E da certeza que teve de que morreria. Mas não morreu.Murilo sobreviveu.Foi preso antes mesmo de sair do hospital. Algemado à maca, sentiu pela primeira vez o peso não da bala, mas de tudo que carregava por dentro. A culpa, o amor, o arrependimento, os silêncios que permitiu, os erros que cometeu.Ele não era um homem violento. Nunca fora. Mas havia sequestrado Estelle. E isso bastava para defini-lo, ainda que no fundo soubesse: fez tudo por desespero, por amor —
Alguns dias antes da festa de aniversário de Marta e Antônio, ele chegou em casa com o peso do mundo sobre os ombros. O dia na faculdade havia sido denso, as aulas pareciam não ter fim, e tudo que ele queria era silêncio. Ao entrar, largou os livros sobre a mesa da sala com um suspiro longo e cansado. O som do couro batendo na madeira chamou a atenção de Marta, que conversava tranquilamente com a sogra sobre detalhes do bolo e das lembrancinhas.Ela olhou para o marido e algo em seu semblante a alarmou. Levantou-se discretamente e foi até ele, silenciosa. O olhar que trocaram dizia mais que palavras: algo estava errado. Esperou que ficassem a sós na cozinha.— O que aconteceu? — perguntou, com a voz baixa, mas firme.Antônio hesitou. Passou as mãos pelo rosto como quem tenta apagar um pesadelo. Seus olhos, quando se encontraram com os dela, já não tinham a mesma paz de antes.— A casa da Estelle foi vendida, Marta... — começou, mas a frase seguinte foi como uma lâmina — ... e quem comp
Após a partida dos convidados, Estelle permaneceu para ajudar Marta. Enquanto lavavam os últimos copos, Marta percebeu o olhar vago da irmã, perdido em algum lugar muito além daquela cozinha. Havia uma palidez súbita em seu rosto, como se a cor tivesse drenado toda de uma vez, deixando apenas o corpo — presente, mas ausente.Em um breve instante de distração, Estelle deixou o refrigerante escorrer pela pia com mãos trêmulas, como se tivesse esquecido o que fazia. Pequenos sinais. Quase imperceptíveis. Mas, para quem conhecia Estelle, eram como rachaduras em uma represa prestes a ceder.Quando teve a chance, Marta se aproximou. Segurou levemente o braço de Estelle, com aquele cuidado que só quem ama em silêncio consegue oferecer.— Estelle… você está bem?A pergunta, simples, atravessou a muralha que Estelle havia erguido ao redor de si. Ela hesitou. Mordeu o lábio com força, os olhos fugindo para os cantos da cozinha como se procurassem abrigo.Então, em voz baixa, quas
O final da tarde tingia Londres com tons dourados e frios. As luzes da cidade começavam a piscar entre as janelas, refletindo sobre as poças d’água deixadas pela chuva da manhã. Estelle observava esse reflexo da janela de casa, uma xícara de chá entre as mãos e um cansaço profundo dentro do peito. Era difícil descrever o que sentia. A confirmação da paternidade de Pablo ainda martelava em sua alma como um sino rachado: ecoava, mas não trazia paz.Murilo era o pai. Pablo tinha o sangue dele. Mas… e agora?O barulho da campainha soou alto demais para seus ouvidos atentos. Tirou-a dos pensamentos. Com passos rápidos, percorreu o corredor. Não queria acordar os filhos, que descansavam após um dia cheio. Quando olhou pelo olho mágico, viu Marta do outro lado da porta.Com um sorriso leve, abriu e a deixou entrar. As duas se abraçaram, mas Estelle sentiu o corpo da irmã rígido, quase defensivo. Marta entrou e seguiu direto para a sala. Sentou-se com uma postura tensa,
Era um fim de tarde dourado, iluminado por luzes pendentes e flores espalhadas por todo o jardim da casa dos Albuquerque. Balões em tons de rosa claro e dourado flutuavam graciosamente ao vento, enquanto o aroma doce de tortas, frutas frescas e flores recém-colhidas pairava no ar. Betriza completava quinze anos, e aquele não era apenas mais um aniversário — era, silenciosamente, um recomeço para toda a família.Estelle observava a filha do outro lado do jardim, com os olhos marejados de uma alegria serena. Beatriz sorria, radiante, com os cabelos soltos dançando ao vento, rodeada de amigas, rindo de algo que Pablo havia dito. O menino, como sempre, encantava a todos com seu jeito leve, espirituoso e suas piadas inocentes. Era impossível não sorrir com ele por perto. E, de certa forma, ele também parecia mais leve nos últimos dias — desde que fora apresentado, formalmente, a Murilo.Estelle se pegou pensando em como tudo mudara em tão pouco tempo. O reaparecimento de Muril