Com a claridade do dia, a Nox Trium é bem diferente.
O muro todo preto da fachada não é imponente e o letreiro azul neon apagado passa quase despercebido para as pessoas da rua. Só mais um empreendimento qualquer na selva cosmopolita.
É fim de dia. O céu está rosa e laranja lá fora, mas ninguém parece se importar, porque dentro da boate as luzes estão acesas e as janelas e portas fechadas.
O segurança me leva até o escritório e um arrepio me percorre quando lembro que, há tão pouco tempo, eu estive ali, desmaiada naquele sofá — sendo cuidada por um tiro que eu nem tenho certeza que tomei, por um homem com voz de anjo e aparência de pecado batido com morango.
Quando a porta se abre mais uma vez, é Samiel quem entra. Um sorriso de orelha à orelha.
— Você veio mesmo — aquela voz de sonho bom invade os meus ouvidos.
— Você disse que eu tinha que vir se quisesse mais respostas.
Eu ainda quero ter certeza de que tomei mesmo um tiro ou… se preciso de um psiquiatra. Porque… como posso ter me curado tão rápido?
— Acho que a questão do emprego também pesou — ele zomba.
— Dinheiro é bom, mas não quero perder a minha alma.
Ele franze a testa, com um olhar divertido.
— Ninguém se corrompe tanto assim só por ser contadora de uma boate, Lexi.
Cruzo os braços no peito e levanto o queixo.
— Dizem que vocês têm uma seita aqui.
Agora ele gargalha.
— Não temos poder para tomar a sua alma — Samiel se aproxima e eu tranco o ar no peito. Passa uma mão no topo da minha cabeça, como se estivesse acariciando um animal. — Aqui você só entrega o que quiser. E não é a sua alma que a gente quer.
Um alerta piscou na minha mente. “Nós”, “a gente”. Samiel nunca diz “eu”. Por que?
— Vamos falar de negócios? — afasto a mão dele. — Afinal, isso é uma entrevista de emprego, não é?
— Então, vamos procurar Cael.
A cada passo que eu dou pelos corredores, percebo que o prédio antigo de três andares é todo deles. No terceiro andar, fica um apartamento — talvez dos dois — e no primeiro, a boate. Onde estamos, fica o escritório, o salão de jogos e mais alguma coisa, que parece ser o que Samiel procura agora.
O corredor termina em duas portas largas, que ele abre de uma vez.
A primeira coisa que sinto é o cheiro de suor misturado com borracha. A sala é enorme, com sacos de pancada pendurados e piso de madeira rangendo sob placas emborrachadas do chão. No fundo, um octógono de boxe e alguns aparelhos de musculação.
Estou perplexa. É uma sala de treinamento.
E então eu vejo Cael. No espaço aberto do centro.
Ele está sem camisa, cada músculo parece vivo, no corpo forte e definido de atleta, lutando contra outro cara. Os golpes são quase cruéis e, por um instante, eu penso em interromper.
Meu Deus, ele vai matar o outro…
De repente, Cael agarra o outro homem pelo pescoço e o j**a contra a parede com tanta força que um pedaço do reboco cai, deixando tijolos expostos. O som ecoa na sala e me faz dar um passo para trás.
Levo uma mão à boca, escondendo o som de susto que saiu de mim.
Sinto meus olhos arregalados, mas não consigo desviar. É assustador e, ao mesmo tempo, hipnotizante.
O cara cai no chão, ofegante e derrotado. Cael se vira devagar, ainda respirando fundo, e me encara com olhos estreitos.
Meu corpo congela, não consigo reagir, não consigo pensar direito. Seu jeito de me olhar me sufoca… e me arrepia.
— Se acabou com o treino, podemos ir para o escritório?
Cael só se vira e pega a blusa de malha no chão, ainda com agressividade. A veste com os olhos de assassino cravados nos meus, mas por um segundo, os meus não resistem e descem… até o abdômen rasgado pelos montinhos inchados… e mais abaixo, onde os dois rasgos musculares entram pela calça de moletom preta.
— Vamos? — A voz de Sami quase me faz saltar, e seu sorrisinho me faz corar de vergonha. Acabei de ser pega no flagra quase babando por um homem que parece me detestar.
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— E o que você precisa para começar?
Levanto as sobrancelhas.
— Você precisa analisar o meu currículo, precisamos discutir salário e…
— Você recebeu dois bônus por alta produtividade e capacidade técnica em um ano. — Sami me corta, casual. — Não vejo motivo para perder tempo com seu currículo.
Balanço a cabeça, já sei que não adianta perguntar como ele sabe disso.
— Quanto quer ganhar, Lexi? três, cinco, dez vezes mais?
Minha boca abre, mas nada sai. É inacreditável e estou sem reação.
Que tipo de entrevista de emprego é essa?
Então, Cael abre a porta do escritório e o lugar, de repente, parece minúsculo.
O corpo ainda está suado, marcando a blusa branca. Agora me encara com desdém, e isso ativa um lado da minha personalidade que, normalmente, eu mantenho escondida dos outros. A raiva por me sentir sempre tão… menos… do que os outros.
O que eu fiz para esse cara?
E já que vou ter que conviver com este homem insuportável, jogo alto:
— Dez vezes mais está ótimo — cruzo os braços no peito, desafiando.
— Contratada. — Sami diz, apenas.
Os dois ameaçam sair da sala.
— Espera! Eu preciso dos arquivos do computador, do acesso ao programa do sistema… preciso de tudo que vocês tenham — disse, como se isso não fosse óbvio.
Da estante lotada de livros, Samiel puxa um caderno e me entrega.
— Essa é a contabilidade do mês passado.
— À mão? Em que séculos vocês estão? — pergunto, boquiaberta.
Então eu abro a primeira folha e nos cantos, existem alguns símbolos estranhos desenhados…
Franzo os olhos. Isso é…?
— Japonês?
— Isso não é japonês, isso é… — Samiel para de falar, de repente. — Eu vou traduzir tudo para você.
Eu solto o ar pela boca, frustrada e perdida. Cael sai, tão calado quanto entrou.
— Meu Deus, Samiel, quem são vocês? — pergunto, com voz mais baixa do que deveria. Não espero de verdade uma resposta dele.
Ele pára no batente da porta e me olha.
— Nós já somos amigos, Lexi. Pode me chamar de Sami. — Ele faz uma pausa e abre um sorrisinho. — E vamos evitar ficar falando de Deus aqui dentro, tudo bem?
Eu puxo o ar com força e prendo.
Samiel disse que não tem poder para levar a minha alma, mas a sensação que eu tenho é de que tem algo muito errado com esse lugar.
E com essas pessoas.