Mundo de ficçãoIniciar sessão
(Visão de Rodrigo)
O cliente não apareceu. As pessoas adoram me fazer perder tempo, como se eu tivesse horas sobrando pra tomar café com amadores que não sabem honrar a própria agenda.
Fechei o tablet com força, respirando fundo. Outra manhã desperdiçada e outro idiota que eu teria que dispensar oficialmente depois.
Peguei meu café e empurrei a porta da cafeteria, quando uma coisa enorme, com orelhas pretas e um laço vermelho veio correndo pela calçada sem prestar atenção e esbarrou em mim com tudo.
O impacto foi forte o suficiente para me fazer dar um passo pra trás, e o café quente voou direto na minha camisa branca.
— Mas que p⁎rra é essa?! — rosnei, olhando pro desastre.
A criatura, que só depois identifiquei como uma cabeça gigante da Minnie, colocou as mãos sobre a boca da fantasia.
— Me desculpa!!! Desculpa mesmo!!! Eu tô MUITO atrasada!!!
A voz era feminina, assustada e desesperada.
E ela simplesmente tentou dar meia-volta e continuar correndo como se não tivesse acabado de virar minha manhã de cabeça pra baixo.
Estendi o braço e segurei o dela antes que fugisse.
— Ei. — minha voz saiu gelada. — Olha o que você fez.
Ela congelou, mas não tirou a cabeça gigante. Era ridículo, eu estava falando com uma Minnie de dois metros de altura.
Ela tentou se soltar novamente, fazendo a manga da sua camisa descer pelo braço, relevando uma tatuagem. Um desenho pequeno, em traços finos de um garotinho, claramente o Pequeno Príncipe sentado numa colina, olhando para uma rosa, com uma raposinha ao lado.
Mas antes que eu pudesse falar mais alguma coisa, ela arrancou o braço da minha mão.
— DESCULPA! DE VERDADE! — ela quase gritou. — Eu juro que… que… eu compenso! Eu só… PRECISO MUITO IR!
E saiu correndo com a cabeça da Minnie balançando como se fosse explodir a qualquer momento.
Fiquei parado na porta, com o café escorrendo e a irritação subindo como lava. A imagem daquela tatuagem queimava no fundo da minha mente por algum motivo idiota.
Que tipo de mulher corre pela rua fantasiada de Minnie antes das nove da manhã?
E por que diabos eu ainda estava pensando nela?Se eu encontrasse aquela Minnie desastrada de novo… ela iria se arrepender amargamente desse encontro. Entrei no carro, batendo a porta com mais força do que deveria. Minha camisa ainda estava úmida, colando no peito e deixando um cheiro forte de café queimado.
Ótimo, perfeito. Exatamente o humor que eu queria ter antes de uma viagem internacional importante.
— Vamos, Paulo.
O motorista deu partida, calmo demais pro caos que era a minha cabeça.
Tinha uma reunião marcada no Uruguai em poucas horas e um contrato milionário esperando. Não tinha espaço mental pra… isso.
Paulo me olhou pelo retrovisor.
— O senhor quer passar em casa pra trocar de camisa?
— Não. — respondi seco. — Não tenho tempo.
— Mas sua camisa está—
— Percebi que ela está manchada, Paulo. — cortei, impaciente. — Troco no jatinho. Segue direto pro aeroporto.
Ele assentiu, silencioso. Era por isso que eu gostava dele: não fazia perguntas desnecessárias e não contestava meu humor. Só dirigia.
(Visão de Mariana)
Eu corri, como se minha vida dependesse disso e, honestamente, dependia.
Virei no primeiro beco que encontrei e praticamente desabei na parede, puxando ar como se tivesse corrido uma maratona usando uma sauna ambulante na cabeça.
De quem foi a ideia imbecil de usar uma cabeça gigante de Minnie pra isso? Ah, é, minha ideia mesmo. Parabéns, Mariana.
Arranquei a cabeça da Minnie e o ar gelado bateu no meu rosto.
— Droga… — sussurrei, ainda ofegante. — Quase fui pega. E ainda derrubei café no cara… genial, Mariana, show de horrores completo.
Peguei o pendrive escondido no bolso interno da fantasia e o levantei na altura dos olhos.
Pequenininho, preto e sem etiqueta.
A porta de entrada pra verdade.
— Tomara que você tenha o que eu preciso… — murmurei, apertando ele na mão. — Ou pelo menos alguma pista. Qualquer coisa, só preciso provar que meu pai é inocente…
Passos ecoaram na rua, e eu me joguei atrás de uma pilha de caixas, abaixada, segurando o fôlego como uma criança escondida no pique-esconde.
Os seguranças passaram correndo, falando algo sobre “a mulher de fantasia”.
Fechei os olhos.
— Não sou eu, sou invisível. — sussurrei pra mim mesma.
Quando o som sumiu, prendi o cabelo de maneira bagunçada, deixei a cabeça da Minnie largada num canto e fui até as portas dos fundos da cafeteria. Abri devagarinho, vendo uma cozinha em caos de panelas e barulhos, mas ninguém olhava pra trás. Sorte minha. Me agachei e fui andando como um caranguejo disfarçado, desviando de funcionários, sacolas, bandejas.
Cheguei nas mesas, quase tropecei no pé de um cliente, e entrei no banheiro.
Tranquei a porta e respirei fundo.
Tirei a roupa preta da fantasia, larguei no lixo mesmo e amarrei o cabelo colocando a peruca barata, que coçava muito e os óculos escuros.
Me encarei no espelho.
— Você consegue. — falei baixinho para a minha versão pirata. — Vai encontrar a verdade, provar a inocência dele e vai dar tudo certo. Eventualmente… talvez… eu espero.
Guardei o pendrive no bolso da calça, saí do banheiro fingindo estar mexendo no celular e atravessei a cafeteria com a cabeça baixa.
Do lado de fora, entrei no shopping que ficava ao lado e me enfiei no banheiro lá dentro. Tirei a peruca, guardei no fundo da bolsa e vesti minha roupa normal.
Ajeitei meus óculos de grau e olhei meu reflexo nerd, atrapalhado e meio destruído.
Suspirei.
— Nossa… que manhã. — murmurei.
Então a imagem do homem com a camisa branca encharcada de café. Mal conseguia me lembrar do seu rosto, a cabeça da Minnie era horrível para enxergar direito.
— Que Deus me perdoe — falei, saindo do banheiro. — E que aquele homem me perdoe também …mas isso era questão de vida ou morte.
***
Eu não sei se estava com falta de ar ou se era só ansiedade mesmo, mas o ar-condicionado da Bellavita parecia mais gelado do que o normal naquela tarde. A sala do RH sempre me deu arrepios, mas hoje… hoje eu estava tremendo por outro motivo.
A gerente me chamou para “conversar”
Ah, por favor, já estava me vendo no futuro com crachá dourado, contrato permanente, mesa própria, e uma linda plaquinha escrito Mariana Castro — Analista de TI.
Respirava fundo, sonhando alto, sentindo o orgulho inflar no peito. Meu TCC já tinha sido apresentado, eu tirei a melhor nota da turma. Minhas horas de estágio foram completadas HOJE, exatamente hoje, e minha formatura estava a quatro meses. Eu estava pronta. Eu merecia. EU NASCI PRA ISSO.
O corredor até o RH parecia mais longo que o normal. A cada passo, eu repetia mentalmente: calma, Mariana, você vai ser contratada, não desmaia na frente da Carla… respira.
Bati na porta com meio fraco, nervosa.
— Pode entrar! — uma voz animada respondeu.
Abri a porta e fui recebida pelo sorriso enorme de Carla, a gerente do departamento de RH. Ela sempre me tratou bem, mas hoje, ela parecia sorrir demais.
O sorriso de quem tá prestes a te dar presente… Ou ferida.
— Mariana! Senta aqui, querida — ela apontou para a poltrona de frente para a mesa dela.
Sentei. Meus joelhos estavam tão juntos que eu parecia um pinguim. Carla abriu um arquivo, deu uma última olhada e fechou com um “clac” que fez minhas esperanças darem um salto.
Ela cruzou as mãos sobre a mesa e começou com aquela voz doce que todo mundo no RH usa antes de dar notícia boa.
— Bem… analisamos todo o seu período de estágio. O seu desempenho foi excelente. Seu supervisor só tem elogios, inclusive deixou claro que a quer no time de TI permanentemente.
Meu sorriso ficou tão largo que quase caiu da cara.
Eu sabia! Sabia! EU NASCI PRA ISSO!Mas aí… Carla suspirou. E recostou na cadeira e o seu sorriso perdeu 20% de brilho.
Na mesma hora meu coração gritou que lá vinha bomba.
Estreitei os olhos.
“O que foi?” — perguntei mentalmente, mas fingi educação e fiquei calada.
Carla ajeitou o cabelo atrás da orelha, claramente desconfortável.
— Olha… talvez o que eu vá pedir não seja exatamente o comum, nem o certo, mas… é uma questão de urgência. E eu realmente não sei de mais ninguém capaz de fazer isso.
Minha sobrancelha subiu sozinha.
— Tá… e do que você tá falando? — perguntei, já desconfiada. — E assim… se for ilegal, já aviso que tô fora, tá?
Ela arregalou os olhos, riu nervosa e balançou a cabeça.
— Não, não! Nada ilegal. — Deu um sorrisinho sem graça. — Na verdade, é um favor. Um favor… remunerado. Muito bem remunerado, por sinal.
Aquela frase sempre significa problema.
Cruzei as pernas e os braços.
— Tá. Que favor?
Carla respirou fundo.
— Bem, eu queria que você aceitasse trabalhar como… babá da filha do Sr. Ferreira.
Eu pisquei.Duas vezes.Três.
— B… babá? — minha voz saiu quase um latido.
Ela assentiu, totalmente sem jeito.







