Capítulo 6

O Soldado Embaixador vestia apenas uma tanga. Seu corpo apresentava diversos hematomas e cortes superficiais, seus joelhos estavam sujos, sua pele negra completamente lubrificada pelo suor. Ele empunhava dois pequenos bastões de madeira e parecia acuado, cercado por três homens com fardamento negro com detalhes dourados, no peito de cada homem o foguete negro sobre o círculo dourado, a bandeira de Cérnia. Às suas costas, uma quina de parede impedia a livre movimentação. Harlam arqueou um pouco o corpo, como uma fera que se prepara para dar o bote e, instintivamente, os dois homens mais a frente retraíram o corpo. O Soldado Embaixador aproveitou o momento oportuno para correr em direção ao soldado da direita, mas, ao invés de atacá-lo, com um salto mortal, transpôs seu inimigo, ficando com a maior parte do cômodo quadrado às suas costas, onde jaziam mais três homens, um deles inconsciente, os outros dois, fora de combate e apertando suas contusões. O soldado enganado tentou se virar, mas não foi rápido o suficiente, sendo brutalmente atingido na nuca por um golpe do bastão de Harlam. Os outros dois homens avançaram. O Soldado Embaixador ora bloqueava ora se esquivava de golpes à esquerda e à direita, despejados como uma torrente incessante. O suor escorria pela testa e chegava aos olhos, causando ardência, mas ele não conseguia uma brecha para respirar. Devido à pressão, recuava lentamente e sem olhar para trás. Um dos soldados fora de combate, percebendo a oportunidade, em um último esforço, esticou o corpo e puxou uma das pernas de Harlam que, apesar de conseguir manter o equilíbrio, foi atingido por um golpe de bastão do soldado à esquerda. O soldado da direita aproveitou a oportunidade para se jogar sobre Harlam que finalmente foi derrubado. Em um rápido giro de corpo no chão, conseguiu evitar a submissão e, ao mesmo tempo, desarmar seu adversário com uma torção de braço. Restava apenas um soldado, mas, justamente este último homem encontrou uma brecha, aproveitando o momento em que Harlam desarmava o soldado caído para se posicionar sorrateiramente atrás dele e forçá-lo à rendição.

Harlam ergueu os braços em sinal de paz e o soldado parou de estrangulá-lo com o bastão, jogando a arma para um canto e tirando o capacete. Seu cabelo era curto e crespo e a pele de um branco pálido. Os olhos verdes seriam chamativos, não tivessem de disputar a atenção com as diversas joias crivadas no rosto e o enorme cavanhaque preso em trança.

- Você foi muito bem, Embaixador, é a primeira vez que presencio cinco de meus homens serem derrotados dessa forma.

O Soldado Embaixador se levantou, esfregando o pescoço machucado e abriu um sorriso.

- Tenente Lima, por um instante eu achei que venceria o confronto!

Os homens se cumprimentaram em um abraço caloroso.

- Eu também, meu amigo. Tome um banho, assim que estiver recomposto conversaremos sobre esses assuntos menos importantes para nossos corações, porém, vitais para a história universal.

O grandino se curvou em uma saudação teatral, retirando-se da arena de treinamento.

Poucos anos atrás, quando propôs ao Ministro Borghi a missão de integração junto aos cernianos, o Soldado Embaixador foi considerado por muitos um imbecil. Pelos poucos que viram a missão com bons olhos, foi considerado apenas um tolo.

Sua origem humilde, no entanto, pesou para que o Conselho, por fim, fosse favorável. Harlam foi o primeiro cidadão grandino de origem simples a chegar ao cargo de Embaixador. Não que a ascensão social fosse proibida ou que a elite grandina conscientemente tentasse sabotar os menos favorecidos para impedi-los de chegar a tal cargo. A tradição milenar já tinha criado as regras que levavam a essa dificuldade. A sociedade do Grande Império era dividida em três castas:

a nobreza, posição hereditária cujos membros privilegiados eram os únicos a galgar naturalmente os altos cargos burocráticos e militares;

o militarismo, dividido em duas categorias, o alto militarismo, ocupado pelas tradicionais famílias militares, e o baixo militarismo, ocupado por cidadãos comuns que optam pela carreira militar e conseguem se graduar, recebendo a primeira insígnia;

 e por fim a plebe, composta pela grande maioria dos cidadãos que apesar do grande número de deveres, quase não possuíam direitos.

 As posições administrativas só podiam ser ocupadas por cidadãos que possuíssem insígnias e, todo nobre ou alto militar recebia a sua primeira ao nascer. Para os demais, a única maneira de adquirir a sonhada insígnia que simbolizava a ascensão social, era realizando alguma proeza esportiva ou concluindo a academia militar. Harlam cursou o serviço militar obrigatório, aos dezesseis anos e, em busca da insígnia, seguiu pelos cinco anos de academia militar, apenas para ascender socialmente e ser aceito em uma universidade administrativa. Ele era o espinho incomodo na carne da elite grandina, o único caso recente de um plebeu diplomado. Por esse motivo, tanto nobres quanto militares, viram nesta proposta de missão de integração, fadada ao fracasso, a oportunidade perfeita de removê-lo. Era consenso entre os membros do conselho de que ele acabaria morto.

Os cernianos receberam com desconfiança aquele Embaixador que era, historicamente, o primeiro a pousar na capital da República, o Planeta Serena, mas, em poucos meses, o jovem começou a impressionar os seus anfitriões, não por suas qualidades como embaixador, mas por sua simplicidade de hábitos, sua franqueza e até mesmo por sua dificuldade em aceitar desaforos, ficando conhecido carinhosamente pela República como o "Diplomata Brigão".

A personalidade de Harlam, na verdade, não, era exatamente como os cernianos acreditavam, a maior qualidade do Soldado Embaixador era sua sagacidade. Durante seus estudos, focou sua atenção na sociologia, antropologia e cultura cerniana. Ele sabia o que fazer e o que dizer para agradá-los, tinha noção de quais reações o favoreceriam ou o denegririam aos olhos da República e sabia que levar uma vida simples e acreditar no valor da honra eram características extremamente valorizadas entre os habitantes de Serena. Afinal, apesar de sua desconfiança nos atos do Grande Império, sempre existia a possibilidade de estar entrando voluntariamente em um ninho de cobras.

Quando, após ter tomado um longo banho, Harlam foi recebido para a reunião, percebeu imediatamente que Lima tinha realizado um bom trabalho. Estavam presentes dois comerciantes influentes e seis senadores. Todos declaradamente contra a manutenção da guerra contra a Liga Popular Estelar; e absolutamente contrários a qualquer contenda com o Grande Império. A única coisa que o inquietou imediatamente, foi a cadeira vazia à direita do lugar onde deveria se sentar. O convidado que ocuparia aquele lugar era peça chave de seu plano.

O Tenente se levantou e rapidamente as conversas silenciaram. Todos olhavam com reverência para Harlam, parado à porta.

- Seja bem vindo, meu amigo. A residência é minha, mas os convidados são seus!

- Mais uma vez agradeço sua generosidade, meu caro Lima, mas temo que sem a presença de meu convidado especial, não conseguirei convencê-los da verdade em minhas palavras...

Enquanto se acomodava em sua cadeira, observava a expressão de seus convidados, tentando imaginar se estariam ou não abertos às suas palavras. Não tinha jeito de descobrir, teria de tentar.

- Meus caros! O Tenente Lima já deve ter explicado, de modo geral, minhas intenções ao convidá-los para esse jantar. Ano após ano, vocês, cernianos, são acusados pelo Império e pela Liga de raptar um diplomata aqui, preparar uma emboscada ali, ou abater uma nave civil naquele outro setor. Fui enviado para Serena para recolher de um modo ou de outro, evidencias. Não para incriminá-los, mas para provar ao Império de que eles estão errados em acusá-los. Vivendo entre vocês, conhecendo sua cultura e seu povo, hoje eu posso afirmar com certeza que vocês são vítimas de uma situação absurda. Acusados injustamente de crimes.

Inicialmente desconfiados, conforme as palavras do Embaixador aqueciam seus corações, passavam a concordar com as afirmações, primeiro com gestos de cabeça, cada vez menos tímidos, e agora, até mesmo com ecos de aprovação.

- No entanto, por mais que eu quisesse provar que os outros estão errados, eu poderia negar que vocês obtiveram vantagens em cada desaparecimento?

O sorriso de Lima se tornou subitamente sério com o comentário de Harlam, acreditando que o amigo, de alguma forma, estava acusando os cernianos. Sua atitude foi imitada pela maioria dos presentes.

- Vocês poderiam negar que com o desaparecimento de influentes comerciantes estelares, a área de influência comercial de Cérnia, principalmente junto a planetas independentes, cresceu? Vocês não poderiam.

Neste momento, um dos senadores pigarreou alto, deixando evidente seu desconforto, e até mesmo interrompendo a fala de Harlam.

- Sua fama de Brigão o antecede embaixador, mas quando fui convidado para esse jantar, esperava ser servido com algo mais que insultos e acusações!

A fala foi recebida com murmúrios de aprovação e Harlam sorriu.

- Senador! Se eu o ofendo, é porque quero que sinta prazer com o que tenho para lhe servir! Eu não levanto esses questionamentos com o intuito de acusá-los ou ofendê-los, apenas para que entendam a posição dos Senadores e outros republicanos que não encontrando saída para responder oficialmente a essas questões, recorrem à guerra. Esses republicanos não são nossos inimigos e essa reunião não tem como objetivo atacá-los ou elaborar planos para enfraquecê-los, nossos inimigos são os interessados na queda de Cérnia, são os homens que sequestram deliberadamente pessoas cujo sumiço favoreceria à República, os tornando os principais suspeitos.

- Mas como descobriremos, então, quem são nossos verdadeiros inimigos?

O momento que Harlam temia chegou. Olhou para a cadeira ao lado, imaginando o que faria naquele momento.

- É nessa hora que meu último convidado deveria tomar a palavra...

A resposta veio da porta e atraiu os olhares de todos.

- Convite aceito.

O homem parado à porta media cerca de dois metros de altura e vestia uma armadura leve que não cobria quase nada de seu torso, exibindo uma musculatura potente e definida. Seu cabelo era comprido e castanho, completamente desgrenhado. Uma barba espessa cobria seu rosto. A bocarra estava aberta em um sorriso, exibindo dentes quebrados.

- Bárbaro León! Como é bom te ver!

Harlam se levantou e abriu os braços para envolver León. Os convidados assistiam à cena, perplexos.

Foi Lima quem fez em voz alta a pergunta que todos desejavam:

- Pensei que você tinha sido capturado pelo Império.

León gargalhou guturalmente.

- E fui! Capturado pela noiva deste homem indecente a quem vocês chamam de "Brigão".

Dessa vez, a pergunta partiu de um dos comerciantes:

- Harlam é noivo da implacável Tenente Polara?

Um dos Senadores pareceu inconformado:

- Sua noiva traz grandes prejuízos para nossa frota, Embaixador.

Harlam olhava de um lado para o outro, ouvindo o crescente número de questionamentos e acusações e, pensava que a reunião fugiria do controle quando Lima bateu na mesa, fazendo com que todos se calassem.

- Deixemos que Harlam e León terminem. Depois decidimos se seremos favoráveis ou não.

Alguns Senadores concordaram com a cabeça e, em poucos segundos, todos concordavam. Sentindo que o ambiente se tornava favorável, Harlam retomou a palavra:

- Bárbaro León esteve preso nas instalações do Império, capturado pela Tenente Polara que sim, é minha noiva, mas isso não vem ao caso, trilhamos caminhos diferentes e cada um de nós é responsável por suas próprias ações. Eu jamais julgaria qualquer um de vocês pelas atitudes de seus familiares ou companheiros, a Tenente realiza um ótimo trabalho para o Império e aposto que vocês desejariam muito tê-la a seu lado no campo de batalha. Sobre León, descobri duas coisas, a primeira é que não é tão fácil segurá-lo do lado de dentro de uma prisão, a segunda é que ele pode ser um valoroso aliado, assim como qualquer outro pirata. Pouco depois de Serena me aceitar como embaixador, em uma das inúmeras viagens que fiz, tive o prazer de entrar em contato com León, a quem recrutei para a minha causa. Ele tem usado sua influencia no subespaço e no mercado negro pra obter informações sobre os sequestros e sobre as naves desaparecidas, mas acho que é melhor deixar que ele fale sobre isso, ainda não estou a par de tudo.

O Bárbaro ficou alguns segundos em silêncio, criando uma aura de expectativa quase palpável.

- Tô pensando aqui no que falar, mas quem é bom com as palavras é o embaixador aí. Pra resumir, eu não descobri quem é que fez os raptos, mas eu sei onde estão todos os raptados e as naves. Infelizmente, nenhum dos meus contatos soube me dizer qual é a nação ou a procedência dos captores. Eles são impossíveis de ser rastreados até sua origem.

Harlam sorriu de satisfação com a notícia, León conseguiu cumprir com sua missão em boa hora.

-Com essas informações, precisamos decidir qual será o nosso próximo passo.

*

O alarme soou, indicando que era hora de partir para a missão de libertação. Capitã Polara abriu os olhos, confusa, sentindo as costas de sua mão latejar. De alguma forma aquele adesivo estava lhe transmitindo algumas memórias de Harlam. Um lado de seu noivo que ela jamais conheceu. Harlam era amigo de León? O que mais ele sabia sobre aquela missão? Por que não me informou?

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