Capítulo 5

Uma multidão saudava a lendária Capitã Polara com uma chuva incessante de aplausos, assovios e palavras de carinho, mas aquela manifestação não causava na mulher nenhum efeito positivo, apenas aumentava sua repulsa pelos seres humanos. Ela era aplaudida por quê? Por ter passado vinte anos destruindo vidas de pessoas a quem não tinha nenhuma desavença pessoal simplesmente por servirem sob uma bandeira diferente? Se ela se mantinha afastada de todos é por não ter orgulho de quem era, do animal que tinha se tornado, mas ali, sendo aplaudida, percebia que todos eram animais como ela, sedentos de sangue e utilizando uma desculpa qualquer para derramá-lo, mas, e se ela matasse um deles ali, naquele momento? Será que continuaria sendo aplaudida? O planejamento veio com naturalidade: O guarda da direita seria mais fácil, ele olha para o povo como se fosse ele o aplaudido, eu pisaria em seu pé, seguraria a arma em seu coldre, um chicote neurônico, enquanto o empurraria com toda força para fora da plataforma. Nesse meio tempo, o guarda da esquerda já estará empunhando seu próprio chicote, mas, antes mesmo de me voltar para ele eu estalaria o meu em sua direção, deixando-o fora de combate. E depois? Continuariam me aplaudindo? Eu acho que não, provavelmente matariam os mais fracos e lentos pisoteando-os enquanto correriam por suas próprias vidas. As imagens se formavam tão nitidamente na cabeça de Polara que seu rosto sisudo finalmente sorriu. A multidão recebeu o sorriso em êxtase.

Andando pelos corredores do alojamento onde ficavam hospedados todos os espaçonautas do Grande Império, Polara percebeu que a eternidade de Atlantis se resumia apenas à casca. Em vinte anos muita coisa tinha mudado no interior do prédio. Da última vez que passou por aqueles corredores, as paredes eram todas brancas e lisas, os cantos do chão e do teto ligeiramente arredondados de forma a não haver quinas, dando uma sensação etérea aos que por ali transitavam. Agora as paredes eram de um cinza azulado e por toda sua extensão se espalhavam monitores que retratavam as glórias de infinitas batalhas vencidas pelo Império, bem como noticiavam as campanhas em curso. A tecnologia também tinha mudado muito, apesar da funcionalidade parecer ser exatamente a mesma.

O soldado que a escoltava parou de andar subitamente e apontou para a porta mais próxima, dizendo:

- Este é seu quarto.

Polara agradeceu com um aceno de cabeça, mas o soldado não se afastou, como seria o esperado.

- Muito obrigada, soldado, mas eu posso me cuidar sozinha.

- Desculpa, Capitã, mas tenho ordens de escoltá-la para onde precisar ir.

A Capitã percebeu que, assim como sua viagem até Atlantis tinha sido forçada, sua estadia ali seria mais como a de um prisioneiro do que como a de uma heroína de guerra. Polara avaliou o homem parado à sua frente, da cabeça aos pés. O fardamento do soldado era semelhante ao de Polara, com o símbolo do Império Grandino, um triangulo formado por quatro triângulos menores, sendo os três das pontas em azul petróleo com um círculo azul claro em cada centro, o triangulo central, também em azul claro, cortado por três barras em azul petróleo. Mas os equipamentos que ele utilizava eram muito diferentes: um capacete de combate protegendo completamente a cabeça e o pescoço, o visor escuro impedindo que ela visse qualquer traço de seu rosto; a farda, apesar de possuir um corte semelhante ao utilizado pelos espaçonautas era feito de um material menos maleável, provavelmente resistente aos projéteis e armas laser; no coldre uma pistola laser do lado direito; um chicote neurônico e um sabre no lado direito; preso na bota, uma faca. A Capitã sorriu, planejando sua fuga: Seria muito fácil sair daqui. Antes que esse idiota percebesse o que está acontecendo eu já teria transformado sua vigilância em sono profundo, mas de que isso me adiantaria agora? Sem dizer palavra, Polara entrou em seu quarto e ficou parada, de costas para a porta até escutar o som de seu fechamento.

Desde que saíra da nave, estava preocupada com o adesivo colado em sua mão, aquilo servia para prejudicá-la de alguma maneira? Já tinha ouvido falar de nano computadores que eram aplicados em prisioneiros de forma a controlar parte do cérebro e reintegrá-los à sociedade. Também poderia conter algum veneno, mas de tantas maneiras mais simples e eficientes para matá-la, porque o Império recorreria a tal estratagema?

Polara tentou arrancar o adesivo de sua mão, sem sucesso, era como se seu corpo o estivesse absorvendo. Não, não era isso, era como se o adesivo estivesse se camuflando em seu corpo. Ela ainda podia discernir o contorno retangular onde suas veias não eram mais visíveis, mas o adesivo tinha adquirido o mesmo tom de sua pele. A Capitã sorriu amargamente enquanto falava a si mesma:

- Sem liberdade e com uma tecnologia desconhecida implantada em meu corpo, um maravilhoso retorno para Atlantis! Vamos ver que outras surpresas agradáveis me aguardam!

Por um instante, esperou a resposta de Hal. Sentiu saudades da nave.

A Capitã andava de um lado para o outro do quarto, abrindo cada gaveta, revirando seu conteúdo, observando atentamente cada superfície, até que sua vista começou a embaçar. Sentiu uma pressão na cabeça, parecida com a sentida durante o salto em hiperespaço, ela só teve tempo para chegar à cama antes de desabar inconsciente.

*

- Eu não posso deixar de imaginar como os nossos antepassados deviam ser tristes, confinados em único planeta.

A jovem Polara, estava sem seu fardamento de suboficial, um dos raros momentos de sua vida que vestia um traje civil. Afastou um dreadlock que caiu em seu rosto, só para senti-lo escorregar novamente de trás da sua orelha e voltar para o mesmo lugar. Desfez o laço que prendia os demais dreads e refez o penteado, dessa vez aprisionando o cabelo teimoso. Harlam ainda olhava para o céu, na mesma posição, deitado no chão, o corpo sustentado pelos cotovelos. Ela sorriu. Ele sempre divagava falando sobre o espaço, mas aquela era a primeira vez que citava o Planeta Original.

- Por que se lembrou dos terráqueos, André?

- Estava pensando em nós dois e de como somos importantes um para o outro, como daríamos a vida, um pelo outro, mas, ao mesmo tempo, quando o espaço nos chama, não pensamos duas vezes antes de nos separar mais uma vez. Veja só, mesmo quando estamos juntos, não conseguimos deixar de contemplá-lo. Não consigo imaginar como nossos ancestrais conseguiam suportar passar a vida inteira confinados em uma pequena esfera, sem conhecer os diversos mundos e as diversas culturas.

Polara se aconchegou à Harlam, que mudou de posição para poder abraçá-la.

- Eu acho que gostamos do espaço por motivos muito diferentes. Você gosta de visitar os planetas, descobrir suas particularidades. Eu não. O que eu gosto no espaço é da solidão. Não ter ninguém perto de mim.

Harlam beijou a testa de Polara e apertou mais o abraço.

- E, no entanto, aqui está você. Poderia estar sozinha no espaço, mas decidiu pousar em Nébula para passar uns dias em meus braços.

Polara riu enquanto passava a mão no ventre de Harlam.

- Quando eu te derrubei, na noite em que nos conhecemos, imaginei que fosse um franzino, nunca imaginei que um homem com seu físico podia ser tão facilmente derrubado.

- Bastou eu falar que você trocou a solidão para me ver e você muda de assunto!

-Mudo, mas você tem que admitir que a observação foi válida.

Harlam estreitou os olhos e sorriu malicioso.

- Um bom embaixador sabe que em alguns momentos deve se manter irredutível, mas em outros a queda pode ser muito mais vantajosa.

- Seu manipulador!

Polara dava socos fracos no peito de Harlam enquanto sorriam. O sorriso se transformou em prazer e em poucos minutos estavam ambos despidos, aproveitando a brisa da noite e os prazeres do amor.

*

Àquela lembrança, a Capitã recordava daquele momento com nitidez, mas, daquela vez havia um estranhamento, algo estava fora do lugar e, foi somente quando as memórias continuaram que Polara entendeu: as experiências não eram as suas, de alguma forma, as lembranças que agora invadiam sua mente perteciam a Harlam.

*

Harlam sussurrou perguntando se a jovem estava acordada e, como não obteve resposta, removeu cuidadosamente o braço de baixo dela e se levantou da relva úmida. Lágrimas escorriam por seu rosto enquanto se vestia. Ele queria sair rapidamente dali e, por um momento, quase o fez, mas não conseguiu. Agachou-se ao lado de Polara e falou baixinho para a jovem que dormia:

- Tem alguma coisa errada com o Império e eu não posso continuar fingindo que não percebo. Temo que minhas ações irão acabar nos afastando mais e mais, mas não consigo pensar em outra solução. Essa hostilidade entre cernianos e estelares não faz sentido e acredito que de alguma forma é incentivada ou até mesmo perpetrada pelo nosso povo. Eu pedi permissão ao Império para trabalhar na comissão, junto aos cernianos, na tentativa de chegarmos a bons termos. Partirei essa manhã. Queria ter lhe dito isso, mas no fundo, o soldado-embaixador não passa de um covarde. Eu temo que, longe de mim, você se isole cada vez mais no espaço, mas não permitirei isso, pelo menos, não enquanto eu estiver vivo. Boas pessoas confiam muito em você e seu contato lhes faz muito bem. Não se afaste de Demopoulos e Berli, não se torne um humano sem emoções como se fosse uma vulconiana e jamais se esqueça do quanto eu te amo.

*

- Capitã Polara, desculpe-me por interromper seu sono, mas Marechal Sharif lhe aguarda na sala de conferência.

A mulher acordou sobressaltada e, ato reflexo, tocou o adesivo nas costas de sua mão. O local estava quente. Sua cabeça parecia mais leve, mas as recordações do sonho pesavam em seu coração.

- Muito Obrigada, Soldado. Em três minutos estarei recomposta.

Diferentemente do esperado, a reunião não era particular. A sala de conferência estava relativamente cheia. De rostos conhecidos, apenas Sharif, Berli e Demopoulos. Polara recebeu de maneira fria o sorriso de Berli, que se virou para sussurrar algo para Demopoulos. Assim como Sharif, desde a última vez em que vira, Berli e Demopoulos, vinte anos no passado, eles não tinham mudado nada em suas aparências. Berli continuava robusta, ainda usava o cabelo longo e solto, e ainda aparentava ser uma jovem de vinte e poucos anos. Demopoulos continuava magro, quase franzino, os cabelos cortados rentes à cabeça. Sentiu-se desconfortável e passou a olhar para Sharif. O Marechal Sharif também mostrava uma face acolhedora e foi presenteado com a mesma expressão fria de estranhamento. Mas além da sensação de que o tempo tinha sido congelado por vinte anos, outra coisa incomodava a Capitã: Se de alguma forma o Império estivesse envolvido com o que aconteceu a Harlam, ninguém naquela sala merecia sua confiança.

- Espero que esteja descansada de sua viagem, Capitã Polara, pensei em esperarmos até amanhã para apresentar os detalhes da missão, mas o Imperador Amaru acredita que devemos agir rápido, por isso, não a deixamos descansar como o merecido. Primeiramente, sou forçado a anunciar sua promoção. A posição devida a uma pessoa com as suas experiências e sua glória em combate é a de Tenente Brigadeiro e é desejo do Imperador condecorá-la pessoalmente.

- Marechal Sharif, eu agradeço muito a consideração e sei que devo muito ao senhor, você respeitou, durante todos esses anos, o meu desejo de ficar só e a minha recusa de voltar para Atlantis, mas o meu posicionamento continua sendo o mesmo. Infelizmente, nesse caso, o Imperador terá que se contentar com a minha recusa.

- Eu já tinha prevenido o Imperador de que essa seria sua resposta, ele aceitará sua recusa, você manterá o título de Capitã. A missão de extração será realizada com uma equipe pequena, em apenas duas naves, uma sob sua liderança e outra sob a liderança de Brigadeiro Berli. Mesmo sendo uma operação restrita, devido à insistência, usei de minha influencia para permitir a participação do Tenente Coronel Demopoulos. O General Louverture lhe apresentará seus companheiros do exército que ajudarão na missão em solo.

Louverture se levantou e Polara ficou surpresa com o tamanho do homem e a ferocidade de seu olhar. Depois de tanto tempo habituada ao combate, o pensamento veio naturalmente: Seria um prazer encontrar um oponente desses em campo de batalha. No entanto, a voz que saía daquela boca monstruosa era suave e aveludada.

- Tenho o prazer de disponibilizar para a missão um de meus melhores homens, o Coronel MacDonagan.

Do outro lado da mesa, o homem que se levantou chamou a atenção de Polara. Os traços de seu rosto eram suaves e mais comumente encontrados em artistas do que em militares. Possuía brilhantes olhos azuis ressaltados por lápis preto. Era um dos raros homens do império que utilizava cabelos longos e, a trança visível por trás do quepe era de cabelos lisos e louros de um tom muito claro. Ele fez uma breve reverência na direção da Capitã e seu movimento ágil pareceu etéreo.

- O Coronel recrutou mais cinco soldados e um cabo, todos de extrema confiança.  Lideraremos também três homens da Liga Popular Estelar que acompanharão a missão com o objetivo de testemunhar a integridade das ações do Império no combate à República de Cérnia e pela libertação de notáveis estelares. Apesar da insistência, não permiti que participassem dessa reunião, mas serão apresentados a você em breve.

O General parou de falar e se sentou, sendo imediatamente seguido por MacDonagan. Antes que o silêncio preenchesse o espaço onde antes estivera a voz suave de Louvertoure, Sharif retomou a palavra:

- As naves partirão em seis horas. O destino da missão ainda é protegido por segredo para evitar traição. Os saltos estarão programados nas naves. Para a missão, a Capitã Polara e a Brigadeiro Berli utilizarão naves modelo Caos Astral.

Quebrando os protocolos, Polara se levantou rudemente e interrompeu o Marechal:

-Vejo dois grandes problemas nesse plano, Marechal: o primeiro é que eu não viajo acompanhada e, parece gente demais para que todos embarquem na nave da Brigadeiro e o segundo é que eu já possuo uma nave e não pretendo pilotar outra com a qual não estou habituada.

Apesar de não parecerem surpresos com a reação da Capitã, o General Louverture, que não aceitava de seus subordinados nenhuma indisciplina, se mostrou extremamente contrariado e ficou ainda mais com a reação de Marechal Sharif.

- General, acredito que sua contribuição para essa missão já tenha sido dada, peço licença para conversar a sós com os meus subordinados.

A montanha humana se levantou e saiu pesadamente, o som de cada passo ecoando pelas paredes da sala. O contraste da suave presença de MacDonagal a seu lado era tamanha, que o homem louro parecia surreal. Assim que os espaçonautas ficaram sozinhos na sala, o Marechal voltou a falar.

- Entendo sua posição, Capitã, mas eu tenho feito concessões a você por anos demais, chegou a hora de você mostrar um pouco de gratidão. Você seguirá minhas ordens, por bem ou por mal. Ordenei, essa tarde, assim que você chegou a seus aposentos, que a Millenium Swan fosse destruída. Você voará em uma Caos Astral, pois não tem outra nave para voar. Está dispensada, Capitã.

A notícia da destruição da Millenium Swan atingiu o espírito de Polara como uma bomba nuclear, mas ela era orgulhosa demais para demonstrar. Levantou de sua cadeira e, com a expressão mais neutra que conseguiu, deixou a sala de conferência sem se despedir de ninguém.

A Brigadeiro e o Tenente Coronel também se levantavam para sair quando o Marechal, com um gesto de mão, pediu que voltassem a se sentar.

- Gostaria que me falassem francamente o que pensam sobre a sanidade da Capitã Polara.

Os dois trocaram um olhar. Era óbvio que já tinham discutido o assunto, mas, naquela conversa silenciosa, travada mentalmente, como só aquelas pessoas que convivem por anos conseguem manter, decidiam o que deveriam falar ao Marechal e o que poderia ser omitido, criando um meio caminho entre cumprir com as ordens recebidas e não trair a amizade de longa data. Sharif preferiu não ouvir a resposta.

- Eu sei que vocês devem muito a ela e não quero que traiam essa lealdade, mas penso que vinte anos de isolamento é muito tempo para que qualquer ser humano se mantenha são. Acompanhem as ações da Capitã com muita cautela e, a qualquer sinal que indique o comprometimento da missão, lembrem-se, ela é perigosa demais e experiente demais, destituam-na do poder, prendam-na, matem-na se for necessário. Estão dispensados.

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