Capítulo 2

P  I   E  M   O   N   T 

Scoppio

Um vulto passa pelos corredores cheios da faculdade, alguns alunos viram o rosto para observar a mulher de cabelos ruivos caminhar apressada e até desmantelada em direção a saída. Não demorou muito para que os comentários sobre a aula de degustação começassem a ser proferidos, alguns diziam com surpresa a respeito de tudo o que havia acontecido. Já outras más línguas, apenas deixavam a história mais “cruel” para o lado da mulher; o famoso telefone sem fio. 

Aurora sabia que tinha olhares sobre si, mas não ligava para nenhum deles, apenas continuou seu trajeto sem nem ao menos olhar para trás.

Quando seus pés tocaram enfim o lado de fora ela soltou o ar que prendia em seus pulmões. Era sempre tão difícil estar ali,  cercado por aquelas paredes tão cheias de histórias e lembranças. Ela se encolheu ao receber o vento frio a golpear-te a face, aurora olha pro céu por instante e suspira frustrada ao lembrar da previsão do tempo, que os alertava para o fato de que todo aquele dia seria nublado. 

O céu estava em um degradê de branco com cinza escuro.

O vento frio congelou seu nariz instantaneamente, sua respiração assim que o ar entrou pela corrente respiratória sendo tomada pelos brônquios, a fez perceber que estava respirando de forma abrupta, como se ar faltasse nos seus pulmões. Concerteza era consequência de momentos atrás em que ela prendia o ar e nem percebia que o fazia.

As mãos começaram a tremer e à vista embaçar, e sem mais perder tempo ela agarrou a mochila de forma segura e saiu da faculdade completamente desnorteada. O leito se contraia em uma irresolução, visto que a mulher sabia que estava respirando, mas a falta de ar ainda estava ali.

Está tudo na sua cabeça, está tudo na sua cabeça. Ela repetia.

Suas passadas na calçada eram firmes, se sentia em um filme daqueles comoventes em que cada passo dado pela protagonista a música ficava cada vez mais dramática e conflitante, era assim que se sentia, em um conflito eterno. 

A impressão que tinha é de que a qualquer momento as emoções inconstantes dentro de si iriam saltar para o exterior, engolindo e transformando todos aqueles ao seu redor, seja conhecido ou desconhecido, em um emaranhado de sofrimento. 

Ela sabia por onde andava, seu cérebro estava no piloto automático; mas não era como se ela fosse ligar para isso, tudo o que Aurora queria agora era chegar em casa e deitar em sua cama. 

Ela não notou que o sinal havia fechado para si e só é despertada quando o som de carros buzinando a assusta. Ela dá um passo para trás na calçada com os orbes azuis arregalados, e mesmo com esse "despertar" abrupto, ela ainda permanecia desligada do mundo ao seu redor.

Ainda havia aquela aula que encheu sua cabeça. Deveria sentir raiva? Nostalgia? Tristeza? Excitação? Ela estava perdida dentro de si.

E apesar de ter confrontado o professor na aula inteira, naquele momento ela não sentia mais aquele sentimento que borbulhava dentro de si. Na verdade agora ela não estava sentindo nada, e talvez isso que estivesse incomodando.

Pensar demais, sentir demais e sentir de menos.

Um esbarrão em seu ombro a faz perceber que o sinal havia aberto para a passagem dos pedestres, Aurora arruma o casaco e caminha pelas faixas brancas da rua ainda agarrada ao tecido que a mantinha quente, alheia ao par de olhos cinzentos a lhe seguir durante todo o trajeto. Ela não via nada disso, presa na sua bolha, desejando desesperadamente chegar logo em casa.

Ela sentia seu rosto endurecido, com toda certeza seu nariz estava vermelho assim como as bochechas. O órgão olfativo já denunciava que queria escorrer pelo sereno frio do dia, o que contribuiu ainda mais para o seu mal humor. 

Depois de alguns minutos caminhando, visualizar sua casa foi como se um sopro que ela sufocou dentro de si mesma tivesse sido libertado. Aurora se aproximou da porta já procurando a chave entre a bagunça de sua bolsa. Com uma reprovação prática em pensamento, ela apenas pescou a chave entre a desordem dos seus materiais e encaixou na entrada da porta. Com as mãos tremendo, ela gira o pequeno objeto e adentra de forma afoita no seu canto de aconchego.

A bagunça e a desorganização se fizeram visível, tal fato faz com que Aurora contraía o rosto em desgosto aparente. Entretanto isso não dura mais que alguns segundos.

Ela apenas tranca a porta de entrada e joga a bolsa no canto da casa perto da mesa de centro. A passos rápidos e a cada pisada forte, ela retirava uma parte de sua roupa de agasalho; visto que a casa estava quente na parte de dentro.

A mulher subiu os degraus e deixou o cachecol ali mesmo no caminho, em seguida o sobretudo e as botas. Ela abriu a porta do seu quarto e notou que assim como o restante da casa, ele estava completamente desarrumado; diferente do que estava na parte da manhã. Caminhou até a janela ampla do quarto e viu as pessoas andando de um lado para o outro, todos em suas correrias e dentro de suas cúpulas de vidro; cada uma em seu mundo e com seus problemas, sejam eles graves ou não. 

Autora quase conseguia visualizar cada um dentro de uma redoma, daquelas em que se balança e a neve cai em volta de um boneco de neve ou uma árvore de natal que brilhava, denotando um dos feriados mais queridos do ano. Algo que para ela não era nada demais, era apenas um feriado. 

Ela se afastou da janela e retirou a calça jeans do corpo a jogando em algum canto do quarto, puxou os edredons com força se jogando na cama cobrindo o corpo por completo, deixando apenas uma parte do rosto para fora. Seu olhar estava de frente para uma cômoda branca, que tinha uma luminária e um despertador em cima, além da cartela prateada. Ela ficou olhando aquela cartela, perdida em seus próprios pesadelos e questionamentos, até que pega no sono.

Um sono leve e conturbado para uma mente tão jovem.

[...]

A água descia pelos cabelos negros de forma contínua e espessa, causando um relaxamento quase que automático para o homem de ombros largos no chuveiro. Entretanto, por mais que os músculos estivessem relaxados, a cabeça dele estava como uma máquina, trabalhando a mil por hora.

Seus pensamentos todos voltados para sua aluna arisca e implacável, Aurora Bernardi.

E sem dúvida alguma ele colocaria inalcançável, como um adjetivo irrefreável para ele.

Queria confrontá-la mais uma vez e insistir na pergunta, pois precisava de uma maneira um tanto quanto inconsequente saber o que ela tinha contra ele e sua maneira de lecionar. Se bem que ao refletir sobre suas palavras, ele bem se lembrava dela ter dito.

"Talvez você deva pensar que o problema não é com sua aula, professore."

"Professore."

"Professore."

"Professore."

"Professore."

O que ela queria dizer com aquilo? E por Dio, porque ele não tirava esses questionamentos da cabeça? Por que desejava desesperadamente as respostas para todas as suas perguntas? Por que insistir tanto em saber sobre Aurora Bernardi? Ela deveria ser só mais uma aluna qualquer. Alguém que ele deveria reprovar sem nenhum remorso. Ela não era uma coisa e nem outra, ele não se enganaria quanto a isso.

Para completar, a forma eloquente e arrastada ao qual ela pronunciou professore não saía de sua cabeça, causando arrepios contínuos pelo seu corpo. 

— Mio Dio, sto impazzendo. (Meu Deus, estou enlouquecendo) — Disse de maneira cansada, enquanto deslizava as grandes mãos entre os fios molhados.

Desligou o chuveiro e se viu refletido através do vidro embaçado do box, seu abdômen perfeitamente esculpido parecia brilhar sobre a luz Solar, que se infiltrava de maneira transeunte pelas janelas do enorme reservado; as gotículas de água que escorriam de seu peitoral firme dava-lhes ainda mais destaque. 

Quem o visse daquela maneira, comparariam Dante com uma pintura renascentista, além de ter a certeza de que tal visão causaria êxtase e fascínio dos seus já tão enlouquecidos admiradores. Quisera o corpo escultural e a beleza impressionante ser a única qualidade desse homem, pois não era, sua inteligência exacerbada e suas qualidades internas eram tão admiráveis quanto as vistas a olho nu.

— Sei patetico Dante Martinelli. (Você é patético Dante Martinelli ) — Xingou seu reflexo, enquanto esticava sua mão para apanhar uma toalha e enrolá-la ao redor da cintura, enquanto usava outra para enxaguar os fios molhados de seus cabelos.

Por fim, Dante passou a mão pelos cabelos desordenados, jogando as madeixas negras para trás em um movimento e deixando a toalha para trás, enquanto saia do banheiro a caminho do quarto. 

Os lençóis de cetim da cama estavam arrumados e ao vislumbra-los por um momento sua mente pregou-lhe a peça; a vontade de bagunçar aquele pano vermelho com um corpo magro e pálido abaixo de si, com um cheiro doce grudando em sua pele e lábios carnudos subindo pela sua clavícula. Por fim, mãos grandes se enroscando em fios ruivos.

Dante balançou a cabeça em sinal de negação e pigarreou, se censurando pelas cenas criadas por sua mente. A cada pensamento novo, a cada nova inspiração solta pelo nariz do italiano, o ambiente se tornava mais quente e até mais "claustrofóbico" do que aparentava ser.

— Ho bisogno di bere. (Preciso de uma bebida) — Ao dizer isso ele muda sua trajetória, ao invés do closet, sai em direção da sua não tão pequena adega climatizada. 

Como professor de degustação e apreciador dessas iguarias, não era surpresa alguma ele ter esse "pequeno" mimo em seu apartamento. 

Puxou a garrafa de Château Palmer e derrubou o líquido vermelho dentro da taça. Seus movimentos eram precisos e graciosos, como se ele tocasse na mais bela fina arte, assim como Michelangelo ao terminar de avaliar uma de suas maiores artes: David.

A mão grande se encaminha até a haste da taça e toca no cristal do objeto, o frio do vidro começa a trocar de calor com sua palma e os olhos cinzentos continuavam tendo um grande destaque, apesar da iluminação neutra do ambiente. 

Agarrou a taça e caminhou até a varanda da suntuosa suíte, a vista era de tirar o fôlego; localizado em uma das zonas mais exclusivas e panorâmicas de Roma, a poucos minutos do centro histórico e no interior de uma esplêndida reserva natural, e é claro, próximo o suficiente da Italian Chef academy.

O que Sakura diria dessa vista? Indagou-se, para logo censurar-se em voz alta.

— Non credo a quello che sto pensando. (Não acredito no que estou pensando) — Diz ao colocar os braços sobre o parapeito metálico da janela e elevar sua cabeça, de maneira com que suas orbes fossem direcionadas ao céu, agora formado por nuvens escuras; tão cinzentas quanto o seu humor naquele momento. Os olhos negros vagaram por mais alguns metros, mas ao invés do céu, toda sua visão e foco era direcionado à sua frente, a movimentação de carros trouxe a si mais uma lembrança. E essa, ao mesmo tempo que o preocupou, o deixou enraivecido.

Ele estava dentro de seu carro quando viu a cabeleira ruiva despontar. Ficou observando-a e tentando de todas as maneiras não olhar para seus cabelos rubros emaranhados, pela mão que insistentemente passava entre os fios toda vez que ela atingia o nervosismo extremo. E ele tentou, tentou mesmo não olhar para sua boca excessivamente apetitosa que era mordida com frequência, o que complementa seu estado de inquietação. 

E ele tentou, tentou mesmo não perceber todas essas coisas sobre ela, e principalmente não se preocupar com Aurora — completamente distraída — tentando atravessar a rua de maneira inconsequente. 

— Arriva. (Chega) — Com tantos pensamentos ele enfim explodiu. —  Mi ascolterà e mi dirà cosa c'è di sbagliato in lei. Perché questa avversione per me e le mie lezioni. Devo sapere se non sarò mai abbastanza brava per lei, devo. (Ela vai me ouvir e vai me dizer qual o problema dela. O porque dessa aversão a mim e com as minhas aulas, sem enigmas dessa vez. Eu preciso saber se eu nunca vou ser bom o bastante para ela, eu preciso) — Estancou, se dando conta do que havia dito e perdendo a coragem no último minuto, jogou-se sentado sobre o colchão e abaixou a cabeça, ambas as mãos a segurando, talvez numa tentativa vã de não enlouquecer. — Che cosa sto dicendo Non dovrebbe nemmeno apparire in quest'ultima volta. (O que eu estou dizendo, ela sequer deve aparecer nesse último tempo)

Por fim, ele desistiu do vinho, engoliu o surto repentino, todos esses sentimentos conflitantes e se preparou para encarar o resto daquele tortuoso dia. 

Se vestiu, pegou as chaves do carro e seguiu pelas ruas de Roma, em direção ao trabalho. Não demorou muito até estar em seu destino, a Italian chef academy.

Ele tinha alguns minutos antes da sua próxima aula, então para espairecer seguiu em direção a sala dos professores. Porém, desistiu no último minuto quando na entrada, vislumbra uma cabeleira de uma cor castanha esquisita, de uma face enjoativa e um sorriso irritante, Alessandro Molinari.

Dante deu meia volta e gastou seus últimos minutos entre os livros da biblioteca. Quando a hora da aula chegou, ele voltou a andar pelos corredores em direção a sua sala. O primeiro passo dentro do ambiente quadriculado e ele sentiu a decepção tomar conta de si.

Pois como ele havia previsto, para sua aula, ela não compareceu.

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