AS ÁRVORES DO BOSQUE

Chuva? Não, orvalho, a retina ainda não se acostumou àquela luz, abre com sofreguidão, tenta focar, até finalmente conseguir enxergar o que tem ao redor, não tenho recordações de como vim parar aqui, aliás, o que é aqui? Não tenho noção de tempo, não tenho noção de mim, me desgasto só de tentar criar uma narrativa em minha cabeça, o corpo dói, mesmo assim é preciso levantar deste solo úmido.

Consigo caminhar apoiado nas frondosas árvores que me cerceiam, um gosto amargo na boca, álcool, é claro, é sempre o álcool, toda vez que penso em deixar de consumir me lembro do aroma inebriante, do toque dos outros ingredientes em meu palato, lembrar-se disso me dá sede, apesar de não me recordar de nada o vocabulário parece intacto, a aurora já raiou, preciso me localizar, é um belo bosque. Pela quantidade de folhas secas no solo creio que estamos no outono, à cabeça começa a zunir, ao tocar a cabeça noto a primeira diferença, careca, completamente careca, não tenho tantas lembranças ainda de mim, mas é fato que possuía alguma coisa naquela região, a roupa que visto também é estranha, um pano branco, uma espécie de moletom, o que o álcool me fez fazer dessa vez?

Sinto sede, olho ao redor procurando por alguma garrafa, algo que justificasse essa súbita perda de memória, um item prateado brilha a luz do sol, tem um cantil ao meu lado, balanço o objeto e é possível confirmar a presença de líquido em seu interior, removo a tampa e verifico, mas não contém álcool, a bebida presente é incolor, inodora e insípida, água, não há bebida mais desejada pelos sedentos do que a doce água, eu bebo todo conteúdo do cantil, a quantidade dentro dele foi suficiente apenas para molhar os lábios, parece até que a água teve o efeito contrário, estou com ainda mais sede após o gole d’água, levo o cantil vazio comigo na esperança de poder abastecê-lo na primeira oportunidade.

Continuo escorando-me nas árvores, sento um pouco, mal levantei-me mas sinto que exercitei-me na noite anterior, aquelas dores características de quem faz exercícios pela primeira vez, meu cérebro esta recheado de informações que substancialmente não me ajudam a compreender a situação, ao sentar sinto uma dor nos glúteos, passo a mão na região para ver se não sentei em algo, ao tocar na região sinto um relevo, como se minha pele fosse marcada, alguma deformidade talvez, o sangue gela, rapidamente busco levantar-me, trôpego, respiro um pouco e novamente refaço a conferência, de fato sinto um desenho na banda esquerda, uma numeração, sem duvida eram numerais. A situação gerou-me certo espanto, não conseguir lembrar-se da noite anterior, ou da outra, nem de nenhuma noite me incomodava, comecei a suar de ansiedade, tinha sede, tinha fome e o vento começava a causar incomodo.

Caminhei por mais um tempo, o suor começou a escorrer por minha testa, outras necessidades fisiológicas passaram a preencher minha cabeça, mudei a direção para urinar em um arbusto próximo, ao olhar por cima do arbusto percebi uma clareira e segui os feixes de luz até me deparar com uma espécie de vilarejo, em meio às árvores foi possível avistar ao longe os lençóis brancos, o ambiente transparecia o brilho, alegrei-me ao ver algumas pessoas conversando em um idioma que me era familiar, fui em direção ao vozerio vagarosamente, uma criança me viu e correu ao meu encontro.

— Tio Bobby! – a jovem me abraçou com força sorrindo intensamente e uma mulher que pendurava roupas na casa de onde a criança havia saído sorriu também.

A sensação de desconforto voltou de imediato, aquela criança não me parecia familiar, os olhos azuis fundos, vestes brancas e a ausência capilar na jovem também geravam a mim certo incomodo, outra mulher mais velha aproximou-se, beijou meus lábios e levou a criança consigo, decidi seguir a moça por entre os lençóis brancos. As casas eram de um branco leitoso, todas de mesmo modelo, pequenas cercas de madeira delimitavam os territórios, as pessoas sorriam para mim, um senhor me gritou com euforia “parabéns, venceste novamente não?” algumas crianças sorriam a me ver, não conseguia compreender nada, porém, a mulher que havia me beijado respondia a todos com simpatia e guiou-me até uma moradia próxima a algumas árvores de jatobá. A mulher tinha os lábios carnudos de um rubro intenso, sua pele remetia ao branco das casas, seus olhos negros pareciam enxergar o vazio em que me encontrava, sua altura era compatível com a minha, ela sorria de uma forma amável com seus dentes de um branco que contrastava com os olhos, seu abraço era caloroso e no topo de sua cabeça também notava-se a ausência de madeixas.

Ela acenou para os vizinhos, pediu para que a criança fosse brincar com seus amigos e trancou as portas e janelas, ao fazê-lo sua mascara caiu, a mulher correu em lágrimas na minha direção e disse-me “meu Deus, pensei que perderia-o dessa vez, eles não se cansam de elegê-lo? Como podem, depois de quase não ter regressado na ultima vez...” eu não me lembrava quem era a mulher, mas pelo tom de sua voz era nítido que tínhamos alguma intimidade, as lágrimas que derramava por mim eram puras e isso me incomodava, não por sua preocupação, mas pelo fato de uma pessoa que me quer tão bem não constar nos meus bancos de memória. Após o caloroso abraço umedecido por seu pranto, ela reparou em meu rosto desconcertado, soltou-me de seus braços e disse:

— Diga você não faz ideia de quem sou não é? – questionou a moça em meio ao pranto.

— Bom eu... Não, eu não tenho a menor ideia de quem você é de quem eu sou, onde estou ou o que qualquer coisa é – respondi seco.

—Não se martirize por isso – disse secando as lágrimas com as costas de suas mãos tão delicadas.

Ela sentou-se ao meu lado, pediu para virar de costas, hesitei por um instante, porém, resolvi confiar naquela pessoa, sequencialmente ela retira um objeto de uma greta na minha cabeça, o movimento foi rápido, senti um pouco de incomodo, porém, após o objeto deixar meu crânio às memórias retornaram como uma cachoeira, muitas informações chegavam simultaneamente, era difícil absorver aquela torrente de dados, levantei espantado, minha cabeça voltou a doer, sentei-me novamente no sofá e abracei a mulher que estava ao meu lado, meus olhos não foram capazes de conter as lágrimas.

— Como fui capaz de esquecer você Sara? – disse em meio aos soluços.

— Não se preocupe você esta aqui agora, respire com calma e tente se lembrar o que aconteceu na floresta está bem? – ela respondeu-me ao pé do ouvido em um caloroso abraço e me fornecendo um copo d’água fresca para aplacar a sede que sentia.

Olhei para ela, peguei o copo de sua mão e terminei de consumir todo o líquido com um único gole, o copo de vidro reluzente me trouxe recordações de outros períodos de minha vida, apesar das memórias terem voltado parecia que o cérebro tentava acessar muitas coisas simultaneamente, me senti uma criança adentrando um parque de diversões, mais especificamente aqueles parques com noites temáticas de terror.

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