1 - Estrangeiro

O Sol se punha depressa no horizonte, levando consigo a aura alaranjada que banhava as copas das coníferas mais altas da Floresta Silenciosa. O negrume e o frio que as primeiras estrelas traziam enquanto espreitavam timidamente sobre o céu cada vez mais escuro anunciava uma noite de nevoeiro denso, mas sem as chuvas geladas que costumavam despencar nas montanhas ao sul durante os invernos rigorosos – enchendo o céu com o poderoso espetáculo dos relâmpagos e trovões que podiam ser vistos a uma distância de dias de caminhada. Ainda era o final da floração, e um verão agradável se aproximava.

Em Ataya, um verão agradável significava ter orvalho pendendo das folhas das árvores pela manhã, caça, pesca e coleta abundante em todo o vasto território florestal e uma nova leva de Adolescentes deixando a cidade em direção à Amihud, a capital do reino.

Uma vez por ano, as Ordens dos Guerreiros Renascidos abriam a temporada de testes através da qual escolheriam os novos recrutas. Ser membro de uma das ordens era, para a maioria das famílias agnumianas, uma maneira de garantir que seus filhos gozassem de uma boa educação, orientação física, mental e espiritual, além de um futuro promissor na elite militar do reino. Os ordenados tinham todas as despesas com educação, alimentação e manutenção custeadas pelas próprias ordens, que garantiam quatro anos de treinamento sem custo algum para suas famílias, e ao seu término um bom soldo livre dos impostos cobrados pela capital, com exceção de uma porcentagem que era revertida às próprias ordens para sua manutenção.

Uma vez formados e cumpridos os três anos de serviço militar obrigatório, o jovem adulto era livre para abandonar a ordem e fazer o que desejasse de sua vida, ou ingressar efetivamente na vida militar. 

Os ordenados estavam entre os mais respeitados membros da sociedade. Ninguém insultava, questionava ou desafiava um ordenado. Com exceção de alguns dos filhos da nobreza, toda criança nascida dentro das fronteiras de Agnum aprendia a desejar fazer parte de uma das ordens. Dada a grande demanda, e ao limite máximo de vagas a ocupar, o ingresso era decidido, anualmente, através de um extenso e exaustivo exame.

O exame definia, entre as centenas de aspirantes a recrutas, as dezenas que iriam iniciar o treinamento efetivo e se graduar dentro de quatro anos. Todos os anos eles mudavam, e cada uma das seis ordens aplicava um tipo de exame específico. A idade mínima para prestar os exames era de doze anos. A máxima, quinze. Era possível repetir o exame quantas vezes um candidato pudesse, desde que os limites etários fossem respeitados.

O jovem observando o Sol se pôr montando guarda no topo da torre estava já no limite etário – o que significava uma única chance de prestar os exames e tentar aprovação. Pensar nisso o distraía de sua tarefa: vigiar a ponte construída acima do fosso que isolava a cidade às suas costas do terreno selvagem da floresta.

Tratou de acender as doze tochas nos beirais de pedra da torre cilíndrica. A friagem que se aproximava logo tornaria a tarefa de vigiar a fronteira desagradável e solitária, ainda que ele não fosse avesso ao silêncio e à solidão. Dado a poucas palavras, por ainda não se acostumar ao seu uso, era incomodado apenas pelo frio. As noites eram enregelantes na Floresta Silenciosa, e sua cabeça estava cheia demais para que conseguisse apenas se sentar e ignorar a temperatura. 

Sua desatenção era justificada. Os exames anuais se aproximavam, e apesar de desejar profundamente entrar para uma das ordens, não tinha muita ideia de como ocorriam. Na verdade, sequer havia viajado de Ataya para qualquer outra parte do reino. E a razão para isso era que ele não pertencia àquela terra.

Apesar de ter uma rígida política de proteção e isolacionismo, o reino não era necessariamente hostil a estrangeiros. Desde que estes respeitassem as leis e se comprometessem a manter a paz, eram totalmente absorvidos pela comunidade.

O problema residia no fato do rapaz não ser um estrangeiro comum. Ele era perigoso. Uma ameaça em potencial, conhecida apenas por alguns poucos infelizes envolvidos na maior tragédia da história recente de Ataya.

Passos. Suaves, como os de um felino. Não fosse sua audição ampliada pelos treinos de sobrevivência e rastreio, o rapaz só perceberia a aproximação quando o dono dos pés estivesse a apenas poucos palmos de distância. Só conhecia uma pessoa em Ataya que se movia assim.

– Boa noite, Uzias. – O recém-chegado cumprimentou.  

– Boa noite, Absalon. – O rapaz respondeu.

Absalon chegou até o último degrau de pedra que conduzia ao topo da torre carregando uma cesta de palha trançada que cheirava a pão fresco, com certeza acompanhado de um chá quente, ideal para uma longa noite de vigia. 

Sem mais palavras, Absalon se aproximou. Posicionou o cesto no parapeito ao lado de Uzias, debruçou-se displicentemente sobre a grande e gasta mureta de pedra que apoiava as tochas, afastou parte dos cabelos à altura dos ombros para trás da orelha e deu uma boa olhada pela extensão da fenda profunda que delimitava os limites urbanos de Ataya. Tudo em paz. Só o vento frio soprando e o sussurro dos primeiros animais noturnos saindo para sua caçada sob a luz de um céu límpido e sem Lua, mas adornado por estrelas vigorosas.

Uzias comeu e bebeu em silêncio, observando o olhar tranquilo do companheiro no horizonte e se perguntando, pela enésima vez, o que deveria se passar na cabeça dele.

Absalon devia ter vinte e poucos anos. Era esguio, de olhar entediado, cabelos castanhos à altura dos ombros, lisos e malcuidados. Seu rosto era fino e comprido, o nariz grande e um pouco curvo. Tinha uma cicatriz de corte lívida, diagonal, que começava embaixo do olho esquerdo e ia até o pé da orelha. Nunca falava sobre a cicatriz e com o passar dos anos Uzias se acostumou a parar de perguntar. Apesar do rosto imberbe, deixava crescer uma barbicha ridícula no queixo, de alguns poucos pelos compridos e muito espaçados, que eram assunto para piadas de todos os tipos. Apesar de forte não parecia haver um único grama de carne desnecessária em seu corpo, e mesmo que sempre se movesse como se atacado  por uma letal e permanente  preguiça,  o  fazia  em  um  silêncio  de tal ordem que mesmo os treinados guardas de Ataya, mestres  na arte da sobrevivência, do rastreio  e  da  caça,  às  vezes  saltavam de susto ao percebê-lo à distância de um golpe de punhal, surgido em meio ao silêncio quase absoluto. 

Terminando de comer e beber, Uzias devolveu a cesta, em silêncio. Absalon, entretanto, não a recebeu ainda. Virou-se de costas para o parapeito e com a mesma voz arrastada   de sempre, perguntou, olhando o horizonte.

– Como está se sentindo?

– Com frio. – Uzias respondeu, evitando a questão.  Sabia o real significado da pergunta, mas não queria falar no assunto. 

– A capital é um lugar perigoso para você, você sabe. – Absalon continuou. – Se eles associarem você ao desastre de seis anos atrás...

– Eu sei dos riscos. – Uzias respondeu. – Mas já tomei minha decisão e o Ancião já a apoiou. Eu vou junto com a caravana amanhã.

– Eu não pensei nem por um segundo que você iria desistir dessa ideia. – Absalon sentou-se de costas para a mureta do parapeito. Uzias o acompanhou. Ali, protegidos do vento frio era muito mais agradável conversar, mas ficavam exatamente de costas para a ponte de pedra, que deveria estar sendo vigiada. – E é por isso que eu precisava conversar com você hoje. Viajar para a capital sem um plano é estupidez. E você pode ser bem estúpido, se as circunstâncias permitirem.

– Eu sei dos riscos. – Uzias respondeu. – Mas já tomei minha decisão e o Ancião já a apoiou. Eu vou junto com a caravana amanhã. 

– Eu não pensei nem por um segundo que você iria desistir dessa ideia. – Absalon dizia, sentando-se de costas para a mureta do parapeito. Uzias o acompanhou. Ali, protegidos do vento frio era muito mais agradável conversar, mas ficavam exatamente de costas para a ponte de pedra, que deveria estar sendo vigiada. – E é por isso que eu precisava conversar com você hoje. Viajar para a capital sem um plano é estupidez. E você pode ser bem estúpido, se as circunstâncias permitirem.

Uzias não se ofendeu. Eram amigos havia bastante tempo. Absalon prosseguiu:

– Conseguimos alguém para recebê-lo. É um velho amigo meu, e sabe sobre sua condição. Vai saber como te orientar até que possa se virar sozinho durante os exames.

Uzias sentiu o ar fugir momentaneamente dos seus pulmões. Perguntou:

– Quando você diz que sabe sobre minha condição está dizendo que ele também estava no Cerco?

O vento assobiou por entre as copas das coníferas mais próximas, quebrando o diálogo entre os dois. Absalon assentiu.

Uzias pensou em quantas vezes ouvira a história do Cerco. Um episódio com o qual estava intimamente relacionado, mas que lhe escapava à mente sempre que tentava retê-lo, como se as lembranças fossem fumaça e ele tentasse segurá-las com as mãos. Não conseguia lembrar. Por mais que disso dependesse uma melhor compreensão de quem era. Do que era.

Entender o Cerco, entretanto, exigia entender também da história do próprio reino.

Segundo contavam os registros, no passado, o que hoje era a região de Agnum fora um aglomerado de cidades controladas por um monstro demoníaco, que diziam ser um enorme dragão com dezenas de cabeças, chamado pelos estudiosos de Hidra do Abismo. O monstro, terrível e poderosíssimo, era versado em uma espécie ancestral de feitiçaria que os estudiosos chamam de Diastropia.

Qualquer pessoa, animal ou planta contaminado por pela Diastropia sofria graves transformações, tornando-se agressivo e destrutivo, além de escravo incondicional do monstro. Fazendo uso desse poder, a Hidra construiu um exército de seres inteligentes capazes de se apossar deliberadamente de seres humanos e animais, estendendo assim ainda mais o seu controle sobre o reino. Esses seres eram chamados popularmente de Tenebrosos.

Incapazes de curar a contaminação pela Diastropia, e sem defesas contra os Tenebrosos, os seres humanos tiveram de se submeter aos desejos do monstro, que dominou com mão de ferro tudo o que seu poder alcançava.

Entretanto, aproximadamente trezentos anos no passado, um homem cujo nome variava dependendo de onde se ouvia ou lia a história desenvolveu uma arte sobrenatural capaz de dissipar os efeitos do Diastropia. Os velhos sábios de Ataya chamam essa nova arte de Dom. Esse homem enfrentou a perseguição dos Tenebrosos e dos homens controlados por eles, e à medida que seu nome crescia, suas façanhas atraíam admiradores e seguidores.

Quando o número de seus seguidores se tornou expressivo, o homem selecionou um grupo de doze dos melhores guerreiros entre eles, e os ensinou a utilizar o Dom. Estava fundada a Primeira Ordem.

Por três anos, A Primeira Ordem enfrentou e derrotou cada um dos generais da Hidra, em uma rebelião que trouxe esperança para todas as pessoas que viviam debaixo de seu controle.

A campanha seguiu irrefreável até que todos os comandantes do monstro fossem aniquilados, e os Tenebrosos sob seu controle expulsos ou destruídos. Vendo a diluição de seu poder, a Hidra em pessoa resolveu abandonar seu covil e lidar diretamente com a ameaça. Os seguidores do guerreiro lendário, apesar de fortes, não dominavam o Dom de forma eficiente o bastante a ponto de poderem lutar contra o monstro. O guerreiro então a enfrentou sozinho. Muita especulação foi feita acerca do resultado do combate, porque ao fim dele, nem o homem e nem o monstro foram vistos novamente.

Porém, mesmo sem a presença da Hidra, os Tenebrosos sobreviventes continuavam a vagar pelo reino, causando destruição, doença e morte. A primeira Ordem então iniciou a sua própria campanha para livrar o reino daquela ameaça. Mais cinco ordens nasceram de dentro da primeira, e o combate seguia, cidade a cidade. E no calor da batalha, o Dom se fortalecia. Foi a era de ouro das ordens. Cada ordenado valia por cem guerreiros comuns. Variações novas e absurdamente poderosas do Dom surgiam, causando assombro entre as pessoas comuns, e principalmente entre os inimigos.

Ao final de trezentos anos de combates, o reino foi libertado da influência massiva dos Tenebrosos. O Dom então voltou ao seu estado original, mais fraco – e apenas alguns poucos iniciados se dedicavam em desenvolvê-lo nos tempos de paz.

Nesse ponto, a história do reino se misturava à história de Uzias. 

Seis anos atrás, na fronteira entre Ataya e o reino do norte, houve uma série de repentinos ataques. Um grupo de combatentes desconhecidos, sob influência da Diastropia, estava causando destruição nos povoados da Floresta Silenciosa. 

Normalmente, os Tenebrosos agiam como parasitas – uma energia espiritual imune a ataques físicos – mas altamente vulnerável ao Dom em todas as suas formas. Eles usavam o corpo dos hospedeiros para interagir com o mundo físico, e combatê-los sem usar o Dom era o mesmo que condenar o hospedeiro à morte sem muitos resultados, uma vez que o Tenebroso poderia simplesmente abandonar o morto e procurar outra fonte de sustento. Quanto mais forte era o Dom em um ordenado, mais sensíveis aos seus efeitos eram os Tenebrosos.

Os hospedeiros possuídos por Tenebrosos eram chamados de Andarilhos Vazios, porque se dizia que eram desprovidos de alma, sendo apenas marionetes nas mãos dos Tenebrosos. A relação entre o Tenebroso e o hospedeiro era meramente parasitária. O hospedeiro era um corpo, e o Tenebroso, a cabeça. Apenas se o invasor fosse expulso a vítima recuperaria suas faculdades mentais normais.

O primeiro grande problema nos ataques deflagrados contra os povoados de Ataya se dava por uma estranheza nunca antes vista em Agnum: o líder do ataque, um menino de seus nove ou dez anos, não parecia o simples hospedeiro de um Tenebroso, como os outros hostis que o acompanhavam. Muito pelo contrário. Os dois, o menino e a entidade, agiam como se fossem um só. Dividiam o controle do corpo, ora o cedendo, ora o tomando. Colaboravam entre si, de forma consensual e inteligente. Não era um Andarilho vazio. Era outra coisa. 

A reação de Ataya desencadeou uma batalha terrível. A cidade enviou ordenados e mercenários para deter o Andarilho. De uma sucessão de ataques infrutíferos, apenas quatro guerreiros emergiram sobreviventes.

No final de tudo, o sacrifício de um ordenado – que mesmo diante do desespero recusou-se a matar o hospedeiro para vencer o Tenebroso – conseguiu manifestar um Dom poderoso o suficiente para vencer o parasita e poupar o humano. O derradeiro esforço custou-lhe a vida, mas o hospedeiro, o menino, sobreviveu.

Os quatro emergentes do combate o levaram para a capital do reino. Havia muito a ser estudado acerca daquela criança. A notícia do ataque e do medonho ocorrido chegou aos ouvidos do regente que, temendo a ameaça que o menino representava, ordenou sua execução imediata.

O respeito ao último desejo do homem que se sacrificara para não matar o garoto, porém, falou mais alto aos corações dos sobreviventes, que ignoraram a ordem e tentaram tirá-lo vivo da capital. Não deu certo. Eles foram interceptados. O garoto foi morto e os desobedientes, punidos. 

Pelo menos, na versão registrada nos ofícios da regência.

Os quatro sobreviventes conheciam a versão verdadeira da história, em que o menino foi levado de volta para a cidade onde havia sido encontrado, graças ao resultado de um complicado plano para forjar sua morte e evitar sua execução. Foi batizado com o nome de Uzias no mesmo dia em que uma nova categoria de hospedeiro Tenebroso foi acrescentada nos livros de pesquisas de Ataya: os Andarilhos Errantes, definidos como “uma classe única de hospedeiro que comunga com o Tenebroso, ao invés de servilmente ceder seu corpo para deleite total do mal”. Uma categoria de Andarilho que não tornaria mais a ser avistada em nenhum lugar desde então, e que daria à capital do reino a esperança de que a batalha terrível que resultara no Cerco fora um incidente isolado, uma anomalia, com todas as evidências suprimidas.

Uzias conhecia essa história muito mais por ouvi-la do que através de suas próprias lembranças. Tudo o que ele sabia a respeito de si mesmo datava dos últimos seis anos. Ele praticamente havia nascido de novo. Em Ataya foi reeducado e ensinado. Recebeu um nome e uma chance de recomeçar. Ninguém que só olhasse para ele poderia suspeitar haver qualquer coisa que o distinguisse de um autêntico habitante do reino. Exceto por um detalhe.

Brotando de seu punho esquerdo, como uma árvore de galhos secos, havia uma cicatriz que muito lembrava uma enorme tatuagem, preta, esverdeada, que se estendia até a altura do ombro. Ela cobria praticamente todo o braço e era grossa, como o feio resultado da queimadura de um atingido por um raio. Eventualmente, quando Uzias sofria algum estresse emocional intenso, a tatuagem exalava vapor escuro o tornando muito forte e muito agressivo. Não foram poucas as vezes, durante os primeiros anos de adaptação, em que vários homens adultos se feriram tentando segurá-lo durante um surto de fúria até que o Ancião chegasse e o acalmasse. Mais alguns anos de dedicação e prática árdua levaram o malvisto menino estrangeiro a um grande controle do seu temperamento e, ainda que a maioria dos locais seguissem lhe hostilizando, ao menos os mais chegados lhe tratavam com tanto respeito e carinho quanto a vida dura e pobre na cidade permitia. 

Uzias foi retirado de suas divagações pela voz de Absalon, que continuava a falar sobre o plano:

– Sim, exatamente. Eles estiveram no Cerco, e concordaram em colaborar. Sabem quem você é e podem te ajudar a se misturar com os demais prestadores do exame.

– Não quero ser um peso para ninguém. – Uzias respondeu. – Pelo que sei, todos os participantes do Cerco já tiveram problemas demais quando me trouxeram para cá.

– E seria um tremendo desrespeito com eles se você se arriscar dessa forma sem um plano. Não adianta recusar, eles já responderam, e você só vai dificultar as coisas se não agir de acordo com o combinado.

– Vocês não deveriam decidir as coisas por mim assim pelas minhas costas.

Absalon não respondeu. Mexeu nos bolsos e entregou a Uzias uma carta já com o selo de cera violado. Uzias, que lia muito mal, a devolveu para que Absalon, letrado, a narrasse:

"Caro Remaías – a carta dizia – é com muito prazer que receberemos em nossa casa o jovem Uzias (espero que tenha acertado o nome dele), já faz tanto tempo! É realmente uma pena que tenhamos tido tão pouco contato esses anos todos. Adameire e Acaiah também vão prestar os exames esse ano, pela primeira vez. Você não iria acreditar em como eles cresceram. Não os avisamos que teremos companhia – fiz isso para evitar a ansiedade, já que entre o recebimento dessa carta e a chegada do nosso convidado com certeza se passarão vários dias e não quero que a expectativa os desvie ainda mais dos preparos finais para os exames.

Sobre o problema de pele que ele tem no braço, não se preocupe: Aminadave fez uma coisa especial para ele. Os juízes não vão exigir que ele exponha o braço ao sol se souberem sobre a cicatriz, então vamos avisá-los e ele poderá manter o braço coberto durante os exames.

Estou ansiosa para rever meu sobrinho. Aguardando. Aryah."

– Quem é Remaías? – Foi tudo o que Uzias pensou em perguntar.

– Um nome falso. – Absalon respondeu. – Aryah imaginou que a carta seria lida por espiões da guarda antes de ser devolvida ao mensageiro. E estava certa.

– Certa? – Uzias perguntou.

– A carta chegou até nos com sinais muito sutis de violação. – Absalon respondeu, pensativo. – Se achassem que a carta não era perigosa, não se importariam em abri-la, lê-la, e depois ocultar sinais do procedimento. Isso quer dizer que Aminadave e Aryah, mesmo tantos anos depois do cerco, ainda estão sendo vigiados por tentarem facilitar sua retirada da capital. Pelo menos sabemos que a capital mordeu a isca, se não a carta teria chegado acompanhada de soldados carregando grilhões. Estão esperando que um sobrinho chamado Uzias vá visitá-los e passe uns dias lá antes dos exames. E esse sobrinho tem um problema de pele no braço, o que vai justificar que você mantenha a marca sempre escondida.

Uzias olhou pensativo para a carta. Mais uma vez, pessoas que ele não conhecia e que desde muitos anos atrás já vinham sofrendo com problemas e uma série de perigosas consequências estavam se arriscando para ajudá-lo.

– Porque tudo isso? – Uzias perguntou por fim. – Porque essas pessoas continuam fazendo tanto por alguém que simplesmente causou...

– Porque todos os dispostos a mudar merecem uma segunda chance. – Absalon respondeu, sem rodeios. – Nunca se esqueça disso. 

Todos merecem uma segunda chance se estiverem dispostos a mudar. Através dos anos, não foram poucas as vezes que Uzias ouviu aquelas palavras. Elas significavam muito mais ali, naquele lugar fronteiriço, que em todo o resto do território agnumiano.

Ataya não era apenas uma cidadezinha rodeada de vilarejos no meio de uma floresta de coníferas. Era, simultaneamente, a sede de uma das sete Ordens dos Guerreiros Renascidos, e o maior complexo penitenciário do reino. Criminosos de toda parte eram trazidos até ali para cumprirem pena em uma das várias prisões situadas ao longo da extensa área florestal. Quando, em uma das outras cidades, um prisioneiro não correspondia às exigências do sistema carcerário local, ele era advertido. Três advertências resultavam em exílio na Floresta Silenciosa. Os rumores diziam em todo o reino que os homens e mulheres enviados para a floresta jamais retornavam. Isso contribuía para uma enorme aura de mistério ao redor das Prisões em Ataya. Em alguns lugares, especialmente no leste, a mera menção ao exílio contribuía para uma melhora visível no comportamento dos prisioneiros. 

Mas havia uma razão muito menos sinistra por trás da ausência de retorno dos criminosos enviados e o motivo era simples. Os prisioneiros que cumpriam pena nas prisões da floresta percebiam que em Ataya eram tratados com tanta cortesia quanto demonstrassem. Desde que não tentassem fugir (o que era inviável, dada a extensão da floresta) ou tornar a cometer crimes, tinham permissão para trabalhar, trocar o que plantassem ou produzissem com as pessoas das cidades e aldeias e com o tempo e bom comportamento, se mudarem para vilarejos de prisioneiros. Ao fim das penas, a maioria já não queria mais deixar Ataya. Criavam raízes no lugar. Os cárceres só eram permanentemente ocupados pelos criminosos irrecuperáveis. Uma vez cumprida a pena, a maioria se mudava para a cidade, ou para alguns dos vilarejos próximos. Esse modelo derivava da própria conduta do guerreiro que iniciara a rebelião contra os Tenebrosos, conhecido por ser um homem notavelmente piedoso. Segundo suas palavras, repetidas mesmo tantos anos após seu desaparecimento, todo aquele verdadeiramente disposto à redenção deveria ter uma nova chance de tentar lográ-la. Essa ideia se tornou a base para toda a razão de ser da Ordem dos Redentores, que se embasava em Ataya, seu lema principal e por consequência, do sistema carcerário da cidade. Não havia uma única pessoa nas redondezas que não conhecesse o lema ou o seu peso simbólico. Isso tornava o povo da região, apesar de embrutecido pela pobreza e pelo trabalho duro, notavelmente pacífico e brando no trato de seus contraventores. 

– E essas pessoas... elas têm alguma relação com o homem que eu matei... – Uzias começou, antes de ser interrompido por Absalon:

– Você não o matou, Uzias. Sacrifício e homicídio são conceitos muito diferentes. O homem que preferiu morrer ao vê- lo ser consumido pela escuridão escolheu seu próprio destino. As atitudes dele deram a você a chance de ser quem é hoje. O que ficou para trás é passado.

– Não para a mulher e filha dele, eu suponho. – Uzias respondeu, verdadeiramente amargurado. – Eu sei que ele tinha mulher e filha. 

– Assim como todos os outros que morreram no cerco. Você conhece a história, já que te contaram inúmeras vezes. Todos os presentes eram voluntários e entendiam os riscos. Você não pode mudar o passado, mas pode melhorar o futuro. Garanta que o sacrifício deles não seja em vão. Faça o exame. Torne-se um ordenado. E quando a hora chegar, você será a prova de que não existem trevas suficientemente escuras que possam vencer a verdadeira redenção. Foi por isso que os sobreviventes lutaram para te tirar vivo da capital. Queriam que você vivesse e vencesse.

Uzias não insistiu. Levantou-se, a contragosto do seu corpo aquecido embaixo da mureta da vigia e encarou o ar frio e cortante da noite que já se estendia. A ponte de pedra continuava lá, impassível, ligando duas extremidades de uma ferida profunda no solo da floresta – tão profunda que não era possível enxergar o fundo, independente da luz que fizesse ao seu redor durante o dia. Absalon também se levantou, dizendo:

– Eu vim aqui render você. O Ancião quer vê-lo, assim como os outros que vão prestar o exame. Ele vai lhe dar umas instruções, e depois você vai dormir, porque a sua viagem começa amanhã.

– Quem mais vai comigo? – Uzias perguntou.

– Anamias, Várzios e Jerusha. Com você fazem quatro. – Absalon respondeu, contando nos dedos.

– Porque só esses? – Uzias tornou a perguntar. – Havia, ontem mesmo, uns trinta adolescentes em Ataya, vindos de todos os vilarejos, para se inscrever. – Não acredito que mais ninguém tenha sido considerado bom o bastante.

– A situação está complicada, Uzias. – Absalon explicou, voltando a encostar-se na mureta, de costas para a ponte. – Você sabe que a capital não tem mandado muita ajuda em termo de recursos para Ataya. E a viagem de exame é dispendiosa. Não faz sentido gastar dinheiro com jovens que não tenham realmente capacidade de retornar com uma aprovação em pelo menos uma ordem, especialmente quando sabemos que os invernos estão cada vez mais frios e difíceis por aqui. 

Uzias engoliu em seco aquelas informações. Mas não poderia discordar.

A Ordem dos Redentores, situada em Ataya, era de longe a mais pobre e menos popular entre as outras seis ordens. Não eram claras para Uzias, entretanto, as razões para isso – e poucos eram os que se prestavam a falar a respeito. O certo era que, apesar de jamais ter deixado Ataya, Uzias sabia que as outras ordens do reino gozavam de prestígio e de auxílio da capital, a cidade de Amihud. Ali, as coisas eram bem diferentes. Ele ouviu certa vez um ordenado dizer que Ataya significava “O Divino é a ajuda”. As más línguas, no entanto, diziam que esse nome, longe de ser simplesmente uma declaração de submissão ao Inominável, a divindade cultuada em toda Agnum, era também uma crítica política subliminar ao desleixo com que Amihud tratava a cidade e a ordem.

– Vá se aprontar. – Concluiu Absalon. – Você sabe que o Ancião não gosta de atrasos.

A caminhada pela trilha florestal poderia facilmente ser considerada assustadora, no escuro iluminado apenas pela luz fraca das estrelas entre as fileiras de árvores altíssimas, cada qual com dezenas de grossos galhos limosos à esquerda e à direita, e à ausência quase absoluta de qualquer barulho. Talvez assustador para um forasteiro, mas em Ataya, mesmo as crianças aprendiam desde cedo a evitar os animais perigosos da floresta, silenciosos e letais, além de como seguir as marcas específicas nas árvores que faziam uma trilha em direção à cidade. O ouvido treinado de Uzias não tardou a ouvir os barulhos típicos da habitação humana muito antes de seus olhos visualizarem os as tochas que encimavam os muros feitos com toras de madeira, contendo vigias com duas sentinelas cada uma. Aproximou-se do portão, onde um homem vestindo um manto de pele descansava armado com uma lança inteiramente feita de madeira, toscamente talhada.

– Uzias, você está praticamente atrasado. – O homem disse, ao avistá-lo.

Uzias o reconheceu pela voz antes que visse seu rosto barbado. Maltho. Era um ex-prisioneiro, que havia ingressado na milícia da cidade depois de cumprida sua pena.

Depois de atravessar os portões, Uzias avançou pela estrada principal ladeada de casas de madeira feitas de toras presas umas nas outras com cipós e betume. O resultado era sempre muito rústico, mas as casas eram confortáveis e abrigadas do frio externo. Algumas tinham até dois andares, e outras, varandas. Na frente de quase todas elas havia fogueiras – agora apagadas – e pequenas marcações dividindo os terrenos, que podiam ser fileiras de pedras, cercas baixas feitas de pedaços de madeira, ou até mesmo um traço grosso desenhado no chão de terra. O objetivo dessas marcações era simplesmente definir onde começava o terreno de uma casa e onde terminava o outro, porque nenhum deles servia para proteger a casa de qualquer ameaça. Essa era a função dos muros da cidade. E os habitantes confiavam nos muros como confiavam na milícia. Os únicos invasores ocasionais eram doninhas ou raposas, e essas eram combatidas com armadilhas e arapucas, razão pela qual as crianças eram proibidas de brincar perto dos muros depois de escurecer. A disposição das casas e das árvores favorecia a iluminação – elas não eram enfileiradas mas sim dispostas irregularmente, como um acampamento, de forma que só havia uma “rua” na cidade, que a atravessava de um extremo a outro, passando pela praça no centro – proveniente de tochas de piche retiradas de um pântano próximo, colocadas em postes com duas vezes a altura de um homem adulto.

Uzias atravessou a metade da cidade até chegar à praça, construída ao redor de uma árvore grande e realmente velha, sobre a qual crescia uma videira frondosa. Segundo a história da fundação de Ataya, quando os primeiros membros da Ordem dos Redentores chegaram à floresta, várias tribos arborícolas viviam na região. Essas tribos eram numerosas e extremamente hostis, devido à influência de um Tenebroso particularmente forte que habitava um carvalho, no coração da floresta. A Ordem dos Redentores combateu a entidade, vencendo-a depois de muitas lutas e sacrifícios, conquistando assim a simpatia e colaboração dos nativos.

Exatamente no local onde havia o carvalho, a Ordem deu início à construção da cidade de Ataya.

A sede da Ordem dos Redentores ficava exatamente atrás do carvalho, logo depois da praça circular que o contornava, e era a maior construção da cidade – além de ser a única feita em pedra. Um prédio de três andares, circular como uma torre com algumas fortificações anexas. Um pequeno castelo cinzento, coberto de musgo deixado ali para crescer propositalmente – sua função era ocultar a fortaleza no meio das copas das árvores. Uzias seguiu em direção às portas da frente, guardadas por dois ordenados.

Um deles, Talbo, era um homem magro e baixo de meia idade. Usava uma armadura espinhenta feita de cascas de árvore que se adaptava ao seu corpo de uma forma que ficava impossível distinguir o que era o corpo e o que era madeira. A armadura em si oferecia uma proteção mínima – um golpe certeiro de machado a atravessaria como se ela fosse uma roupa de couro – mas servia aos propósitos específicos para os quais Talbo havia sido treinado: a camuflagem. As farpas grossas que se projetavam da armadura não serviam apenas para ferir oponentes que tentassem agarrá-lo: elas também raspavam e acumulavam em suas entranhas diversos elementos do terreno por onde o seu usuário passasse. Assim, quando Talbo rastejava no musgo, ainda que fosse por apenas poucos minutos, a armadura ficava tão impregnada dele que era impossível distingui-lo do resto do ambiente até ser muito tarde para defesa. Mesmo estando ali, parado de pé sob a luz das tochas, era difícil distinguir entre certas partes de seu corpo e a porta ou a parede logo atrás dele.

O outro, esse mais conhecido de Uzias, era Mégaro. Mégaro era o oposto de Talbo, em vários sentidos. Jovem, sua armadura era grande, angulosa e misturava pedra, metal e madeira – nada mais adequado para um homem gigantesco. Quem o via vestindo a armadura e se movendo em combate poderia crer que se tratava de um monte de pedras em movimento – ou talvez algum tipo de golem animado por um feitiço. A verdadeira letalidade de Mégaro, porém, se demonstrava nos raros casos em que algum inimigo conseguisse lhe desferir um golpe brutal a ponto de partir-lhe a armadura. Livre do peso protetivo, Mégaro conseguia mover seu machado de guerra com a velocidade de uma espada curta, rápido e brutal. Sem a armadura, era um homem alto, musculoso e loiro, com cabelos compridos que lhe caíam pelos ombros e apesar de fazer muito sucesso entre as moças, casado. Ele era a única pessoa, além do Ancião, que conseguia segurar Uzias durante os ataques de fúria sem contar com ajuda.

– Rápido, eles estão no salão. – Disse Mégaro, com um sorriso apressado. – Não vão começar sem você.

Uzias abriu a porta e entrou. O salão principal era um espaço redondo, com uma bancada de pedra de cada lado, cada qual com três batentes. As bancadas eram arredondadas, de forma a se encaixar nas paredes. No centro da sala havia o trono de madeira – naquele lugar eram julgados os criminosos de Ataya. Mais ao fundo, havia o trono do Ancião, e os seis tronos dos Guardiões da Ordem – três à sua direita, e três à sua esquerda. Todos os tronos eram feitos de madeira e idênticos entre si, com exceção do trono central, que era maior, mais rústico e talhado com escritos antigos. Parecia menos uma cadeira trabalhada e mais uma poltrona grosseira. Nas festas ou nos julgamentos, os Guardiões da Ordem sentavam nos tronos, à esquerda ou à direita do ancião. Mas por alguma razão que Uzias desconhecia, dois dos sete tronos estavam sempre vazios: o terceiro trono à direita do ancião, e o segundo à esquerda.

Dois Guardiões nunca apareciam nas festividades, ou talvez houvessem morrido e nunca foram substituídos. Cada Guardião representava uma das seis disciplinas fundamentais ensinadas na ordem. Em Ataya elas eram: Combate Físico, Combate Tático, Espionagem, Sobrevivência, Antropologia e Diplomacia. Por trás dos tronos uma porta levava ao pátio interno do prédio da ordem, e mais adiante a escada que levava aos andares de cima. Mesmo dentro do salão, fechado entre as paredes circulares com apenas sete janelas (três em cada lado e uma logo acima da porta de entrada) pequenas e triangulares, o lugar emanava um frescor vívido, como se houvesse uma imensa plantação de menta sendo banhada por uma brisa tranquila e refrescante repousando no meio da construção. 

Hoje, o salão estava quase vazio. O Ancião estava sentado no trono do meio, o maior e mais rústico. Em sua frente, três jovens esperavam. Uzias se aproximou deles. 

O Ancião era um homem incrivelmente velho. Ninguém na cidade ou nas vilas das redondezas sabia dizer exatamente sua idade, e ele mesmo não a mencionava. Era um homem careca, com o rosto bastante enrugado e uma barba e bigodes grisalhos, bem cheios. O rosto redondo e os olhos estreitos tornavam difícil definir se estavam abertos ou fechados. Seu corpo, que outrora pudera ter sido tão musculoso quanto o dos lenhadores das vilas ao leste, ainda guardava resquícios de corpulência, tornando-o quase gordo e seu hálito cheirava fortemente a seiva de árvores. Seu manto, que mais parecia um arbusto dado o número de folhas e plantas costuradas nele, deixava de fora apenas os braços fortes e a mão esquerda, que segurava um cajado de madeira toscamente talhado com runas. 

Apesar da aparência amigável e gentil, Uzias já vivia ali tempo demais para tomá-lo por frágil. Quando, no passado, Mégaro – sem sombra de dúvida o ordenado mais forte da cidade em termos físicos – não conseguia controlar seus ataques de fúria, o Ancião serenamente vinha e o fazia, em geral com apenas uma palavra ou duas. 

Só isto era preciso. Uma palavra e Uzias desmontava ao chão como uma boneca de trapos, desprovido de forças. Nunca entendera como isso acontecia, e nunca havia encontrado a chance de perguntar.

Anamias, outro dos que estavam presentes, era um rapaz alto – quase da altura de Uzias – loiro, de olhos azul-celeste. Tinha catorze anos, mas era a primeira vez que fazia o exame. Uzias só o conhecia pelo nome e pela fama de brigar com lobos e felinos na floresta utilizando facas e vendendo as peles. Seu pai era curtidor.

Várzios tinha treze, e era baixo para a idade, mas largo e troncudo. Tinha pernas curtas, olhos castanho-escuros e cabelos pretos como carvão. Seu pai era um lenhador das aldeias a leste. Também era a primeira vez que prestava o exame.

Por fim havia Jerusha, a única menina e a mais nova. Tinha doze, olhos amendoados e ferinos, cabelos pretos e grossos, que lhe caíam aos ombros com tranças e baixa, de pernas compridas, tronco curto e braços cheios de lanhos e pequenas cicatrizes, que se misturavam à sua pele morena. Era conhecida pelo seu hábito de se mover pulando de árvore em árvore e passar dias no meio do mato se alimentando de frutas e de pequenos animais. Se Uzias pudesse ter tido uma irmãzinha, gostaria que ela fosse como Jerusha. Os dois conversavam e caçavam eventualmente, e eram tão próximos quanto os hábitos solitários dos dois permitiam. 

– Que bom que todos estão aqui. – O Ancião começou a falar. Logo o cheiro de menta fresca se misturou ao de seiva recém-extraída. – Eu acredito que todos vocês saibam exatamente porque eu os chamei e o que estarão prestes a enfrentar.

Todos os quatro assentiram.

– Amanhã, um destacamento de guardas da cidade de Amihud virá até aqui para recolher aqueles que deverão sair de Ataya e prestar o exame de ingresso em cada uma das seis ordens. – O Ancião prosseguiu. – E entre todos os mais de sessenta jovens de Ataya que se submeteram à avaliação preliminar, vocês foram julgados capazes de prestar o exame e obter êxito. Esse julgamento, entretanto, não fará diferença alguma diante dos examinadores das outras ordens.

“O que eu gostaria de pedir a vocês é que sejam fortes. Vocês nasceram ou cresceram aqui e conhecem o terreno melhor que ninguém. Já presenciaram avaliações de outros nos anos que se passaram, e cremos que vocês são capazes de obter êxito em qualquer uma das outras ordens, mas sobretudo nesta. Se acharem que não vão conseguir, tentem mais um pouco. Nestes exames, a falha não é critério absoluto de eliminação, mas a desistência é. Não desistam. Se vocês não forem aprovados em nenhum dos outros exames, tenho certeza que poderão ser aprovados no que se passará aqui. Todos nós, de Ataya e da Ordem dos Redentores esperamos recebê-los de volta como escudeiros de alguma ordem, e para ser sincero, nesta ordem. Vocês carregam parte do futuro de Ataya em seus ombros.”

Ele esperou que alguém se pronunciasse. Mas ninguém o fez. Levantou-se do trono, e parou diante de cada um deles, retirando de dentro do manto três saquinhos de couro contendo alguma coisa dentro, e entregou um para cada jovem de pé, com exceção de Uzias. Depois, voltou para o trono. 

Todos perceberam que Uzias não havia recebido, mas nada disseram.

Uzias sentiu um leve nó na garganta. De alguma forma, sabia que algo assim acabaria acontecendo, cedo ou tarde. Ele não era um filho de Ataya. Era um estrangeiro. Ainda por cima, perigoso. Estranho, porém, como se preparara para arcar com as próprias despesas durante a viagem e decidira ir, mesmo contra os conselhos de Absalon e, entretanto, agora que a ajuda igualitária lhe havia sido negada, sentia-se decepcionado.

Mas, decepcionado com o quê? Ele sabia que não era como os outros. Que a maioria da cidade olhava torto para ele, quando voltava dos treinos e das vigias, e ia dormir na casa que dividia com Absalon. Que todos sempre esperavam de alguma forma, a próxima vez em que ele surtaria e acabaria machucando alguém de verdade. Sentiu uma fisgada no peito e um leve formigamento no braço esquerdo.

Não, aqui não.

Engoliu em seco. Olhou para o Ancião, sentado de volta no trono, e reparou que desde que a conversa começara, os olhos dos dois sequer tinham se cruzado. O formigamento aumentou.

O Ancião apenas prosseguiu:

– Dentro deste recipiente está toda a ajuda que a cidade e a Ordem juntas podem lhes oferecer. Usem com sabedoria. A capital oferece uma pequena ajuda de custo a cada um dosprestadores do exame, em troca de um aumento na parcela de impostos cobrados à cidade que enviar seus candidatos. Mas não podemos arcar com esse aumento. Por isso, não esperem por esse recurso. Quando forem usar o que lhes fornecemos, lembre- se de que existem homens e mulheres trabalhando aqui para lhes dar essa chance. Talvez não seja muito, mas é que podemos oferecer. O suor e o esforço de cada cidadão desta cidade e das vilas ao redor estão dentro dessas sacolas.

Pela primeira vez, alguém se manifestou. Jerusha, que estava na ponta da fila, abriu o saco. O Ancião continuou impassível. Os outros dois também a seguiram. Cada um deles retirou de dentro do saquinho uma moeda dourada, mas muito maior que uma moeda convencional. Era a insígnia da cidade. Uma moeda de ouro brilhante com um ramo de videira cunhado habilmente em ambos os lados.

Uzias sabia para que serviam. Apresentar aquela moeda em qualquer estabelecimento comercial dentro do reino daria ao dono o direito de consumir o que quisesse, e a conta seria debitada diretamente do tesouro da cidade correspondente. Era um objeto muito valioso. Sentiu uma ansiedade bem conhecida deslizar devagar como um réptil, partindo do seu estômago esôfago acima até sua garganta. Ciúme. Inveja, talvez.

– Não é perigoso nos dar algo assim? – Jerusha perguntou, depois de examinar o objeto pressurosamente. – E se alguém nos roubar?

Mas os quatro se entreolharam. Sabiam muito bem que roubo não era um problema – ninguém fora de Ataya tinha como possuir uma insígnia, o que tornaria facílimo rastrear um ladrão. Além disso, estariam sob a vigilância de um grupo de examinadores. Não, o problema seria se algum deles resolvesse gastar mais que o necessário. Ou fugir com a insígnia. Já havia acontecido antes – não entre candidatos, mas na própria ordem.

Cada ordenado recebia uma dessas insígnias depois de formado, para usar no caso de emergências. Uma vez, um deles desertou. Foi encontrado dois dias depois, mas já havia gastado mais do que receberia em seis anos de trabalho no serviço militar. Foi um prejuízo enorme.

– Não cremos ter razões para duvidar de seu bom senso e boa índole. – Respondeu o Ancião, à Jerusha. – E a decisão não foi apenas minha. Todos os mestres da ordem concordam com a medida. Cabe a vocês protegerem essas insígnias levando em consideração aquilo que elas são: um tesouro valioso, não por aquilo que elas podem comprar, mas sim pelo que representam para a cidade.

O Ancião os observou por mais alguns segundos. Por fim, ergueu a mão, um sinal que todos entenderam como uma dispensa.

O formigamento no braço de Uzias começava a se converter em uma fisgada dolorosa. Tinha de sair rápido dali. Já nem se importava mais com a história das insígnias. Só precisaria de um tempo para arejar a cabeça e retomar o controle. De qualquer forma iria fazer o teste. Se perdesse a calma a cada contrariedade, não duraria dois dias fora da cidade. Quando, porém, chegou à porta, o ancião falou:

– Menos você, Uzias. Tenho algo a lhe dizer em particular.

Uzias parou. Péssima hora. Se saísse e respirasse ar fresco por dez minutos, poderia voltar e recomeçar de onde haviam parado. Mas seria o cúmulo do desrespeito ignorar o Ancião, de forma que se virou.

Seus olhos encontraram os do velho. E mesmo àquela distância, mesmo que os olhos dele fossem já tão comprimidos pela idade, podia ver um brilho esverdeado, quase como esmeraldas expostas à luz do Sol. Por um segundo, ou menos, os olhos dele reluziram um leve dourado, quase imperceptível. Uzias sentiu que não conseguia desviar o olhar. O homem abriu a boca, e quando sua voz saiu, Uzias pensou ouvi-la ecoando dentro da sua cabeça:

– Acalma-te.

O braço de Uzias parou imediatamente de incomodá-lo. O nó na sua garganta se desfez. E sentiu-se exausto. Mas não desmontou no chão, como fez dezenas de vezes no passado. O homem velho desceu do trono e veio caminhando em sua direção. Uzias simplesmente ficou lá, esperando o que quer que fosse acontecer. Quando estava perto o suficiente, o Ancião o abraçou.

Um abraço rijo, duro, apertado. O velho cheirava a uma mistura das plantas e raízes que faziam parte do manto que vestia, e Uzias apenas retribuiu timidamente. Estava confuso, mas sentiu alguma coisa ruim no fundo do seu peito se dissolver. Quando o Ancião o soltou, segurou sua cabeça pelas orelhas, com as duas mãos, e abriu um grande sorriso.

– Você pode ter crescido muito desde que foi trazido até aqui à beira da morte seis anos atrás, Uzias. – O velho começou a falar, em um tom íntimo, carinhoso e descontraído. – Mas ainda é o mesmo órfão desconfiado depois de todos esses anos. Nós nunca nos esqueceríamos de você. Você é um de nós, porque aos olhos do Senhor da Vinha, somos todos órfãos que precisaram ser recolhidos, cuidados e educados. Você cresceu conosco, aprendeu conosco e viveu entre nós. Eu não posso descrever como me orgulho em ver todos concordarem unânimes que você está pronto.

Uzias não disse nada. O nó na garganta havia voltado, mas por uma razão diferente. Vergonha. Gratidão. O velho o soltou, e continuou:

– Existe uma família que se ofereceu para custear sua viagem, naquilo que for preciso para você. Absalon lhe falou, não?

Uzias assentiu. O Ancião continuou:

– Eles foram os responsáveis por trazê-lo até aqui, seis anos atrás. Desejam conferir se cuidamos de você como prometemos que faríamos, e desejam muito ver no que você se tornou. Essa é a razão pela qual você não terá uma insígnia.

– Senhor, me desculpe... – Uzias começou, mas o Ancião não o deixou terminar:

– Você irá, não aceitarei uma recusa de sua parte. – Seu tom foi definitivo, apesar de não ser severo. – Você irá porque dei minha palavra de que faria o possível para garantir que eles possam ter a chance de continuar contribuindo para seu crescimento. E acredite, existem poucas coisas que eu não considero possíveis de serem feitas. Se quiser saber as razões pelas quais eles fazem isso, pergunte a eles quando chegar lá.

Uzias não objetou mais.

– Agora vá para casa se preparar para a viagem e dormir um pouco. Os próximos seis meses serão desafiadores. Amanhã você vai com a caravana.

Uzias curvou-se diante do ancião, que dispensou o gesto com um quê de impaciência. Ele era famoso por não gostar desse tipo de reverência. Quando se virou para sair, já às portas, ouviu o Ancião dizer:

– E trate de voltar com pelo menos uma aprovação.

Uzias sorriu, algo que tinha por hábito não fazer.

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