2 - Dívida de gratidão

Havia muito os olhos azuis da menina observavam a claridade irregular e avermelhada da lamparina a óleo se estender pelo telhado do quarto. A cidade ainda dormia, e mesmo as aves das redondezas ainda não haviam começado a cantar em uníssono, anunciando o dia que se iniciaria.

Adameire, assim como algumas centenas de adolescentes reino afora, estava tendo problemas para dormir. No fundo ela sabia que seria assim, quando faltassem só seis dias para o início dos exames. Insônia. Angústia. Excitação. Mesmo que, para ela, fosse apenas a primeira tentativa.

Estava se preparando da melhor maneira que podia para aquilo desde os nove anos. Treinos físicos excessivos. Estudos sobre cada uma das ordens. Conselhos e mais conselhos, dos pais, de amigos e familiares. A pressão, principalmente vinda da sua mãe. Passar na primeira tentativa era muito importante, porque Adameire sabia que apesar de poder contar com o apoio financeiro dos pais, a viagem era cara, e se isso não bastasse, todo o preparo a que vinha se submetendo criava muitas expectativas.

Virou um pouco o rosto e percebeu que, afinal, nem todos os adolescentes pareciam nervosos com os testes para ingresso nas ordens. Acaiah, seu irmão, dormia logo ao lado e, dado o modo como ele ocupava espaço na cama, seria uma surpresa se acordasse ainda que um exército entrasse marchando pela porta do quarto. Descansava com os braços e as pernas espichados, cada um apontando para uma direção diferente, de boca aberta e respirando baixo. Não parecia se preocupar com absolutamente nada.

Adameire irritou-se como de costume. Não pela primeira, nem pela segunda, nem pela enésima vez, e provavelmente não pela última. Acaiah tratava a situação toda com um descaso que era quase um insulto. Claro, para ele, a situação era totalmente diferente.

Ele havia nascido sob a bênção de uma profecia.

Não conseguiu mais ficar deitada. Afastou o braço do irmão, pousado displicentemente sobre sua barriga, pulou para fora da cama e olhou a rua. A janela sempre estava aberta e nenhum dos dois sentia medo de um invasor. As razões para isso eram muitíssimo simples. Em primeiro lugar, o quarto deles ficava no terceiro piso de uma casa de três andares, sem outras construções altas ao redor – e a arquitetura da casa dificultava muito qualquer tentativa de invasão por aquele aposento, já que era difícil chegar à sacada escalando por métodos convencionais. Em segundo lugar e mais importante, Acaiah e Adameire eram os filhos gêmeos de dois ordenados.

Dois ordenados. Marido e mulher. Só um criminoso desavisado ou extremamente estúpido tentaria qualquer coisa contra aquela casa.

A lua ainda brilhava, crescente e pálida no céu cravejado de estrelas. Mais ao fundo, Adameire conseguia divisar as silhuetas dos prédios da cidade de Nedavya. Uns grandes, outros menores, todos eles ainda no escuro, como se adormecidos junto com seus moradores. Mais para o centro da cidade era possível identificar as duas maiores construções: Primeiro, o palácio do governo, cuja sombra abobadada revelava um pequeno castelo com diversas torres irregulares ao seu redor. Adameire esteve lá duas vezes. O lugar ocupava um quarteirão inteiro. E o outro, apenas ligeiramente menor, era a sede da Ordem dos Armígeros. No passado, seu pai exercia no prédio a função de Mestre Forjador.

Suspirou um pouco encostada no parapeito, a camisa do pai à guisa de camisola sacudindo ao vento. Olhou de novo para o irmão, já com a irritação atenuada.

Acaiah tinha exatamente mesma altura que Adameire. Ambos possuíam os mesmos olhos cristalinos, as mesmas sardas no nariz e nas bochechas, os mesmos cabelos ruivos e lisos, a mesma pele branca e pálida. Aos seis anos, quando ambos mantinham os cabelos no mesmo comprimento, ninguém com exceção dos pais conseguia diferenciar os dois. Usavam as mesmas roupas, brincavam com os mesmos brinquedos, compartilhavam a mesma cama. Faziam tudo juntos. Era de se esperar que tivessem temperamentos idênticos.

Mas não tinham. Adameire era impulsiva, competitiva e cabeça-quente. Gabava-se de conseguir vencer o irmão em quase qualquer coisa que disputassem. Mesmo em atividades físicas, nas quais era esperado que um garoto se sobressaísse, Adameire frequentemente levava vantagem. Era esforçada e teimosa.

Acaiah, por outro lado, não era exatamente tímido, mas preferia evitar confusões e competição se fosse possível. Nunca lutava por nada, se rendia com muita facilidade e geralmente cedia a vez e a voz para qualquer um que quisesse tomá-las – não por ser avesso a competições, mas simplesmente por achar não valer a pena se esforçar muito por qualquer que fosse o motivo.

Essa atitude tão diferente por vezes causava discussões e brigas entre eles, mas como Acaiah geralmente cedia, a dissidência nunca se prolongava muito mais. 

Mesmo essa divergência tão fundamental de temperamentos, porém, não contribuíra para afastá-los. Ainda que as diferenças estéticas começassem finalmente a aparecer – lentamente o queixo de Acaiah começava a ficar mais largo, ao basto que o nariz de Adameire começava a se parecer bem mais com o da mãe, por exemplo – ambos continuavam muito misturados. Um vínculo que Adameire tentava abandonar, e com ansiedade crescente.

O fato de gostar muito do irmão dificultava bastante as coisas. Tanto tempo assim, unidos, acabou por criar uma relação tão intensa entre eles que ela achava difícil de desfazer. Mesmo quando os pais construíram um segundo quarto para ela, depois do surgimento dos primeiros sinais da adolescência, ela ainda migrava do quarto novo de volta para o antigo no meio da madrugada, e Acaiah, para variar, aceitava sem reclamar a exigência de nunca dormir sem usar calças quando os dois dividiam a cama.

No fundo, Adameire sentia uma pontada de insegurança porque o irmão jamais demonstrara o mesmo tipo de dependência emocional, por mais que sempre estivesse ali, por perto, participando das mesmas brincadeiras, aceitando suas imposições e dividindo a cama mesmo depois de todos já concordarem passar da hora de cada um ficar no próprio quarto. Ela não tinha certeza do quão importante era para ele, porque ele não falava muito sobre essas coisas.

Dentro de dois dias, a rotina de ambos seria mudada drasticamente. Eles fariam a viagem de uma ponta à outra do reino. Pelos próximos seis meses, estariam sendo vigiados, medidos, testados e estudados. Iriam dormir em camas separadas, e Adameire duvidava muito que os examinadores permitissem que uma garota e um garoto dividissem o mesmo dormitório, independente de quais fossem as explicações para tanto. E ainda que deixassem, como fariam depois que conseguissem ser aprovados?

Ela pensava muito nessa questão. Eram seis ordens, se não contasse com a Ordem dos Juízes, a sétima ordem, na qual não se podia entrar através dos exames. Já vira casos em que irmãos faziam os testes e iam para ordens diferentes. Ou um era aprovado em alguma, e o outro era reprovado em todas, tendo que voltar para casa. Em ambos os casos, eles ficariam seis anos ou mais sem se verem, talvez se comunicando apenas por cartas. Não tinha certeza se estava pronta para isso.

Seu raciocínio foi partido pelo barulho de cascos de cavalo bem embaixo da janela do quarto. Debruçou-se sobre o parapeito e observou.

Havia uma pessoa encapuzada montando um cavalo logo à frente da porta de casa. O pai de Adameire aparentemente o estava recebendo, porque ele desceu do animal e o entregou o que pareceu um rolo de pergaminho, que foi aberto e lido imediatamente. A pessoa amarrou o cavalo na entrada da casa, e logo depois entrou.

Adameire saiu do parapeito e silenciosamente abandonou o quarto. Não era comum que seus pais recebessem gente na calada da noite, e o primeiro negociador de metais só ia aparecer em duas ou três horas, quando já fosse dia claro. Passou pelo quarto dos pais, no mesmo andar. Abriu a porta devagar, e verificou que a mãe ainda dormia. Depois, desceu as escadas em silêncio até chegar aos fundos do primeiro piso, onde ficava a oficina.

O pai de Adameire, além de um ordenado, era um ferreiro muito habilidoso e um exímio forjador e reparador de armaduras e equipamentos de segurança. Não era do tipo que vendia em excesso – em geral, vendia o suficiente para poder trabalhar minuciosamente em cada uma de suas criações – mas as armaduras e equipamentos que produzia eram caros. Adameire conhecia vários casos de escudeiros que juntaram o soldo de seus três anos de serviço militar obrigatório apenas para comprar uma arma ou armadura fabricada pelo seu pai, e normalmente não se desapontavam. Ele nunca tolerou aprendizes, no que dizia respeito aos seus trabalhos pessoais. Era talentoso e detalhista.

Adameire ouviu os passos de duas pessoas entrando pela oficina. Escondeu-se em um pequeno vão ao lado do pé da escada, logo atrás de um barril de ferro moído, e parou para observar.

À frente, vinha seu pai. Um homem largo de braços firmes, sólidos e cheios de pequenas queimaduras e cicatrizes resultantes do ofício de forjador. Tinha os cabelos lisos, baixos, ruivos e os olhos muito azuis, como os dos gêmeos, mas suas semelhanças com eles terminavam aí. Seu rosto era quadrado, com algumas cicatrizes pequenas, e queixo anguloso. Usava bigodes à escovinha tão ruivos quanto os cabelos, mas mantinha o resto do rosto sempre barbeado. Chegara aos quarenta ainda como uma montanha de músculos, apesar de uma barriga ligeiramente saliente já começar a se sentir à vontade logo abaixo do tórax.

Logo atrás dele vinha a pessoa encapuzada. Era quase da altura do seu pai, mas definitivamente mais magro. Tão logo a porta que levava ao armazém foi fechada, o pai de Adameire convidou o estranho a tirar o capuz e ficar à vontade.

Ele sentou-se em uma cadeira próxima e o pai de Adameire se acomodou em cima de um caixote. De onde estava, ela conseguia apenas distinguir as costas do pai, mas podia ver o estranho claramente. O visitante abaixou o capuz à luz dos candeeiros da oficina.

Era um rapaz negro, careca, e com algumas pequenas cicatrizes escuras no topo e aos lados da cabeça, além de algumas também no rosto, nas bochechas e no queixo. Parecia ser alguém que havia se machucado continuamente em pequenos e sucessivos acidentes. Tinha olhos castanhos tão escuros que eram quase pretos, e eles eram desconfiados, ariscos e opacos – não inspiravam muitas intimidades. Tinha o nariz bulboso e lábios escuros e carnudos, encimando um queixo largo e forte. Adameire não podia dizer que ele era propriamente bonito – mas o conjunto geral a agradava, apesar das pequenas e muitas cicatrizes estragarem o efeito. Não parecia alguém da cidade – em Nedavya os jovens lidavam com a própria aparência de maneira mais cuidadosa: havia pastas, cremes cosméticos próprios para tratar mesmo os acidentes mais feios e o preço era geralmente acessível, de forma que apenas famílias muito pobres, ou gente que ostentava as cicatrizes, como seu pai, deixavam marcas como aquelas escurecerem e se tornarem intratáveis.

– Eu o reconheci no instante em que o vi. – Foi o pai de Adameire a falar primeiro. O rapaz continuava inflexível. – Eu sou Aminadave. Sou o esposo da mulher que enviou esta carta.

Ele sacudiu o pergaminho que lhe fora entregue na entrada. O rapaz o observou por um ou dois segundos. Depois, apontou diretamente onde Adameire estava escondida. Ela prendeu a respiração, enquanto o rapaz falava, em sua voz grave e lenta:

– Tem alguém ali.

Aminadave virou-se em um sobressalto.

Sem nenhuma outra solução, mas ainda se perguntando como ele a encontrara, Adameire levantou.

– Tá, eu estava espiando vocês. – Ela disse, com fuligem dos objetos próximos no nariz e nos cabelos. – Mas só porque fiquei curiosa. Não estava conseguindo dormir.

Olhou para o pai com ar de súplica. Ele gargalhou.

– Suba – disse, ainda rindo – quero apresentar você ao nosso convidado, mas tenho certeza que você prefere comparecer vestida. 

Só então Adameire lembrou que a camisa de seu pai expunha mais de três quartos das suas pernas. Tomada por um rubor violento, subiu as escadas correndo.

Quando desceu, meio minuto depois e vestindo calças de Acaiah que tinha encontrado largadas no quarto, o pai e o rapaz ainda estavam em silêncio, como se a esperassem antes de começar a conversar. O rapaz comia um pouco do guisado que sobrara do último jantar. Para evitar arrastar cadeiras àquela hora, Adameire se aproximou do pai em silêncio e sentou-se em sua perna, observando o estranho comer.

Por alguns minutos o silêncio só foi quebrado pelo som do talher em contato com a tigela de guisado. Adameire se aconchegou mais ao peito do pai, esperando alguma reação, que só ocorreu depois que a comida desaparecera por completo.

– Este é Uzias. – Disse o pai à Adameire. – Ele é seu primo, e está aqui porque vai prestar o exame para as ordens junto com você e Acaiah. – Depois, olhou na direção do rapaz: – Esta é minha filha, Adameire. Ela também vai prestar o exame este ano.

O rapaz continuava calado, o que não inspirava muita intimidade. Aminadave também não disse coisa alguma – e Adameire sabia que esse era o pretexto para que ela falasse. Ela não se fez de rogada:

– E para qual das ordens você quer ir? – Perguntou.

– Eu ainda não me decidi. – Uzias respondeu. – Na verdade não sei coisa alguma a respeito de nenhuma das outras ordens.

– Outras? – Adameire respondeu. – Você conhece alguma?

– Eu venho de Ataya. – Uzias respondeu. – Fui praticamente criado dentro da ordem dos Redentores.

Uzias viu os olhos da menina brilharem ao ouvir aquela resposta. Aparentemente o pai dela também percebeu, porque antes que ela pudesse fazer qualquer outra pergunta, ele a levantou do colo e interrompeu a conversa bruscamente:

– O nosso convidado está muito cansado. – E aumentou ligeiramente o tom de voz ao perceber que a filha ia protestar: – Chega, Adameire. Amanhã eu vou deixar você importuná-lo com todo o tipo de perguntas acerca da ordem dos Redentores. Por hora, vamos deixa-lo dormir um pouco.

E orientou Uzias pelo segundo andar para mostrá-lo onde ficava o quarto dos hóspedes, enquanto Adameire trotava escada acima, contrariada. Uma vez dentro do quarto, Aminadave o deixou à vontade.

Uzias aproveitou um pouco a solidão para poder pensar melhor sobre o lugar onde estava.

Primeiro, a cidade.

Nedavya era uma cidade enorme. Prédios feitos de pedra, cristal e vidro. Casas de madeira trabalhada e processada, lojas, estábulos, estalagens, templos. Uzias não tivera tempo de explorar a cidade, mas estava clara a diferença entre esta e a de onde vinha. Mesmo à noite, as ruas eram até certo ponto movimentadas, e as pessoas usavam conjuntos muito variados de roupas feitas de muitos materiais diferentes. Em Ataya, quase tudo era de pele, de plantas ou de madeira. A área florestal de Ataya era, sem dúvida, umas vinte ou trinta vezes maior que a área urbana desta cidade, mas com certeza sua parte murada, a cidade propriamente dita, poderia caber dentro do bairro onde moravam seus anfitriões.

Seus anfitriões, aliás, eram gente abastada, a julgar pelo quarto que lhe fora oferecido.

Uma cama de casal com um colchão que chegava a ser incômodo de tão macio. Uma poltrona coberta com um tipo de tecido que Uzias nunca havia visto antes, suave e aveludado, vermelho. Uma mesinha de madeira escura, brilhante e bem talhada.

Dentro do guarda-roupa havia muitos trajes de linho e seda – esses ele conhecia por causa das visitas dos membros da ordem dos Juízes, que traziam algumas dessas mercadorias como um presente da capital para o Ancião anualmente. O Ancião nunca ficava com elas – ele as recebia e depois as vendia, para usar o dinheiro nas contas da ordem ou da cidade. Talvez desse para custear um quinto jovem das terras de Ataya por uma viagem de seis meses só com metade das peças que havia naquele aposento.

Passou os dedos pelo tecido e sentiu a maciez. De novo, uma sensação ruim. Não pelo tecido, que era suave como água. Uma sensação de dentro do peito.

Lembrou-se de Jerusha, Várzios e Anamias, decidindo entre qual das estalagens mais baratas dormiriam, para reduzir ao máximo os custos. Lembrou-se da discussão entre os três, duas horas atrás, em que tinham de decidir continuar a viajar na frente dos guias durante a noite para assim chegar mais rápido à Amihud, ou em parar e descansar, correndo o risco de gastar mais que o estritamente necessário. Em como eles acabaram vencidos pela exaustão de uma semana de viagem a cavalo, fazendo refeições em cima dos animais e parando apenas para dormir. Duvidava muito que qualquer um deles estivesse descansando em uma cama com metade do conforto que a deste quarto proporcionava. Quando se deu conta, estava agarrando a peça fina com tanta força que mesmo no tecido delicado e liso se formavam pequenos vincos e estrias. Quando sentiu no braço esquerdo um formigamento familiar, resolveu que era hora de dormir. Ficar alimentando rancor não ajudaria ninguém em nada.

As partículas de poeira dançavam uma valsa poucos centímetros acima do nariz de Acaiah, que as percebia através da luz do sol irradiando janela adentro. Apenas quando um número suficiente delas havia pousado em seu nariz ele se deu conta de que estava acordado.

Adameire, que vinha dormindo muito mal ultimamente, já havia abandonado a cama. 

Sentiu o estômago reclamar, mas decidiu ficar ali mais um pouco. Absorveu o ar e o cheiro do quarto. Ouvir o barulho das pessoas na rua. Dentro de dois dias, deixaria tudo isso para trás e seguiria viagem. Sem sua cama. Sem seus pertences. Sem o café da manhã de sua mãe esperando para ser devorado até o último grão, sem os amigos das vizinhanças, com exceção de Roz, que também prestaria o exame, talvez para ser reprovado pela segunda vez. Sem as gêmeas bonitas da Estalagem das Ferraduras com as quais trocava beijos e amassos descompromissados por trás da porta dos fundos, nos dias de movimento intenso, quando os seus pais e os delas estavam ocupados demais recebendo clientes (e sem que ele conseguisse distinguir com qual das duas estava, apesar de suspeitar que ambas se alternassem em segredo). Pena que só houvesse começado a reparar nas meninas muito recentemente. Teria aproveitado melhor os últimos momentos de liberdade que teria, antes de ser arrancado do seu conforto.

Afinal, ele tinha de prestar os exames para as ordens. Simplesmente tinha de prestar os malditos exames. E não queria pensar na possibilidade de não ser aprovado em nenhum, apesar de, sem nenhuma vaidade, acreditar que não encontraria dificuldades. Não eram os exames que o preocupavam, mas sim o que viria depois deles. Três anos de treinamento militar. Mais três anos de serviço obrigatório.

Tudo por causa das palavras ditas por um velho no dia do seu nascimento.

Não queria pensar nisso agora. Ficar ressentido só tornaria tudo ainda mais penoso. Decidiu simplesmente esperar os protestos estomacais se tornarem impossíveis de ignorar, e não ocupar a cabeça com qualquer coisa que não fosse absolutamente fútil era a sua única forma de rebeldia contra o inevitável. 

Quando a fome começou a doer demais, se lavou, se vestiu e desceu para o café da manhã.

Adameire realmente falava demais.

Desde que havia acordado, cerca de duas horas depois de um sono inquieto, Uzias estava tentando se concentrar na quantidade de informação que ela estava tentando compartilhar. Em primeiro lugar, porque ela seria de extrema utilidade para seus companheiros de jornada – afinal, Jerusha, Várzios e Anamias sabiam tanto quanto ele sobre as outras ordens, e ele via agora que não sabia absolutamente nada de relevante a respeito. E em segundo lugar, porque seria extremamente mal- educado de sua parte não dar atenção à filha dos seus mantenedores. No momento ela dizia que ambos os pais haviam sido aprovados quando prestaram os exames pela primeira vez e enquanto isso a mãe dela colocava diante de ambos uma grande porção de pão, frutas em pedaços e ovos cozidos, acompanhados de leite.

– Me avise se quiser mais que isso – ela disse a Uzias. – Você parece ser do tipo que come bastante.

Quanto mais Uzias olhava para ela, menos acreditava que ela havia um dia sido uma militar.

Aryah era uma mulher loira, de cabelos muito lisos e compridos até o meio das costas, aparentando pouco mais de trinta. Devia ser meia cabeça mais alta que o marido, tinha os olhos castanho-claros e compartilhava muitas das feições da filha, como o nariz reto e bonito, as linhas suaves do queixo, as bochechas coradas ou os lábios rosados e bem desenhados. As semelhanças, porém, paravam aí, porque Adameire, com seus doze anos, tinha o corpo quase como o de um menino, ainda que um menino muito delicado. Aryah, entretanto, mesmo que vestida de forma indiscutivelmente apropriada, ocultava mal as curvas de um corpo exuberante, saudável e altamente atraente. Uzias não conseguia lembrar-se de ter visto uma mulher tão bonita na vida – e assim que sua imaginação começava a transpor os limites do constrangedor, lembrava a si mesmo de que ela era casada, o que o fazia desviar a atenção dos quadris da anfitriã e voltá-la para algum detalhe particular nos pedaços de fruta postos à mesa.

Uzias não conhecia muitas mulheres ordenadas. A maior parte do treinamento de um Redentor implicava em duros exercícios de sobrevivência, combate e vida em condições inóspitas – o tipo de rotina que lhe parecia totalmente inadequada para uma mulher. As poucas que ele chegou a ver na ordem podiam até ser bonitas – mas o treinamento as deixava maltratadas, apesar de duras e fortes. Lembrou-se de Jerusha, e seus braços finos e rijos, cheios de lanhos devido aos hábitos silvestres. A mulher que lhe servia o café da manhã mais parecia uma nobre – de pele corada e cabelos sedosos, apesar do corpo poder caber perfeitamente em uma guerreira de armadura.

– Você pode olhar nos olhos dela, ela não morde. Mas se a vista baixar além do pescoço, quem morde sou eu.

A voz vinha sorridente, de Aminadave, que descia as escadas para o café da manhã. Apesar de brincalhão, algo no tom do comentário fez os pelos da nuca de Uzias se arrepiarem, e ele voltou sua atenção ainda mais intensamente para o prato. Próximo a ele, um garoto que era uma cópia exata de Adameire descia as escadas. 

Enquanto todos riam do óbvio constrangimento de Uzias, com exceção do garoto que acabara de descer, parecendo alheio a todo o resto, Aminadave apresentava o filho:

– Este é Acaiah. Ele também vai prestar o exame esse ano pela primeira vez.

Acaiah limitou-se a acenar e sentar-se para comer, não parecendo muito interessado em conversas. Talvez percebendo que isso poderia mudar o clima à mesa do café, Aminadave perguntou à filha:

– Já está perguntando a Uzias tudo o que pode sobre a ordem dos Redentores? – Adameire assentiu com a cabeça, mastigando morangos. – Como andam as coisas por lá?

– Acho que como sempre estiveram. – Uzias respondeu, sem rodeios. Não queria falar sobre a óbvia situação de pobreza que a ordem enfrentava. Mas alguém parecia disposto a desenterrar o assunto:

– E quantos de Ataya vão tentar esse ano? – Aryah perguntou, finalmente sentando-se à mesa.

– Ah... Quatro de nós. – Uzias respondeu, sentindo o constrangimento queimar um pouco sua garganta enquanto falava. Com certeza uma cidade grande e abastada como Nedavya deveria enviar no mínimo uns cinquenta jovens para o exame. – Eu e mais três amigos.

Curiosamente, ninguém na mesa pareceu espantado com a notícia. Aminadave continuava a comer seu pão em silêncio, seguido por Adameire e Acaiah. Aryah parecia educadamente atenta, como se esperasse mais alguma informação. Como mais nada foi dito, Ela continuou:

– E Zarede? Como ele está?

Uzias tomou um susto. Não era comum alguém se referir ao Ancião da Ordem dos Redentores pelo nome. Nem mesmo as pessoas de Ataya faziam isso. Tentou fazer sua voz sair o mais natural possível quando respondeu:

– Ele está como era desde a primeira vez que o vi. Velho, com cheiro de raízes e hálito de seiva. Desculpe perguntar... – Ele acrescentou rapidamente; – Mas como a senhora o conhece?

Quem respondeu foi Adameire:

– Minha mãe é a Guardiã dos Combatentes da Fronteira. – A empáfia estava estampada em cada sílaba enquanto ela falava. – Na Ordem dos Redentores. Ocupava...

– ...a segunda cadeira à esquerda do trono do Ancião, ele deve saber disso, Adameire. – Aryah completou, revirando os olhos. Depois voltou a atenção para Uzias. – Quem está ocupando o lugar agora?

Uzias não respondeu de imediato. Estava digerindo a informação com grande dificuldade. Então aquela mulher havia sido uma ordenada da Ordem dos Redentores? Quanto mais pensava, menos provável a ideia lhe parecia. Pensou em Talbo, silencioso e motal, e no terrível Mégaro. Ambos eram formidáveis, cada qual à sua maneira, e por sua experiência e força haviam sido consagrados a Mestres. Mas nenhum deles havia sido considerado capaz o bastante para atingir o posto de Guardião. Pelo que sabia, havia algumas centenas de ordenados em todo o reino, e somando todas as ordens, era provável que somassem talvez sete mil homens. Mas cada ordem contava apenas com seis guardiões. Ou seja, trinta e seis guardiões em sete mil ordenados. Os guardiões não estavam no patamar comum, já absurdo, de um ordenado – se metade das histórias que ouviu sobre os guardiões da Ordem dos Redentores fossem verdadeiras, a diferença de perícia, domínio do Dom e poder combativo entre um ordenado regular e um guardião eram quase inumanas. Não era à toa, inclusive, que a única autoridade superior aos guardiões em uma ordem era o próprio Ancião. Agora que pensava melhor no assunto, dois dos tronos no salão da Ordem sempre estavam vazios. O trono do canto direito e o segundo trono à esquerda do mestre, justamente o trono que, segundo Adameire, sua mãe havia ocupado. Era simplesmente aterrador que um dos guerreiros mais poderosos do reino pudesse estar ali, servindo o seu café da manhã.

Adameire, entretanto, não apenas parecia achar muito comum o fato de sua mãe estar entre a elite da elite dos combatentes do reino, como parecia saborear cada implicação do fato e se divertir com a expressão na cara de Uzias.

Para ele, entretanto, a questão que pairava no ar era: o que um Guardião fazia tão longe de sua ordem? Antes que pudesse perguntar, a resposta lhe atingiu com um estrépito. Olhou de novo para o sorriso gentil da mulher que lhe perguntara quem estava a ocupar a cadeira, e a obviedade da resposta lhe atingiu em cheio: ela havia sido afastada. Punida, provavelmente por desafiar Amihud. Ela provavelmente era em grande parte responsável por Uzias estar vivo hoje. Ela estivera no Cerco.

Uzias sentiu a comida quase se recusar a descer garganta abaixo. Devia mais àquelas pessoas do que poderia pagar em dez vidas. Um rubor violento de gratidão e vergonha lhe subiu às faces. Talvez percebendo isso, Aryah mudou rapidamente de assunto:

– Acaiah, porque você não mostra a Uzias o resto da casa? Vocês poderiam trocar informações sobre o que esperam do exame. Você me ajuda com os pratos, moça. – Ela acrescentou para Adameire e, antes que ela pudesse reclamar, Aminadave concluiu:

– Apresente a ele algumas das meninas da vizinhança. Aposto que vocês não vão poder nem pensar em cortejos pelos próximos meses, então é bom ter algo bonito do que se lembrar. E é claro que Adameire só iria atrapalhar se fosse junto.

Sob o som dos protestos de Adameire, Acaiah convidou Uzias para dar uma volta e esticar as pernas.

Acaiah teve certeza de que o pai suspeitava que ele já houvesse percebido – apesar de ser óbvio. Mas Adameire evidentemente havia engolido a história toda sem nem questionar. Tão típico dela.

Acaiah observava o tal Uzias pelo canto dos olhos enquanto caminhavam em direção a uma praça algumas ruas longe dali.

Ele era alto, com certeza. Metade da família de sua mãe era de gente alta – seus tios maternos, pelo menos os que ele conhecia, eram todos mais altos que seu pai. Mas a cor da pele... isso não fazia sentido. Tanto o seu pai como sua mãe tinham a pele muito clara, uma cor muito comum na parte oeste e sul do reino. Gente com aquele tom negro era mais comum no leste – a maioria dos comerciantes vindos do oriente era ou negra, ou parda, ou uma variação misturada de vários tons de pele, sempre mais escuros que os das pessoas do ocidente. Ele não parecia alguém da família. A questão era: porque tentar passá-lo como um primo, ainda que um primo distante, quando era óbvia a dessemelhança entre ele e todo o resto?

Chegaram à praça, onde uma imponente fonte de pedra jorrava água, e algumas crianças molhavam os pés dentro. Vários homens mais velhos jogavam em tabuleiros de pedra, sentados em banquinhos de madeira. Apesar do Sol já brilhar alto no céu, as árvores que cobriam a praça tratavam de servir a todos os presentes com sombra em abundância. Acaiah convidou Uzias a sentar em um dos bancos de madeira embaixo de uma delas.

– E então, o que achou da minha mãe? – Acaiah perguntou, de repente. Uzias o olhou com uma expressão de susto. Ele prosseguiu – ela é realmente muito bonita, não é? A maioria dos amigos do meu pai acha isso, mas nenhum deles tem coragem de ficar olhando para ela como você fez no café da manhã. Eles geralmente tem o cuidado de só desviar do rosto dela quando ele não está olhando, porque ele é muito ciumento quando se trata dela e da minha irmã.

Uzias não tinha a menor ideia do que aquele garoto queria, mas a maneira como ele falava era altamente inconveniente. Olhou para os seus olhos, tão azuis quanto os da irmã e os do pai, mas ele não o encarou de volta. Estava absorto em uma moça que se abaixava para tirar água da fonte com um balde, expondo um pouco das pernas por entre uma fenda mal costurada na lateral da saia.

– Estaria mentindo se dissesse que ela não é bonita. – Uzias respondeu, de forma ligeiramente cortante. – Mas sou seu convidado, e a última coisa que quero é causar qualquer transtorno. Apenas achei que ela parecia... bem cuidada demais para uma ordenada.

Acaiah caiu na gargalhada. Uzias não saberia dizer se aquilo era uma tentativa de deboche, por isso preferiu fixar suas vistas em um ponto qualquer à sua frente o esperar parar de rir.

– Todos vocês são assim, na Ordem dos Redentores? – Acaiah perguntou, afinal, ainda rindo. – Não leve as coisas assim tão a sério. Dá para perceber a quilômetros que você não é habituado a conversar, e nem a mentir. E isso vai ser um problema se você pretende passar por nosso primo, seja por que motivo for, ainda mais com a sua cor e sua cara feia. Ninguém vai acreditar. Eu não acredito.

O tom de Acaiah era displicente, mas as palavras não poderiam ter sido escolhidas com maior agudeza. Uzias tentou manter o olhar fixo em uma menininha que saltitava na fonte segurando um sapo. De fato. Nunca foi bom em mentir, até porque essa conduta não era encorajada em Ataya.

– Eu não vou perguntar por quê. – Acaiah continuou, agora bem mais sério. – Se os meus pais acham que você tem de se passar por nosso primo, você vai ser nosso primo. Só quero ver se a gente consegue fazer isso direito.

– Eu... recebi instruções de não mencionar as razões pelas quais eu vou acompanhá-los. – Disse Uzias, se virando para encarar Acaiah. Dessa vez seus olhares se cruzaram. – Só posso dizer que estou muito agradecido.

– Isso tem a ver com o fato de meus pais estarem afastados das ordens, não é? – Acaiah perguntou, sorrindo ao ver o choque de confirmação no rosto de Uzias. – Tem, tem sim. Eles nunca explicaram para mim e nem para Adameire exatamente porque não estão cumprindo o serviço militar. Não poderia ser um crime grave, caso contrário já teriam substituído a minha mãe na ordem dos Redentores. Então só posso acreditar que eles estão esperando para poder voltar, talvez quando a punição acabar. É por isso que eles dois nunca deixaram de treinar.

Uzias aproveitou para recolher mais informações novas. Então ambos os pais dos gêmeos estavam afastados de suas obrigações como ordenados. Isso queria dizer que a pergunta de Aryah à mesa não era despretensiosa. Ela queria saber se fora substituída. Talvez essa fosse uma das razões pela qual eles se dispuseram a ajudá-lo. Um mensageiro involuntário.

Antes, porém, que ele pudesse tentar mentir dizendo não saber nada a respeito da provável causa de afastamento dos dois, Adameire veio correndo pela rua, com os cabelos ruivos balançando ao sol e as faces afogueadas. Uzias riu de si para si mesmo, a achando bonitinha, mas parecida com um moleque. Chegou onde estavam e sentou-se exatamente entre os dois, empurrando cada um para um lado. 

– Do que estavam falando? – Ela perguntou.

– Eu já ia explicar a Uzias quantas e quais são as ordens, mas te vi chegando e acho que você é melhor nisso do que eu. – Acaiah respondeu, olhando Uzias nos olhos. Adameire aparentemente não havia percebido nada estranho, porque começou:

– Bom, sei tudo sobre as ordens, afinal estudei isso desde...

– ...os nove anos, todo mundo sabe disso, não enrola. – Acaiah interrompeu. – Explica para ele enquanto vou até a venda do velho Rufo. Mais alguém quer um doce?

Depois que Adameire insistiu um pouco, Uzias acabou aceitando, e enquanto Acaiah se afastava, ela ampliou o espaço entre eles no banco para poder olhá-lo diretamente.

– São sete ordens, ao todo. – Adameire começou. – Mas nós só podemos concorrer a vagas em seis delas. Cada uma delas procura um conjunto muito específico de qualidades que um candidato tem que ter para se tornar um ordenado.

“Bom, primeiro vem a Ordem dos Redentores, mas essa eu acho que você conhece melhor do que eu. Ela é a responsável pela expansão do reino e pelas conquistas militares em terras distantes. A sede dela é Ataya, e ela fica no meio da floresta que marca o limite norte do reino. Os seus ordenados compõem a força expedicionária, e são mestres em sobrevivência e em infiltração. Seu símbolo é a lâmina.”

“A segunda ordem é a Ordem dos Profetas. Ela é responsável por treinar e educar políticos e estudiosos. Os profetas tem grande conhecimento das artes antigas e da história das guerras, e são eruditos profundos. Nunca discuta com um Profeta. A sede dela fica bem ao leste do reino, na cidade de Zefanya, em algum lugar no pé da cordilheira. Seu símbolo é a chama.”

“A terceira ordem é a Ordem dos Arautos. Essa ordem é a responsável pela manutenção da cultura e das tradições no reino e nas terras distantes. É ela a formadora dos diplomatas e dos historiadores. Seus ordenados são muito habilidosos em todas as formas de arte e de cultura. A sede dela fica na cidade de Yahudah, no extremo oriente do reino. Seu símbolo é a pena.”

“A quarta ordem é a Ordem dos Égides. Dessa ordem sai a elite da segurança do exército. Os Égides são guerreiros extremamente resistentes, e sua responsabilidade sempre envolve a proteção dos mais fracos, ainda que isso custe a sua segurança. Seus ordenados são gente habituada a se sacrificar pelo bem dos outros, e possuem todo tipo de treinamento médico para situações de emergência. A sua sede fica bem ao sul, na cidade de Zuria. Seu símbolo é a rocha.”

“A quinta ordem é a Ordem dos Armígeros. Meu pai é mestre nessa ordem. Os Armígeros são engenheiros, químicos e metalúrgicos. Eles são a base de apoio do exército. São eles que garantem a integridade dos equipamentos e armas usados pelas tropas, além de serem excelentes em resolver problemas de campo através de equipamentos e construções. A sede fica bem aqui, em Nedavya. O símbolo da ordem é o vaso.”

“A sexta ordem é a Ordem dos Canais. Essa ordem é formada pelos monges e pelos líderes espirituais do reino. Eles são especialistas em entrar em comunhão com o Divino e assim direcionar os caminhos das tropas até a vitória. Eles são grandes sábios, e são procurados por todos por causa de seus conselhos. Também são mestres no conhecimento dos Dons. A sede da ordem fica na cidade de Migdala. O símbolo da ordem é a ponte.”

“Por fim, tem a Ordem dos Juízes. A sétima ordem. Essa ordem na verdade é formada por mestres das outras ordens, e ela só é convocada em caso de guerra. Mas nem todo mestre ordenado é necessariamente um juiz. Apenas o regente pode consagrar um ordenado a Juiz. Os Juízes e os Guardiões estão no mesmo nível de hierarquia, apesar dos juízes serem menos graduados. Sua sede fica em Amihud, a capital do reino.”

Somente quando Adameire parou de falar percebeu que Acaiah já havia voltado. Ele prestava atenção ao que ela dizia, com uma porção já quase na metade de um doce escuro na mão.

A tarde que se seguiu ao almoço farto se foi rapidamente, e entre histórias, alguns estudos de última hora e uma memorização de tudo o que puderam coletar em termos de informações sobre o exame, Uzias começou a entender um pouco da dinâmica da casa.

Acaiah tinha toda razão ao enfatizar que o pai era ciumento. Aminadave era sempre agradável, mas Uzias logo percebeu que ficar a sós com Aryah era muito difícil, mesmo em uma casa tão grande – e ele queria fazer algumas perguntas sobre a ordem e o Cerco, em particular, se possível. Porém mesmo quando ela parecia estar sozinha fazendo alguma coisa qualquer, bastava que Uzias (ou qualquer outro homem, como mercadores de metais, clientes da forja e visitantes da casa) se aproximasse, Aminadave surgia quase magicamente da porta mais próxima e puxava assunto displicentemente. No fundo, Uzias não podia culpá-lo. Se fosse casado com uma mulher tão bonita, provavelmente seria tão ciumento quanto.

O mesmo cuidado, entretanto, não se estendia a Adameire, mas Uzias também pôde deduzir a razão. Adameire era bonita do jeito dela – assim como a mãe, era saudável e bem cuidada – mas ainda era praticamente uma criança. Falava pelos cotovelos, vestia as roupas do irmão, e o cabelo, apesar de aparentemente muito sedoso, estava quase sempre um pouco desgrenhado. Não ligava muito para a própria aparência, e tinha os modos de um garoto hiperativo.

E Acaiah. Uzias custava um pouco a acreditar que ele tinha a mesma idade que Adameire. Acaiah era soturno, quieto e reflexivo. Dificilmente começava uma conversa, e tinha o hábito de dizer coisas inconvenientes e ambíguas, para logo depois mudar de assunto e de tom bruscamente e deixar o clima dez vezes mais tenso do que se houvesse ido direto ao ponto. Uzias começava a achar que não gostava muito dele, mas era cedo para fazer julgamentos. Uma coisa era evidente: diferente da irmã, que estava fervilhando de ansiedade, ele parecia apático e até aborrecido com a ideia de prestar os exames.

Depois do jantar, Aryah subiu com os filhos para organizar as bagagens. Aminadave pediu que Uzias o seguisse até a oficina. Lá dentro, Aminadave pôs em cima da mesa de trabalho um caixote de madeira comprido, o abriu, e convidou Uzias a olhar o conteúdo.

O que havia dentro era uma couraça completa para um braço só. Da manopla à ombreira, um revestimento em aço azulado e polido, decorado com pequenas labaredas espirais desenhadas em baixo relevo. A peça tinha três camadas de armadura sobrepostas umas às outras, ligadas por pequenos e lustrosos parafusos. O conjunto todo se encaixava de dentro para fora, oferecendo uma proteção absoluta. Uzias deduziu que a peça toda desmontada deveria ter umas doze partes individuais. Exatamente na parte superior externa da manopla, logo acima do punho, havia uma joia azul cristalina, oval, do tamanho aproximado ao de um ovo de faisão, lapidada e incrustada. Era linda. Uma obra de arte.

– É bonita, não é? – Aminadave perguntou, a voz transparecendo orgulho. – Fiz para você.

– Eu... eu nunca poderia pagar por isso. – Foi a resposta de Uzias. Calculou que precisaria trabalhar umas três vidas apenas para poder pagar pelo aço usado para fazer a peça – sem contar a forja e a joia, que deveriam, juntas, multiplicar por dez o valor da armadura.

– E não vai. Ela foi paga muito antes da sua chegada. Agora, vamos ver se o peso está adequado.

Antes que Uzias pudesse argumentar, Aminadave retirou a peça do caixote e removeu a camada interna, que só agora Uzias percebia, não era feita de metal, mas de uma espécie de material borrachudo, mais denso que couro, mas altamente macio e flexível. Uzias vestiu primeiro a braçadeira, depois o bracelete, e por último a luva. O material se contraiu em seu braço, e a sensação era ligeiramente desconfortável. Talvez percebendo, Aminadave alertou:

– É assim mesmo. À medida que for usando, ela vai se expandir.

Em segundo lugar, as cinco partes da segunda camada: a ombreira menor, a braçadeira de duas peças protegendo toda a área do braço e a manopla de duas peças que protegia o antebraço e o punho. A segunda camada era de um metal leve e resistente, arroxeado. Só com as duas camadas já não era possível ver parte alguma do seu braço esquerdo. Mas ainda havia uma terceira camada.

A terceira camada, totalmente roxa, era de um metal duro e incrivelmente leve. Tinha mais três partes: a ombreira maior, arredondada, a manopla grossa com a pedra azul incrustada na face superior, e a luva, que deixava sua mão com quase o dobro do volume. Era essa camada que se ligava à de baixo por parafusos. Aminadave, ainda em silêncio, arrochou os seis parafusos. O processo de vestir o conjunto levou pelo menos dez minutos. 

– Estou ciente do seu problema com o braço. – Aminadave disse, ao terminar de apertar o último parafuso. – Essa manopla não serve só para esconder a cicatriz das autoridades, no improvável caso de alguém reconhecer a marca depois de tanto tempo. Veja isso.

Ele apontou para a joia incrustada. Uzias levou um tempo para distinguir, no azul cristalino, símbolos talhados, minúsculos. O mesmo tipo de símbolos que vira talhados no cajado do Ancião Zarede.

Havia ouvido de Absalon que era possível acrescentar propriedades especiais a objetos dos mais variados tipos, durante a fase de forja, se o forjador em questão conhecesse um processo muito específico e complexo que precisava ser aplicado durante a fabricação da peça. Obviamente, eram pouquíssimos os fabricantes de armaduras que conheciam o método, e eles geralmente eram vinculados às ordens, que produziam equipamentos para uso exclusivo dos ordenados, de forma que, quando se encontrava uma peça feita por um deles fora do exército, seu preço costumava ser incalculável. O nome que se dava a uma peça como essa era...

– Ela é batizada? – Uzias perguntou.

– Exatamente. – Aminadave respondeu, seus olhos ainda brilhando de entusiasmo. – Eu a fiz especificamente para você e seu braço.

– Eu não posso aceitar. – Uzias disse por fim, antes que mudasse de ideia. A armadura, sozinha, poderia m****r cinquenta jovens de Ataya para o exame pelos próximos cinco anos. Poderia, quem sabe, comprar um pequeno castelo. Ou equipar uma milícia de cem homens com armas e equipamentos de aço de boa qualidade. Era um objeto caro demais para andar exibindo por aí.

– Já disse, é sua. – Aminadave retrucou, em tom definitivo. A Ordem dos Redentores pagou por ela, e de qualquer forma, ela foi feita sob medida. Não vai funcionar em ninguém tão bem quanto em você. E eu levei três anos de trabalho nela.

Uzias não conseguia nem mesmo suportar pensar em quanto a Ordem deveria ter despendido na aquisição daquela peça. Talvez ela houvesse custado as viagens de pelo menos duzentos jovens. Sentiu a culpa engolfar seus pensamentos, e a frustração, mágoa e tristeza voltarem mais uma vez.

Só então percebeu.

Seu braço esquerdo continuava perfeitamente normal. Sem fisgada. Sem formigamento. Sem desprender vapor. Por um instante, ergueu-o. A armadura, agora lhe parecia incrivelmente confortável. Apenas a joia emitia uma suave luz dourada, fraca como uma vela, que logo veio a se apagar, fazendo-a voltar ao cristalino.

– Quando éramos muito jovens, Aryah e eu... – Aminadave começou a falar, enquanto guardava as ferramentas nas suas prateleiras; – Ela foi acometida por uma doença terrível e aparentemente incurável, que contraiu durante os dois primeiros anos de serviço militar obrigatório. Na época estávamos de serviço no oriente, bem longe daqui. Eu abandonei o meu posto e viajei metade do reino para pedir auxílio aos ordenados da capital, mas nenhum deles alegou ser capaz de ajudá-la. Para ser franco, tive a impressão de que não estavam muito dispostos a cruzar as léguas que separavam Amihud de Zefanya para ajudar uma moribunda, ainda que a moribunda fosse uma ordenada. Eu teria custeado o trajeto, se pudesse. Mas eu estava no meu último ano de serviço obrigatório, e já tinha gastado mais da metade do meu soldo abandonando meu posto e cavalgando até lá.

Uzias sentiu o tom de voz de Aminadave mudar. Ele estava rouco, e havia muita mágoa na sua voz. Ainda de costas para Uzias, organizando a estante, ele prosseguiu:

– Desolado, ao invés de retornar ao meu posto, fui até a cidade de Ataya. Pretendia pedir ajuda ao Ancião, que eu sabia ter sido o Mestre de Aryah. Quando retornássemos à Zefanya, eu provavelmente seria preso por deserção, mas teria uma chance de fazer algo por ela. 

“Quando cheguei à Ordem dos Redentores, não fui bem recebido. Existe muita mágoa entre algumas ordens devido a conflitos do passado. Mas me permitiram falar com o ancião Zarede. Ele ouviu meu pedido atentamente. Quando terminou de ouvir, mandou preparar imediatamente seis cavalos. E antes que eu conseguisse compreender o que estava acontecendo, estávamos eu e mais seis homens, incluindo o ancião, atravessando a metade do reino em direção ao acampamento onde Aryah estava.”

“Assim que chegamos, depois de uma longa e exaustiva viagem, ele pediu para que o deixássemos a sós com ela. A coisa toda não levou metade de um dia. E, ao anoitecer, ela estava curada. Mas algo havia mudado. O ancião parecia muito debilitado. Como estávamos em um acampamento expedicionário, os soldados ficaram felizes em acolher seu ancião, e a mim, que o havia trazido. Durante todo o tempo em que estive lá, a ordem me tratou como um deles, e nenhum ressarcimento me foi exigido. De ninguém. Nem dos soldados, nem dos ordenados que vieram com o ancião, nem mesmo pelos gastos com a viagem. O homem havia cavalgado por dias, gastando dinheiro, comida e uma boa parcela de sua saúde, e nada me foi cobrado. Nada. Eu sei o que você está sentindo agora. Mas acredite quando eu te digo que esse objeto é uma parte mínima da dívida que tenho com Zarede e os Redentores. Eles me deram algo que eu jamais vou poder retribuir. E em troca, Aryah e eu prometemos cuidar de você enquanto estiver prestando os exames. Farei o que for necessário para garantir que você esteja seguro. E ainda assim, isso não seria suficiente para representar o que Aryah, Acaiah e Adameire significam para mim. Eles são frutos da dívida incalculável que tenho com Zarede. Por isso você vai aceitar a peça.”

Uzias não sabia mais o que dizer, exceto perguntar:

– O que aconteceu depois?

– Depois nos casamos. – Aryah ia entrando na oficina, enquanto falava. – E foi Zarede quem celebrou nosso casamento.

– E onde exatamente eu entro nessa história? – Uzias perguntou por fim. – Como vocês foram punidos pela minha vida?

– É uma história muito longa, e nada bonita, Uzias. – Respondeu Aryah, com doçura na voz. – Basta que você saiba que não nos sentimos obrigados a fazer isso. Não foi uma cobrança. Nos voluntariamos. E estamos muito felizes em tê-lo aqui.

– Mas eu quero saber mais sobre o que aconteceu. – Uzias insistiu. – Ninguém que tenha participado do... do...

– ...do Cerco? – Aminadave completou.

– É, do Cerco. – Uzias confirmou. – Ninguém que tenha participado vive em Ataya. Só conheço as histórias.

– Há uma razão para que essa história não tenha sido divulgada, Uzias. – Aryah prosseguiu. – É uma história traumática, imprecisa e muito perigosa, para você e para os envolvidos. O que está no passado, deve ficar no passado.

Uzias viu que não adiantaria argumentar. Então voltou sua atenção para a manopla:

– Ela impede meus... acessos de raiva?

– Sim. – Aminadave respondeu. – Ela neutraliza a Diastropia que alimenta sua força descomunal quando você está irritado. Os parafusos podem ser afrouxados , quando seu braço crescer, o que talvez aconteça durante os próximos seis meses. Adameire sabe como regular, caso tenha dificuldade, mas você deve aprender como fazê-lo sozinho para o caso dela não estar por perto. Cuide bem da peça. Foram muitos meses de pesquisa e mais alguns anos de forja e aprimoramentos. Duvido muito que vá quebrar, ainda que você resolva tentar derrubar a parede de um castelo com ela. Mas ainda assim, prudência. Agora eu vou verificar se os dois lá de cima não esqueceram nada. Eu faria o mesmo se fosse você, já que vocês partem amanhã.

Aminadave saiu primeiro, e logo depois Aryah o seguiu. Antes de sair, porém, ela parou à porta, virou-se para Uzias e disse:

– Tudo o que você me disse até agora sobre como a ordem está faz muito sentido. Mas está enganado com relação a apenas uma coisa. Existe um sobrevivente do Cerco vivendo em Ataya.

– E quem é? – Uzias perguntou, a excitação nítida em sua voz.

– Você ainda não me disse quem estava ocupando o meu lugar na sala dos tronos. – Aryah retrucou, em um tom enigmático.

– Não há ninguém. O trono está vazio.

– Exatamente. E se não me engano muito, deve haver mais um trono sem Guardião. Há?

– Sim, existe. O trono do canto direito. Eu nunca vi ninguém lá.

– Exatamente. E provavelmente pela mesma razão que o meu ainda está vazio, mesmo depois de tanto tempo. Agora suba, por favor. Amanhã será um dia cheio.

E dizendo isso, Aryah deixou Uzias na oficina, remoendo seus pensamentos.

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