Mikoto é uma miko, uma sacerdotisa de uma pequena ilha, ou era, até um estranho sonho levá-la a de repente fugir de casa, e ir para o lar do maior clã do sacerdócio de todo o continente Yamato. Aparecendo como uma intrusa no meio de uma cerimônia, ela se vê como novo membro da missão das duas miko do clã. Missão essa que envolve youkai de verdade, e perigos que mostram um lado do mundo até então desconhecido, e considerado apenas fantasia. Capa por @R_F_Herondale
Leer másA capital sagrada de Yamato era dez vezes maior e mais movimentada do que Mikoto imaginara. Carros e motos passavam zunindo pelas ruas, as pessoas se espremiam nas calçadas apinhadas, e prédios mais altos do que montanhas se erguiam acima de tudo.
Mikoto teria ficado impressionada se não estivesse tão perdida e confusa. Sua pequena ilha não era nem de longe tão caótica, barulhenta e cheia de gente como ali, e com certeza ela agora parecia uma simplória moça do campo perdida na cidade grande, o que não deixava de ser verdade.
Com certeza ela se destacava na multidão, vestida com um quimono tradicional e botas surradas em meio a tantos ternos e calças jeans com tênis. Se não tivesse saído de casa numa corrida tão desenfreada, com certeza teria vestido algo menos chamativo e antiquado.
Porém, ninguém lhe dava atenção.
Todos pareciam ir na mesma direção, mas a menina não conseguia ver para onde, e perguntou a um senhor em uma barraquinha na calçada:
-- Aonde todos estão indo?
-- Você não sabe? – o homem a olhou incrédulo – Você só pode ser de fora. Vão para o Santuário Branco, ver a cerimônia de nomeação das novas sacerdotisas do clã Kairiku.
-- Então eu cheguei a tempo! A cerimônia ainda não começou!
-- Eu não disse isso, ela já está acontecendo. Se não quiser perder, é melhor ser boa corredora.
Mikoto saiu em disparada e embrenhou-se na multidão, que subiu uma longa escadaria para o templo na montanha. Ela precisou levantar a barra do hakama para galgar os degraus mais rapidamente, mas parecia que eles não tinham fim, como uma montanha podia ser tão alta? O caminho para o santuário de casa não era mais que uma colina comparado a aquele.
Quando enfim atravessou o torii, suas pernas doíam e seus pulmões pareciam em brasa, mas ela continuou andando, apenas uma massa compacta de espectadores se encontrava entre Mikoto e seu objetivo.
Nunca ficou tão feliz por ser tão baixinha e magricela quanto naquele momento, se esgueirando facilmente entre as pessoas que se empurravam para ter a melhor visão.
Com algum esforço e suor, Mikoto chegou na frente dos espectadores e viu perfeitamente o pátio em frente ao templo, onde a cerimônia acontecia. Duas meninas, que deviam ser uns poucos anos mais velhas do que ela, se postavam diante de uma mulher mais velha, que brandia um suzu numa mão e um gohei na outra enquanto proclamava uma oração. As três usavam quimonos cerimoniais brancos com hakamas vermelhos.
Mikoto as observava encantada. A única miko que ela já vira atuando fora sua mestra, Megumi-sama, que apesar da idade avançada, conduzia as cerimônias da ilha com uma postura digna, mas aquela mulher tinha uma voz tão imponente que prendia a atenção de quem ouvisse.
O santuário também era impressionante, maior e mais bem conservado. Naquela montanha mais alta, a construção estava melhor protegida da maresia, e a tinta nas paredes não descascara. Até mesmo o torii era maior que o pequeno portal de casa.
As fofocas que vinham das outras ilhas e do continente diziam que as sacerdotisas do clã Kairiku tinham uma espécie de poder sobrenatural. Se isso existisse mesmo, a jovem bem que gostaria de ver, mas era verdade que aquele clã era dedicado a tarefas sacerdotais há gerações, e tinha muito prestígio até mesmo entre os reis e com o próprio imperador.
Mikoto tivera muito medo de perder a cerimônia, e teve certeza que a perderia quando o barco que a trouxera apresentou defeito no motor na noite anterior. Por isso era tão difícil de acreditar que estava ali, uma testemunha daquele evento sagrado.
Sem perceber, ela levou a mão à pedra que carregava no pescoço, escondida sob a roupa.
A mulher, sem dúvida a alta-sacerdotisa, terminou a oração e ordenou às duas meninas à sua frente.
-- Apresentem suas pérolas celestiais.
Elas estenderam a mão direita. Cada uma segurava uma pedra perfeitamente redonda e lapidada, que reluziam à luz do sol como joias. Mesmo à distância, Mikoto viu que uma delas era verde-água e a outra era amarela, cor de areia.
A alta-sacerdotisa balançou o suzu e o gohei acima das pedras e anunciou:
-- Que as bênçãos do céu recaiam sobre suas pérolas, que concedam poder, coragem e sabedoria para realizar sua missão. Como alta-sacerdotisa do Santuário Branco, eu agora as consagro portadoras e guardiãs destas pérolas, com os títulos de sacerdotisa da terra e sacerdotisa do mar.
Os guizos do suzu tilintaram suavemente, e as pedras nas mãos das duas jovens miko brilharam verde e amarela, como pequenas estrelas coloridas. A multidão ofegou encantada, porém, não apenas por tão mística visão.
Mikoto percebeu que muitas cabeças estavam voltadas para ela, porque uma terceira luz brilhava, emanando de seu peito.
Debaixo dos olhares das três sacerdotisas e de toda a multidão, uma Mikoto apavorada tentava esconder com as mãos o brilho azul que se acendera do nada e sobrepujara até as dobras de seu quimono.
-- O que significa isso? – a alta-sacerdotisa bradou e veio andando a passos largos em sua direção, com uma cara nada amigável.
Mikoto teria novamente se embrenhado no meio das pessoas e desaparecido na multidão, mas aconteceu que a pessoa a seu lado era um guarda do santuário. Ele agarrou seu braço antes que conseguisse se afastar e a segurou onde estava até a alta-sacerdotisa parar à sua frente.
O olhar da mulher era dez vezes mais intimidador que o de Megumi-sama, e Mikoto sentiu o corpo inteiro começar a tremer imediatamente.
-- Quem é você?
-- Mikoto, sacerdotisa assistente do santuário da ilha Iruka – ela gaguejou. As outras duas miko olhavam para ela por cima do ombro da mestra, uma delas tinha o olhar igualmente severo, enquanto a outra a fitava com curiosidade. Mikoto percebeu, um pouco intimidada, como eram altas.
-- O que você tem aí? – a mulher questionou, e seu tom não tolerava negação. Quando Mikoto tirou seu colar de baixo da roupa com a mão tomada por tremores e o mostrou, os olhos dela se arregalaram – Onde conseguiu essa pérola?!
-- O quê?
-- É melhor entrarmos.
Ela e as duas jovens voltaram-se para o templo, e o guarda empurrou Mikoto na mesma direção. Enquanto andavam, as três tinham um fervoroso debate, do qual a menina só captava alguns trechos.
-- O que era aquilo?
-- Era uma pérola de verdade?
-- Não pode...?
-- O brilho é igual...
-- Estranho.
-- ... mas saberemos em breve.
Após adentrar o templo, o guarda enfim largou Mikoto e se retirou. As grandes portas duplas se fecharam com um estrondo, silenciando o burburinho da multidão lá fora e prendendo a trêmula Mikoto ali dentro com as três miko, que naquele momento mais pareciam um tribunal.
GLOSSÁRIO
Hakama: vestimenta tradicional japonesa, que cobre a parte de baixo do corpo. Pode ser uma larga calça ou uma saia, usada em conjunto com o quimono
Suzu: árvore de guizos usados pelas miko em cerimônias
Gohei: bastão de madeira decorados com serpentinas brancas de papel (shide), também usados em cerimônias xintoístas
Torii: portão tradicional construído próximo a santuários xintoístas, para indicar a proximidade do templo, e a passagem entre o mundo humano e dos kami. Composto por dois pilares unidos por uma trave horizontal, na maioria das vezes pintado de vermelho.
Quando todos os youkai desapareceram em nuvens de cinzas, Mikoto caiu de joelhos, apoiada na naginata. Lutou contra os membros trêmulos para se reerguer, e começou a dançar para a despedida das almas dos mortos. Apenas quando terminava ela percebeu que o chão sob seus pés estalava e rachava cada vez mais.A menina correu para a escada no instante em que a torre começou a ceder, e não parou de saltar os degraus enquanto tudo desmoronava acima dela até se jogar para longe no chão, debaixo de uma chuva de poeira e pedaços da parede e o barulho ensurdecedor do desabamento.Ela ainda ofegava, assustada, quando os estrondos cessaram, dando lugar a um silêncio sepulcral. Agora dolorida e com todos os músculos do corpo tremendo, se levantar exigiu um pouco mais de tempo e esforço, mas não havia mais razão para ter pressa.-- Você fez o que eu acho que fez? &ndash
Todos, inclusive a própria Akumi, olharam paralisados a lâmina que penetrava o torso peludo, mais especificamente para o ofuda colado a ela.-- Você usou o kami da morte – Takako verbalizou o pensamento de todos, e a insatisfeita incredulidade que sentiam.Mikoto puxou a naginata e Akumi desabou, respirando com dificuldade. O ferimento começava a escurecer e os pelos ao redor se pulverizavam, cinzentos.-- Os youkai que morreram em Shiro viraram cinzas na hora. Por que ela não? – Haku pensou alto. Akumi bufou.-- Não me compare a aqueles peões selvagens. Não vou cair tão facilmente quanto eles.Mas era claro que ela não resistiria por muito mais tempo, agora quase todo o seu tronco estava como que queimado, e suas patas e caudas escureciam também.Yasha ficou de pé desajeitadamente, uma das mãos pressionando a ferida de dentes no pescoç
Ame supunha que Akumi tivesse voltado para a sala das máquinas, pois era lá que ela sempre podia ser encontrada, era provável que escolhesse o lugar para se reorganizar.Chegando à sala, a teoria de Ame provou-se correta. Akumi, em forma humana, aparentava estar completamente recuperada de qualquer ferimento, contemplava a incubadora à frente, até perceber a chegada do grupo e lançar um olhar de completo desprezo por cima do ombro. Ela começou a falar:-- Humanos e youkai compartilhavam o mundo, tal qual presas e predadores. As presas nos expulsaram para esta dimensão vazia e tomaram o mundo inteiro para si, criando desequilíbrio e caos na ordem natural. Sua missão era apenas assegurar o retorno dela, então por que a negou, Mikoto?-- Você não quer ordem natural de nada, só deseja voltar a caçar humanos – Takako respondeu com igual desprezo, e jog
Só o olhar selvagem de Akumi era o bastante para fazer qualquer um recuar, mas sua expressão dizia claramente que ela faria muito mais do que isso.Antes que ela se movesse, no entanto, Yasha a atacou por trás, armada com um punhal. Akumi se transformou em raposa e pulou para longe antes que a mulher a esfaqueasse. Com o movimento de uma cauda, Akumi derrubou Yasha e voltou-se zangada para ela, os dentes afiados à mostra.-- Você sempre foi um estorvo para nós – ela sibilou – Logo que percebi o que você era, soube que só nos traria problemas. Devia ter me livrado de você no começo, e quando Mikoto nascesse, tudo teria corrido como planejado.Ainda no chão, Yasha sacou uma pistola e atirou. Akumi ganiu de dor, pega de raspão no ombro, o ferimento já sangrando e tingindo seu pelo alaranjado de vermelho. Yasha sorriu triunfante.-- O que achou disso, Akumi? Te
A ideia de Ikari de montar uma barricada com os móveis do laboratório era boa, mas se provou eficiente apenas nos primeiros minutos. Depois que a primeira leva de youkai só conseguiu escalá-la para ser alvejada de surpresa por Yukio, um mujina do tamanho de um tanque de guerra e a partiu ao meio com um só golpe.-- Haku? – Yukio olhou nervoso por cima do ombro, e o menino balançou negativamente a cabeça. As três garotas ainda não tinham acordado.Com o caminho aberto pelo mujina, os outros youkai avençaram contra Yukio, Ame e Ikari. O gato lançou bolas de fogo contra os primeiros tanukis a atacar e depois passou a usar as garras para retalhá-los. Yukio descarregou suas pistolas e lançou mão do cassetete, enquanto Ame golpeava o que estivesse ao alcance de seus punhos.Os guaxinins, gatos e doninhas não demoraram a cair, o maior problema foi quando o texu
O brilho da hitodama se refletia nas paredes de água da fenda, dando ao ambiente uma luminosidade azulada que seria bonita se não fosse tão sobrenatural. E num momento o céu desapareceu, criando a sensação claustrofóbica de uma caverna subaquática.-- Você não é Mikoto, não é? Quem é você? – Takako falou para se distrair. Naturalmente, a hitodama não disse nada, mas a jovem ouviu vozes aparentemente vindas de cima, sussurros tão baixos que precisava se esforçar para captar algumas palavras soltas:-- Decepção.-- Armas vivas.-- Reprogramados e melhorados.A hitodama parou atrás da jovem miko, como que esperando à distância para não se envolver. Agora logo acima da cabeça de Takako, só iluminava um pequeno trecho adiante, depois havia só um breu impen
Último capítulo