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Sayuri se dedicou a explorar o convés no momento em que as pessoas no porto ficaram indistinguíveis à distância. Takako pegou as bolsas de viagem e dirigiu-se às cabines que passariam a ocupar.  Mikoto ainda ficou agarrada à amurada, sentindo-se um pouco enjoada com o movimento do navio.

Ela ainda estava nessa posição quando Sayuri voltou de sua pequena excursão e sugeriu, na tentativa de distraí-la:

-- Que tal mostrar um pouco do que você sabe de naginata?

As duas usaram cabos de vassoura, os objetos mais parecidos com a arma que encontraram a bordo, e Mikoto passou algumas horas divertidas mostrando a Sayuri como manejá-la. Ela não era muito boa nisso.

Na hora do almoço, Takako interrompeu o treinamento (ou seria brincadeira?), e uma ofegante, porém alegre Sayuri largou seu cabo de vassoura e puxou Mikoto para um abraço, quase pulando de alegria.

-- Isso é tão legal, eu sempre quis ter uma irmã caçula. Você também não queria, Takako?

-- Eu já tenho uma, Sayuri: você. E desempenhou perfeitamente bem o papel de caçulinha problemática.

-- Só porque eu sem querer pus fogo na saia dela quando éramos pequenas num exercício de magia – ela sussurrou para Mikoto, que ficou boquiaberta.

As três foram para a cozinha no convés inferior. Sayuri se encarregou de falar durante a refeição, e Takako e os tripulantes, quase todos homens altos e pele muito bronzeada pelo tempo ao sol, ouviam com sorrisos contidos.

Mikoto percebeu que todos se conheciam e tinham semelhanças físicas, com certeza eram membros do clã também, parentes das duas miko. Novamente sentiu-se fora de lugar, e desejou estar em casa, cercada pelos rostos familiares dos moradores da ilha.

O enjoo, que passara durante as horas com Sayuri, voltou assim que o almoço terminou, e Mikoto retirou-se para o banheiro de sua cabine, lutando para manter a comida no estômago enquanto o navio continuava a balançar.

Não soube quanto tempo ficou ali, podiam ter sido horas ou menos de uma, mas num momento alguém bateu à porta e Takako entrou. Ela estendeu uma xícara com um líquido amarelado transparente.

-- Tome, é remédio para enjoo. Nós precisamos usar o banheiro também.

Mikoto engoliu todo o conteúdo da xícara em um só gole e se arrastou para sua cama. Percebeu que pela primeira vez, Takako não lhe dirigira aquele olhar de professora a um aluno com ficha suja, agora exibia uma expressão mais suave. De pena.

Ela estava com pena da menina doente. De certa forma era algum progresso.

Em pouco tempo o estômago de Mikoto se acalmou, e percebendo que ela estava melhor, Takako chamou Sayuri, e as duas se sentaram junto à cama, mais sérias do que o normal.

-- Amanhã de manhã teremos chegado a nosso destino, então vamos esclarecer qual é a nossa missão – Takako inclinou-se mais para perto de Mikoto – Recentemente começaram pequenas divergências entre os países de Ao e Aka, e que evoluiu para o que pode muito em breve ser um conflito armado. Normalmente isso seria uma questão puramente política, mas alguns dos sacerdotes da região nos informaram que pode haver algo mais envolvido. Correm boatos de youkai serem avistados.

“Por enquanto as autoridades estão lidando com isso, acalmando as pessoas para que não haja pânico, mas como fomos informadas, há alguma verdade nesses boatos. Nosso trabalho é encontrar esses youkai, descobrir de onde eles vieram e fazer com que mais nenhum apareça”.

Ouvir aquelas palavras ditas com tanta seriedade parecia tão absurdo e irreal que fazia Mikoto se sentir dentro de um filme. Ainda era difícil de acreditar que aquilo era real, e talvez ela só acreditasse se visse um desses supostos youkai na sua frente.

-- Acha que podemos nos envolver em conflito? – Sayuri perguntou.

-- É bem provável, por isso vou preparar alguns ofuda para nós hoje mesmo. Você sabe usá-los, Mikoto?

-- Eu ajudava a espalhá-los pelo santuário depois do ano-novo. Para que vocês usam?

-- Acho que vamos ter que dar uma aula intensiva a ela – Sayuri abriu sua bolsa de viagem e tirou um punhado de talismãs de papel em branco e um pincel – Quando temos o poder das pérolas ao nosso lado, os ofuda são instrumentos para usá-lo, sabe?

Sayuri mergulhou o pincel num pequeno tinteiro e escreveu o kami do fogo, então o ergueu entre o indicador e o dedo médio.

-- Fogo.

Um jato de chamas brotou do papel. Mikoto jogou-se no chão e só levantou a cabeça quando o calor desapareceu do quarto. Sayuri guardou o papel no bolso e Takako olhou para ela irritada.

-- Fogo? Você podia ter incendiado a cabine conosco dentro!

-- Não, porque eu o controlei muito bem. Sabe que sou boa em magia. A vez que incendiei sua saia não conta, Takako, eu ainda não era tão hábil na época, então nem pense em mencionar isso de novo.

Takako revirou os olhos e voltou-se para Mikoto.

-- Não precisa escrever sempre algo como fogo. Pode ser qualquer elemento ou outros tipos de feitiços, como a “proteção” que usamos nos templos.

Mikoto escreveu em um dos papéis e disse, fazendo a voz mais firme que conseguia:

-- Vento!

Foi como se um minitornado explodisse em sua mão. Os papéis em branco voaram para depois cair como neve e os cabelos das três foram soprados para trás. Takako tossiu.

-- Certo, você já consegue conjurar kami, o próximo passo é aprender a controlar a dose... Ei!

De repente as pernas de Mikoto perderam toda a força, e ela teria caído de cara no chão se as outras duas jovens não a tivessem segurado. Sayuri disse em tom de desculpa:

-- Esquecemos de dizer que conjurar kami exige muita energia.

-- E quanto mais complexo for aquilo que você invoca, mais desgastante é – Takako complementou enquanto ajudava Mikoto a ir para a cama – Com a prática, você vai aprender a conjurar vento na medida certa também.

A pequena explosão de ar devia ter sugado toda a sua energia, pois não demorou nem um minuto para Mikoto adormecer, observando as duas primas recolherem os papéis em branco que ela espalhara.

***

Alguém sacudia seu ombro para acordá-la.

-- Você perdeu o jantar, mas não vai perder o café. Levante, antes que a comida acabe – era Takako.

Já era de manhã? Mikoto dormira a noite inteira? Ela se sentou num pulo. Takako terminava de arrumar as bolsas de viagem.

-- Sayuri vai guardar um prato para você. Vá logo para a cozinha.

Mikoto se sentia mais faminta do que já estivera na vida, e devorou todo o arroz de sua tigela em minutos. Dessa vez, não ficou enjoada, e percebeu que o navio não se balançava como antes. Sayuri contou:

-- Atracamos em Ao. Vamos sair agora para falar com o rei Ayahito.

Ao era a região leste de Yamato, Mikoto se lembrou das aulas de Geografia. Era a segunda mais rica das quatro regiões, e diziam que seus governantes eram descendentes de um ramo perdido da família do imperador.

O porto era tão movimentado e cheio quanto o da capital sagrada, como Mikoto imaginou que seria, mas diferente de antes, agora ela não tinha a mais remota ideia do que fazer ou para onde ir. Ainda bem que tinha Sayuri e Takako à frente para indicar o caminho.

-- Não podemos pedir um táxi? – Sayuri pediu quando chegaram à calçada e Takako continuou a andar.

-- A tradição nos ensina a ser um exemplo de humildade. E também não vai te fazer mal andar um pouco, Sayuri, você podia estar em melhor forma.

-- Mas vamos demorar mais meia hora para chegar – ela ainda choramingou. Takako revirou os olhos.

-- Pare de reclamar, Mikoto não parece ter problema em andar.

Isso porque Mikoto estava acostumada a descer a colina do santuário de Iruka e percorrer o caminho até a escola a pé todos os dias, por isso aguentou sem problemas a caminhada.

Sayuri, no entanto, e um dos dois guardas que as acompanhavam desde que saíram do navio, pareciam prestes a pôr os bofes para fora quando chegaram à entrada do prédio, cujo tamanho e imponência faziam jus ao título de edifício governamental.

Os seguranças no portão abriram caminho para as três jovens assim que elas mostraram suas pérolas, e a pequena comitiva adentrou.

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