POV MANUELA
Dizem que eu, Manuela Romanova, fui amada por três anos. Pelo menos é o que contaram. Eu não lembro, porque até os três anos crianças não adquirem memórias do que viveram. Ainda assim eu me apegava ao que ouvia, para seguir em frente, ou morreria de tristeza e dor.
Minha vida era o caos. Eu era rejeitada pela minha própria família, mantida como empregada e responsável por manter a casa. Ainda assim seguia em frente, porque acreditava que poderia ser pior.... tipo eu sequer ter sido adotada um dia e passar a vida num orfanato sem saber o que era de fato uma casa.
Há um ano atrás eu flagrei meu noivo, Dominic, que atualmente é meu chefe no Hotel Bali, onde eu trabalho de camareira, na minha própria cama, transando com a minha irmã. Terminei o relacionamento, mas segui tendo que responder a ele por tudo que eu fazia no trabalho, tendo que lidar constantemente com seu assédio e insistência em me levar para a cama, só pelo fato de eu ainda ser virgem e o sujeito achar que eu lhe devia minha virgindade pelo tempo que “perdeu comigo”. Dominic fez com que eu acreditasse que me traiu porque nunca o deixei me tocar. E por muito tempo concordei com a fala dele.
Sofri, porque eu gostava de Dominic. Mas com as maldades que ele me fez depois do ocorrido, aquele sentimento foi sendo substituído por algo doloroso e a certeza de um relacionamento que jamais seria reatado. No fim, foi só mais uma rejeição, daquelas que eu estava acostumada. Não era só por parte dele, das minhas irmãs, da minha mãe... eu sempre fui rejeitada pela vida.
Ainda assim todos os dias levantada da minha cama com um sorriso no rosto, disposta a enfrentar a vida com o meu coração cheio de esperanças, pois que nada poderia ficar pior. Eu já vivia na pior situação possível. Mas respirava, tinha um teto e saúde para trabalhar. Então era grata.
Espreguicei-me na cama e olhei para o relógio, que despertou às 5 horas da manhã. Já tinha passado um minuto e eu ainda estava ali, não fazendo nada. E eu não podia, de forma alguma, não fazer nada.
Algumas pessoas tinham o hábito de acordar pela manhã e fazer o sinal da cruz e pedir a Deus que fosse um bom dia. Eu, ao contrário, olhava para Fred Hunt no pôster que ficava colado na parede de frente à minha cama e o venerava. Ao final, dizia:
- Deus, proteja este homem e um dia promova o nosso encontro.
Respirei fundo e olhei pela fresta da janela. Estava amanhecendo. Desci para o segundo andar e tomei um banho rápido. Era lá o banheiro mais próximo. Depois voltei para o sótão, que era onde eu dormia (e vivia), em minha própria casa. Dizem que um dia eu dormi no quarto dos meus pais, num berço bem próximo à cama. Mas eu não lembro desta parte.
Enfim... só havia três quartos na casa e minha mãe dormia em um e os outros dois eram ocupados por minhas duas irmãs. Minha melhor amiga dizia que era um absurdo eu dormir naquele sótão pequeno, úmido, com cheiro de mofo e uma janela minúscula que mal o arejava. Na minha opinião poderia ser ainda pior se minha mãe achasse que o porão era meu lugar.
Pus meu uniforme e desci para a cozinha, que ficava no primeiro andar, junto da sala, lavabo e área de serviço. Botei o café para passar enquanto deixava a mesa posta com três lugares. Depois do café pronto, botei na garrafa térmica para que minha mãe e minhas irmãs pudessem saboreá-lo quente. Ninguém merecia café frio ou morno. Completei a mesa posta com pães que eu havia preparado na noite anterior e alguns biscoitos de amido que peguei a receita com a cozinheira do hotel onde eu trabalhava.
Estava indo em direção à porta quando minha irmã Carly apareceu no topo da escada. Me olhou e bocejou:
- Onde vai, empregada?
Nunca tive certeza se o “empregada” que ela usava para se referir a mim vez ou outra era brincadeira ou realmente achava que aquele era meu papel naquela casa.
- Trabalhar, como faço todos os dias.
- Hum... até esqueço às vezes que você vive aqui! – deu de ombros e desceu as escadas.
- Mas eu vivo.
Se eu não vivesse, ela não comeria, não teria energia elétrica, água e roupa lavada.
- O que está fazendo... acordada tão cedo? – perguntei, já que Carly raramente acordava antes das 10 horas.
- Senti o cheiro de café.
- Acabei de preparar – sorri – e fiz uns biscoitos de amido. Espero que gostem.
Ela foi até a cozinha e quando eu estava abrindo a porta perguntou, comendo um biscoito:
- Por que não fez hoje os biscoitos?
- Estão frescos. Fiz ontem quando cheguei.
- Pois não faça mais de um dia para o outro. Meu estômago é sensível. Sabe que não posso comer coisas velhas.
- Não está velho... eu... fiz há poucas horas.
- Pois quero frescos da próxima vez. Acorde mais cedo e sirva-os quentes.
- Você jamais os comerá quentes, porque acorda tarde.
- Deixe de se insolente, Manuela.
- Só estou... sendo sincera.
- Pois ninguém pediu sua sinceridade. Aliás, poupe-me de seus comentários.
- Carly, você percebe o que está dizendo? Eu fiz os biscoitos, deixei a mesa posta com o café... e ainda acha que está ruim?
- Você mora aqui de favor. Não faz nada mais que a sua obrigação. Entende agora por que Dominic não quis e implorou por mim? Porque você é patética, Manuela. E digna de pena. Não acho que mamãe deveria deixar que usasse o nosso sobrenome. Isto mancha a dignidade de nossa família.
Engoli em seco e não respondi. Saí e fechei a porta, sabendo que ela voltaria para a cama. E que quando eu chegasse não haveria um biscoito sequer sobrando, porque elas comeriam tudo. E ainda deixariam a louça para eu lavar.
Simone, minha melhor amiga, brincava que eu era a Cinderela. E eu tentava me apegar àquele conto de fadas, tentando acreditar que um dia encontraria o meu Fred Encantado e ele me tiraria daquela vida.
Eu tinha uma casa, uma família, mas não um lar. Diferente de Cinderela, minha mãe, Irene Romanova, não era minha madrasta e sim a mulher que me adotou quando nasci. Sim, ela e meu pai esperaram anos na fila de adoção e (dizem) que ficaram imensamente felizes quando cheguei naquela casa.
Antes de eu completar três anos de vida, minha mãe engravidou de forma milagrosa, já que antes nenhum dos tratamentos que fez deram certo. Dizem, ou melhor, Cláudia diz, que foi depois disto que os Romanova passaram a ignorar a minha existência. Cláudia era a vó de Simone. Elas eram nossas vizinhas. Mas... tudo poderia ser pior, tipo eu nunca ter sido adotada e viver num orfanato. Contavam histórias escabrosas do orfanato mais próximo.
Eu sabia que contos de fadas eram coisas de livros. Na minha história não havia fada madrinha ou esperanças. Enquanto minha mãe dava tudo para as minhas irmãs, a mim restava trabalhar, no hotel e em casa. Eu as sustentava desde que minha mãe tinha machucado a perna e a partir daí não pôde mais trabalhar. Não me sobrava dinheiro para comprar nada para mim. Cada centavo ia para o sustento da casa.
Meu pai morreu há alguns anos atrás. Ele não era bom comigo, mas um pouco melhor do que a minha mãe. Afundado em dívidas, só nos deixou a casa. Mamãe trabalhou um tempo e quando foi afastada por problemas de saúde, tive que deixar a escola e arranjar um trabalho. Então consegui uma vaga de camareira no Hotel Bali.