O embrulho no meu estômago e a dor de cabeça só pioraram. Joguei os óculos sobre o notebook e desmoronei na cadeira. As lágrimas rolaram descontroladamente. Aquilo não podia verdade. As lembranças dos jantares, viagens e passeios com ela estavam bem frescas na minha memória. A preocupação da minha namorada em ir comigo até o aeroporto e aguardar meu embarque eram uma prova de amor para mim.
Um tempo depois da notícia trágica, consegui pensar um pouco melhor. Aquele mal-estar e o desespero pelo que aconteceu, permaneceram. Que ideia a minha de parar para um desconhecido naquela estrada deserta.
- Onde ela está? – sentei e espirei forte para que a dor no meu peito saísse com o ar dos pulmões. Inclinei a cabeça para trás e cobri os olhos com as mãos. As lágrimas escorriam.
- Em um lugar difícil de chegar no meio da mata.
- Iremos de carro até um pedaço ... – pensei um pouco. - Andaremos por dentro da mata ... - peguei a carteira e as chaves do carro que estavam na estante, logo atrás da cadeira, e andei para a porta.
- Arkel, você não pode ir até lá – o inspetor pôs a mão em meu ombro. Ele queria me impedir.
- Por que não? - parei frente a frente com ele.
- Ao que tudo indica é a cena do crime e pode levar dias para concluírem a perícia. O terreno está encharcado por causa da garoa que não para de cair.
Encarei o inspetor, coloquei as mãos na cintura e esperei que ele concluísse.
- Parece frio da minha parte, mas preciso fazer algumas perguntas para esclarecer o que aconteceu – o inspetor me encarou e ajeitou os óculos.
- Que perguntas? – Para mim, eles tinham que ir atrás daqueles criminosos.
- Os sequestradores geralmente só querem o dinheiro e, sempre que há uma morte, existe uma razão pessoal.
- Algo contra ela? – enruguei a testa em sinal de interrogação.
- Contra a sua namorada ou contra alguém ligado a ela. Geralmente o interessado na morte da pessoa não participa do sequestro, apenas contrata os marginais e repassa informações que facilitam o trabalho deles.
- Como o momento que estaríamos naquela estrada – nesse momento, notei que mais um carro da polícia estacionou no meu quintal.
- Exatamente.
- Alguém próximo a sequestrou e a matou para atingir alguém próximo? – A coisa não fazia nenhum sentido para mim e, ao mesmo tempo, significou muito.
- Ao que tudo indica, alguém com algo contra você ou contra os pais dela, por isso precisamos investigar - ele coçou o queixo e me encarou. - Arkel, me fale como se conheceram, como ia o relacionamento de vocês e o que aconteceu nos últimos dias. O que lembrar.
É bem difícil retornar ao passado sem me emocionar. Uma amiga em comum nos apresentou. Lembrei de um ex-namorado dela, um tal de Antônio Serium, que não aceitou o fim do relacionamento entre eles. O frustrado em questão, causara problemas por um bom tempo. Antônio chegou a ir atrás de mim para conversarmos e, como não me encontrou, foi embora.
Para expandir meus negócios, eu não saía das estradas e nem dos aeroportos. Geralmente eu partia no domingo e voltava no final da tarde de sexta. A minha namorada era muito ciumenta e as discussões aconteciam sempre que eu chegava tarde da noite de sexta ou no sábado. O gênio dela era um dos piores que conheci e a língua bastante afiada. Sinceramente, as vezes a minha namorada me fazia pensar que não fomos feitos um para o outro. A última briga aconteceu porque não voltei a tempo para um jantar com os amigos dela. Antes mesmo de pegar o voo, decidi que daríamos um tempo, caso ela não conseguisse controlar os ciúmes, os gritos e a língua. E, nada surpreso, brigamos. Queria que ela refletisse a respeito do futuro do nosso relacionamento. Não foi bem assim que ela encarou.
“- Seu caipira ... você não é capaz de distinguir entre um queijo fino e um feito nesses currais que costumar ir ... com certeza você tem outra – ela gritou.
Afirmar que a minha namorada ficou furiosa era como comparar um filete de água a uma enxurrada. Foi largando os xingamentos, ofensas e insanidades com naturalidade.
Com as pupilas dilatadas, me encarou e baixou os olhos para a mesa do escritório. Fui ágil e puxei meu notebook. Conseguiu tirá-lo da sua mira.
– Aposto que está saindo com uma dessas rameiras que frequentam esse pardieiro que você chama de casa. –
Não fui rápido o bastante com o celular. O aparelho se partiu em mil pedaços na parede. Em seguida, ela espalmou as mãos sobre a mesa e as arrastou. O porta-canetas, o porta-retrato com a nossa foto e a minha agenda foram arremessados pela janela. O monte perfeito de papéis, organizados meticulosamente por mim, criaram asas e se espalharam pelo cômodo. E continuou a gritaria.
– Aqueles seus pais são uns ...
Abri minha boca alguns centímetros, depois me recompus rapidamente numa expressão de indignação. Aquilo já era demais, cheguei no meu limite, e decidi pôr fim aquele rompante.
– NÃO OUSE ... – como nunca antes, gritei com a minha namorada - ofender os meus pais – com os olhos arregalados, ergui o indicador para frear a língua afiada dela.
- Nunca encontrará alguém como eu ... – a Bia pegou a bolsa, me encarou e saiu pela porta do escritório. Seus passos curtos e pesados, com o salto quicando no assoalho da minha casa, deram a dimensão da sua ira. A briga acabou com o baque forte e proposital da porta da sala, assim que ela saiu.
No sábado, postou uma foto nas redes sociais de rosto colado com um desconhecido. Fiquei furioso e imaginei seus lábios contra os do desgraçado, montada nua em seu colo com os seios rosados e rijos, subindo e descendo rapidamente, por sua respiração agitada. Sou um cara orgulhoso. Lembrei dos gritos, xingamentos e ofensas e não liguei para pedir explicações. Como não dei a mínima, mandou mensagens e ligou para falar comigo. Não respondi e me procurou se dizendo arrependida. Abriu que queria voltar e que, em um momento de desespero, tirou a foto para fazer ciúmes. Me garantiu que não aconteceu nada entre eles. Fiquei na minha, imaginei mesmo que queria fazer ciúmes. O Soares a mimou demais. Falei que ela foi imatura e insisti para continuarmos distantes. As semanas se passaram e começamos a conversar. Senti que amadureceu e decidi que era a hora de voltarmos. A minha namorada falou em casamento, alegando que isso a deixaria mais segura, e não concordei. No fundo, o descontrole dela durante a última briga, me assustou e muito. Por isso, esclareci que não permitiria mais ofensas, gritos ou acusações daquele tipo. Foi o que exigi dela, que se desculpou e prometeu não agir mais daquela forma. Eu a perdoei, mas não esqueci das duras palavras que largou em cima de mim. Por fim, paguei para ver.
Não relatei a baixaria ao inspetor. Apenas disse que ela me acusou de ter outra e que não reagiu bem ao tempo que pedi. Aprendi que a relação dinheiro, poder e respeito nem sempre era direta.
- Entendi – Santori me encarou. – Você é um homem muito ciumento?
- Onde o senhor quer chegar?
- Estou fazendo algumas perguntas para entender o que aconteceu nos últimos dias – Santori anotou algo e continuou. - Arkel, você tem algum inimigo?
Lembrei de um aborrecimento recente.
- Existe um ex-funcionário que precisei demitir e o cara não reagiu bem.
O inspetor atendeu a uma ligação, escutou atentamente o que a pessoa falou do outro lado e o encarou.
- O Soares recebeu uma ligação anônima – Santori respirou fundo e me encarou. A cara dele não era das melhores.
- E o que falaram?
- Que você armou o sequestro e, como ela descobriu, mandou matá-la.
- Como assim? – não acreditei naquele disparate e engoli seco.
No dia seguinte, antes mesmo de amanhecer, sequer consegui engolir um pedaço de pão. Assim que o inspetor colocou os pés na casa da fazenda, o interrogatório recomeçou.
- Arkel, preciso que continue - O inspetor olhou para o relógio de parede do escritório e já eram 7h11 de uma quinta-feira nublada.
- Já a tiraram da casa? – Era difícil até respirar.
- Os peritos continuam no local – O inspetor meneou a cabeça.
- Além do ex-namorado, ela nunca reclamou de ninguém.
- Já mandei investigar o ex-funcionário que o ameaçou – Santori apontou para mim. – Continue, Arkel.
- A única coisa que me lembrei é que ela parecia estranha nos últimos dias.
- Estranha como?
Na primeira semana depois que voltamos, mandou muitas mensagens e conversamos por horas ao celular. A minha namorada demonstrou estar com muitas saudades. Como sempre, encaminhou uma foto bem quente assim que cheguei ao aeroporto na sexta-feira. Lembro da primeira que mandou assim que começamos a namorar. Foi uma foto dos seios com os mamilos rosados, arrepiados e duros. Complementou com uma mensagem bem manhosa.
“Arkel, não aguento mais me masturbar, chegue logo”.
Simplesmente, era uma tortura e a única coisa que eu queria era chegar e matar a saudade da minha fogosa namorada. Era muito bom.
Na segunda semana, as ligações foram minguadas e rápidas e as poucas mensagens foram frias e curtas. Na sexta, me pegou no aeroporto com cara de choro. Ao perguntar, me disse que não era nada. No sábado, foi a mesma coisa. No domingo, acordamos daquele jeito estranho. Além de distantes, correspondeu mal aos meus beijos o final de semana inteiro. Sexo para mim, em um relacionamento, é fundamental. Estranhei e com razão, a minha namorada também gostava muito da coisa. Logo que subiu as escadas para o meu quarto, fui atrás e a questionei. Tenho certeza que chorou durante a noite. Naquela manhã de domingo, depois que eu a pressionei, ela colocou a primeira roupa que encontrou pela frente, o que não era normal para uma socialite. Bem estranho mesmo. Entramos no carro calados e fomos para o almoço na casa dos amigos dela. Antes da ponte, encontrei o senhor de idade e a merda do sequestro aconteceu. Não entendi porque a Beatriz insistiu para eu parar.
- Continue com o dia do sequestro – Santori consultou as anotações anteriores.
Não consegui entender em que isso ajudaria, afinal, já relatei o que acontecera no dia do sequestro. Mesmo assim, repeti o que aconteceu naquela manhã de domingo.
- Aquele homem usado como isca precisa ser encontrado – assenti e ele me encarou. – O duro é que os sequestradores estavam de máscaras – era como se o inspetor estivesse fazendo alguma analogia.
- Lembra de algo mais?
- Vocês precisam comer – Catarina falou na porta do escritório.
Aguardei que Santori terminasse de saborear a sobremesa e empurrei meu prato. Com o olhar perdido, abracei com as mãos a xícara de chá verde fumegando. Queria que o calor das minhas mãos chegasse ao meu coração e me acalmasse.
- Você precisa comer – o inspetor encarou o prato que nem mexi.
- A comida não desce – falei mesmo.
O retrato-falado dos sequestradores não ajudou muito e, ao mesmo tempo, trouxe alguns nomes. O inspetor anotou.
Outros 3 dias se passaram e nada importante aconteceu. Um ou dois carros, com alguns policiais, permaneciam estacionados no quintal da minha casa. Sei que me consideram suspeito, o que me deixou indignado. Nem ao menos cogitaram qualquer outra hipótese. Não sabiam quem eram os verdadeiros culpados e nem por que a mataram.
- Arkel, as notícias não são boas – o inspetor entrou rapidamente pela porta.
- O que aconteceu?
- Por que não me disse que a Beatriz estava grávida?
- Porque ela não me disse nada – confuso, coloquei as mãos no alto da cabeça.
- Por que ela não diria? – Santori espalmou as mãos sobre a mesa e me encarou.
- Não sei – apertei minhas mandíbulas. - Por que ela esconderia isso de mim? – dei a volta na mesa e desmoronei na cadeira. - Não entendo por que ela não me falou nada.
- Tem mais uma coisa – o inspetor, com o olhar perdido, parou com as mãos nos quadris.
Com uma expressão de desânimo e frustração, joguei o corpo no encosto da cadeira.
- Os assassinos a mataram antes da entrega do resgate. O laudo ainda não é conclusivo, mas o legista me garantiu, em off, que foi antes.
- Eles são uns monstros - corrigi a postura e esfreguei as mãos nos braços da cadeira. Nada mais me surpreenderia.
- O Soares sabe que a mataram antes da entrega do resgate? – Larguei meu olhar confuso para o Santori.
- Logo saberá.
- Você acredita que eu seria capaz de ... – engasguei.
- A minha opinião não conta. O que você precisa é de um bom advogado. A publicação do Soares viralizou na internet e pode acelerar algumas fases.
Assenti.
- O Soares disse que você está com problemas financeiros.
- Comprei, há menos de 3 meses, uma fazenda na região metropolitana da capital. Foi uma oportunidade que surgiu.
- Não importa, é algo contra você.
- Não há nenhuma pista de quem são os sequestradores?
- Nada.
- E o Soares? Não tem desafeto com ninguém? – Eu o encarei e tamborilei o indicador na mesa. – Já o interrogaram? – continuei a encará-lo. – Você me disse que era alguém com algo contra ela ou alguém ligado a ela – balancei minha cabeça de um lado para o outro, sem acreditar no que acontecia. – Os parentes dela são políticos poderosos. Quanto mais poderoso um homem é, mais inimigos ele tem.
- Arkel, ...
- Um telefonema anônimo não pode ser o bastante para me incriminar.
- Há muitos indícios contra você.
- Vocês colocaram policiais para vigiarem ...
- Sim e ninguém entrou ou saiu daquela estrada.
- Com certeza, usaram um pequeno barco e seguiram pelo rio ou fugiram pela mata.
- Você conhece bem aquela região, não é? – Santori pousou as mãos nos quadris.
- Como muitos que moram na região – apoiei os braços cruzados no peito e o afrontei. – Nasci e morei aqui por anos.
Santori apenas anotou.
- Lembrei de uma coisa que meu pai me contou há alguns dias, antes de retornar com minha mãe para Curitiba.
- Fale.
- Foi há muitos anos ... um sócio do Soares foi preso por tráfico de drogas.
Santori ergueu uma das sobrancelhas.
- Foi notícia no país inteiro – Arkel foi até a janela – e este sócio cometeu suicídio e deixou a mulher e um adolescente órfão. Existe até uma carta escrita por ele que acusaria o Soares de armar o flagrante – Arkel parou e o encarou com sarcasmo. – Não sabia disso?
- Não sou obrigado a saber de tudo.
- Hoje, aquele adolescente é um homem feito – Arkel apontou para a janela e o encarou. – Será que ele não passou anos alimentando um ódio que resultou em uma vingança contra o Soares? – Arkel o indagou com os olhos. – É algo contra alguém próximo a ela, não é?
Santori assentiu e fez uma ligação.