Porto Alegre – Rio Grande do Sul
Dafne
Da janela da pequena sala de espera, vizinha ao berçário, Dafne observava a chuva caindo no Jardim Europa. Gotas grossas e frias, caindo de um céu noturno, arrebentando-se contra a vidraça, e envolvendo tudo num manto branco.
De repente, estremeceu.
A chuva sempre fazia ela se lembrar, trazendo de volta ao passado, com clareza cruel. Mas, com o passar dos anos, será que a dor diminuiria, e as cicatrizes emocionais iriam sarar, como as físicas tinham desaparecido?
O espelho não mostrava mais nenhum sinal delas, e mesmo os sensíveis dedos não podiam encontrá-las. Certo, Dafne ainda tinha as faces encovadas, e parecia mais velha do que era, mas, por ironia, com as faces remodeladas, agora estava quase bonita, enquanto antes era apenas atraente.
Uma batida na porta a despertou dos devaneios.
- Espero não estar te incomodando, Dafne. – Luiza Garcia sua patroa, era sempre muito polida, bem como agradável e amiga. - Só que pensei que você deveria saber sobre o que nós decidimos. Meu marido precisa assumir seu lugar no Memorial Hospital antes do Ano-Novo, de modo que estaremos nos mudando para a Vitória durante o feriado de Natal.
A decisão deles de voltarem para o Espirito Santo, já tinha sido mencionada e discutida, porém, Dafne pensou que tinha alguma chance de não acontecer, e também tentou não pensar naquilo.
Fazia mais de dois anos que os Garcia tinham se arriscado, depois de ouvir um pouco de sua história, e empregado a mulher quieta, de olhos tristes, para ser babá de suas filhas Clara e Aurora, agora com três anos de idade. Dafne estava estabelecida aqui, segura e, se não feliz, pelo menos contente.
A mudança significava um transtorno, uma partida que estive temendo sempre que se lembrava desse assunto.
- Vou sentir falta de Porto Alegre - Luiza prosseguiu, se sentando na cadeira oposta a Dafne. - Contudo, quero voltar a trabalhar no escritório da minha família, e estaremos quase na porta ao lado de meus pais. Mamãe está impaciente para tomar conta das meninas...
Aquelas crianças que tinham ajudado a preencher os braços e o coração vazios de Dafne.
- Apesar de que tenho uma tremenda certeza de que ela vai estragá-las.
De repente, se dando conta da desolação que Dafne procurava esconder, Luiza se calou.
Após um momento, prosseguiu, com um ar prático e mais enérgico.
- Na verdade, o que vim te dizer foi que esta tarde Otília Cavalcante telefonou para o escritório para perguntar se você estaria procurando outro emprego como esse. Ela sabe de um rico empresário que precisa de uma babá de confiança e está disposto a pagar um ótimo salário. Há uma menina de mais ou menos a mesma idade das minhas da Clara. O pai dela é viúvo ou divorciado, não estou certa, mas isso não importa agora. A avó da criança tomava conta dela, mas há alguns meses a senhora morreu inesperadamente.
Luiza suspirou, um pouco desconfortável pelo silêncio de Dafne.
- Pelo que sei, a pessoa que cuidava da criança não conseguiu conquistar a confiança dela. A pobre criancinha não gostava dela e preferia ficar com a governanta. Quando o pai descobriu o que estava acontecendo, despediu a mulher que aparentemente não tinha a menor vocação para babá. Eles precisam de alguém que possa começar já. Ele estará na residência amanhã de manhã, caso você queira uma dispensa para ir conversar e tentar uma entrevista.
- É muita gentileza sua pensar em mim dessa forma, Dona Luiza, mas eu não posso começar imediatamente. Preciso cuidar das meninas e....
Luiza fez um gesto com a mão a interrompendo.
- Limpei minha mesa do escritório hoje e estarei em casa até a mudança. Assim, se decidir tentar o emprego, estou certa de que posso dar conta. Você foi uma verdadeira enviada por Deus para mim, Dafne, e eu estou muito grata por todo carinho e cuidado que prestou as minhas filhas. É por isso que gostaria de te ver bem acolhida antes de nossa partida. O nome do homem é Cezar Hoffmann. Ele possui uma bela residência na Península Ponta da Figueira Marina. Escrevi o endereço e o número do telefone aqui.
Ela passou um folha de papel dobrada.
- Bem, acho que é melhor eu sair, ou o Samuel pode ficar irritado com o meu atraso. Temos ingressos para um concerto no teatro. Isso se a chuva não estiver muito pesada.
Mas, embora Dafne tivesse aceitado o pedaço de papel, ela não ouviu absolutamente nada desde que o nome Cezar Hoffmann tinha sido mencionado.
O choque da menção daquele nome fez seu sangue retumbar nos ouvidos e trouxe uma escuridão que ameaçava sufoca-la lentamente. Quando a porta se fechou atrás de sua patroa, Dafne se inclinou para a frente e pôs a cabeça entre os joelhos.
Depois de um tempo naquela posição, a tontura começou a passar. Que brincadeira macabra do destino! Era quase inacreditável que o homem que precisava de uma babá com tanta urgência tivesse de ser o único para quem ela não podia trabalhar. Seria mesmo ele? O endereço era diferente...Sim, tinha de ser. Cézar era um nome bastante comum, mas Cezar Hoffmann não, e de certo modo o resto se ajustava. Na última vez em que ouviu falar dele, a madrasta de Cézar estava cuidando de sua filhinha, e ele estava para casar.
Mas agora parece que ficou livre, e, com a morte de sua madrasta, a criança fora colocada aos cuidados de uma babá. Com um repentino sentimento de angústia, Dafne se lembrou de Luiza Garcia dizendo algo como: "A babá não conseguiu ganhar a confiança da menininha. A pobrezinha não gostava dela". Fechando os olhos com força, Dafne lutou contra a vontade de chorar. Se apenas as circunstâncias fossem diferentes... Em uma questão de semanas, não teria casa nem emprego, contudo, não havia nada que pudesse fazer.
Ou havia? Cézar não reconheceria o Dafne Vieira. Quando ela o conheceu, se chamava Pilar Gonçalves dos Santos. Apesar de que, após tanto tempo, Dafne devia estar acostumada à metamorfose, de vez em quando era um choque ver uma estranha olhando de volta para ela do espelho.
Quando aos vinte e dois, pesava nove quilos a mais, e os cabelos eram curtos, castanhos e ondulados. Agora, estavam longos e lisos, de volta ao loiro natural.
Naquele tempo, era jovem, atraente e curvilínea. Envelheceu drasticamente, se não em anos pelo menos em experiência. Seu corpo era magro, quase esquelética, e seu brilho estava extinto. Não, Cézar não a reconheceria. Após várias sessões de cirurgia plástica, duvidava que sua própria mãe a reconhecesse.
Mas era um risco que não podia correr.
Dafne ainda podia ver a expressão dele, o modo como Cézar a olhou com desprezo e condenação. Ainda assim o desejo de tornar a vê-lo, a necessidade de ver a filha dele, era como uma dor física. Não! Não podia fazer isso. Esse passo seria completa loucura e abriria todas as velhas feridas e destruiria a pouca paz de espírito que tinha conseguido alcançar. Mas, se conseguisse a colocação de babá, seria a resposta a todas as suas preces... Então, decidiu. Marcaria uma entrevista com ele.