Loucura
Loucura
Por: ABDENAL CARVALHO
Capítulo 1 - Abandono

Suas andanças pelas ruas da metrópole paraense, às vezes sob pesada enxurrada das chuvas, num clima quente e úmido, em outras ocasiões debaixo da escaldante luz do sol que queimava sua envelhecida pele, escurecida pela densa temperatura que impiedosamente o castigava durante aquela peregrinação miserável.

Carregava como fardo o desalento e muitas lembranças amargas do passado, bem como um saco imundo sobre os ombros, cheio de várias porcarias encontradas nos lixos espalhados por todo o trajeto por onde costumava passar.  Juntava tudo quanto parecia-lhe útil, de acordo com suas loucas ideias. Alimentando-se de restos de comidas encontrados nas lixeiras localizadas na frente das belas casas, onde certamente ele jamais entraria.

Reconhecia não ter valor algum como pessoa, era um penitente já conformado com a pobreza na qual vivia desde muito tempo atrás. Naquela noite, como tantas outras, decide dormir numa das várias praças existentes. Para dar repouso a seu corpo cansado sobre os papelões que trazia dentro do sujo saco de estopa em que mantinha seus poucos pertences.

 Ele não era o único a perambular por aqueles lados e era necessário dividir espaço com outros mendigos. às vezes até usar da força para intimidar os mais perigosos e conservar um pequeno espaço onde encontrar descanso. O governo criou os restaurantes populares que vendiam uma refeição por menos de dois reais.

 Uma quantia bem acessível para quem nada tinha. Ao meio dia era imensa a fila que os esfomeados faziam para adquirir um prato feito, pagando com moedas recebidas como esmolas. Elas lhes eram dadas pelos que transitavam pelas estreitas ruas do centro da cidade. Ali se reuniam dezenas de pedintes que igualmente queriam saciar a fome que lhes corroía por dentro.

Apesar disso ainda era necessário mais do que um prato de comida para ajudar a ele e aos demais que viviam de maneira desumana, jogados ao relento como ratos de esgotos, imundos e sem qualquer higiene.  Isso era devido ao abandono no qual se encontravam. O que de fato aqueles pobres diabos precisavam das autoridades era um plano de política que lhes permitisse ter abrigo, alimentação e assistência médica de boa qualidade. Que fosse garantida permanentemente, e não apenas de forma momentânea.

Sempre que saciava a fome saia em busca de colher novas esmolas. E passava o dia inteiro de um lado para outro de mãos estendidas a quem quer que fosse, suplicando ajuda. Seu local de descanso era a conhecida praça por nome República. Localizado próximo ao centro comercial, entre as avenidas Presidente Vargas e Assis de Vasconcelos. Cercada por vários arranhas céus e por uma vasta vegetação, sendo a maioria altas mangueiras.

Naquela época cheias de frutos maduros que serviam de alimento para pessoas como ele, esquecidas pela sociedade. Lá, dezenas de miseráveis passavam a maior parte do tempo juntos ou de maneira individual, consumindo bebidas alcoólicas, jogando conversa fora ou simplesmente em devaneios confusos de uma mente confusa, entorpecida pelo efeito do álcool. O domingo era propício para angariar muitas moedas.

Várias pessoas circulavam pelo local e se compadeciam. Era realmente triste situação na qual viviam os desgraçados e lhes ajudavam como podiam. A tarde fria de inverno impedia o sol de aparecer e o calor não ousava incomodar, porém o frio era persistente em fazê-lo tremer e querer a todo custo se aquecer. O que se tornava impossível para alguém em completo abandono. Que sequer possuía roupas novas e limpas para uso.

Sentado num canto qualquer observava o balançar das árvores em redor entre um gole e outro de bebida forte. Lembrando o início, como tudo começou. Luís Gustavo era o filho mais velho de uma família ribeirinha, oriunda do Marajó, uma das muitas ilhas às margens do rio amazonas. Sua infância como o sétimo filho de um pescador analfabeto que somente sabia lançar suas redes de pesca sobre a água para recolher cardumes de peixes e alimentar a família, foi miserável.

Era rotina do pai a pesca, enquanto os meninos colhiam açaí nas muitas palmeiras existentes pela ilha. Eles que, iguais a ele, cresceram iguais a bichos brabos e se adaptaram a vida selvagem. Nada sabiam a respeito de modernidade, era extrema a pobreza cultural em que viviam

. Bem verdade que não passava fome, mas o alimento era regado as mesmas coisas todos os dias, lá uma vez perdida viam algo além do costumeiro peixe com açaí, e galinha caipira sobre a mesa. Ao completar dez anos fugiu de casa, pegando carona num barco pesqueiro, chegando à capital, onde passou a viver toda sua adolescência.

Trabalhava no Ver-O-Peso, a maior e mais importante feira livre da América Latina, parada obrigatória das grandes embarcações e acesso fácil ao turismo paraense. Local onde destemido menino se empenhou bastante para sobreviver meio a todos os tipos de perigos. Inclusive malfeitores, drogados e traficantes. Naquele lugar teve a sorte de conhecer Naomi, uma rica empresária que costumava visitar o local uma vez por mês.

Andava toda imponente, sempre acompanhada por seu motorista particular e dois seguranças, para comprar frutas, legumes e peixes. Ela aprendeu a admirar aquele pequeno que lhe era sempre muito prestativo e atendia com diligência suas necessidades. Sentiu pena de vê-lo naquela triste situação, vivendo praticamente ao relento. Dormindo sobre as bancas vazias dos feirantes. Quando estes se recolhiam no final da tarde.

 Todas as vezes que ia ali lhe via vestido na mesma bermuda surrada pelo tempo e usando uma sandália do tipo havaianas, cujos calcanhares já estavam corroídos pelo muito uso e uma camiseta vermelha. Manchada e com algumas rasgaduras à vista. Com imensa compaixão ela propõe ao menino que vá morar em sua casa, o que ele aceita.

 Com a gratidão de quem a muito tempo esperava por tal oportunidade. Tinha estudado na escolinha da ilha, enquanto vivia no Marajó, aprendeu a ler e escrever. Mas apenas o básico, nada que o qualificava a iniciar os estudos na capital sem um exame seletivo. Mas tudo começou a dar certo. Com o apoio e os conhecimentos de Naomi ele foi engajado a qualquer custo na quinta série do primeiro grau.

 De onde poderia progredir nos estudos até chegar a faculdade, o que na verdade era seu maior sonho. No quarto que recebeu da mãe adotiva existiam todos os tipos de brinquedos, ela cuidou de sua aparência, lhe deu roupas e calçados novos e tudo o que um garoto da sua idade precisava para ser feliz.

 Como não teve filhos nos dois casamentos anteriores, era uma viúva muito rica e desejava encontrar um herdeiro. Ele deveria ficar com todos os seus bens, assumir suas propriedades e dar continuidade ao seu império, e viu nele essa possibilidade. O menino pobre, que nasceu às margens do rio amazonas e teve a audácia de fugir para um lugar distante e viveu por muito tempo meio à desconhecidos, finalmente teve diante de si a chance de seus sonhos.

De vencer na vida e se tornar um homem importante, a sorte sorria para ele e lhe abria os braços.  Surgia-lhe na forma de muitas oportunidades e com certeza saberia aproveitar. Bem, pelo menos era o que tinha em mente. Apesar de tantas formas de se divertir como faria qualquer adolescente ele passava a maior parte do tempo trancado no seu quarto. Estudando para as provas do colégio particular em que foi matriculado, era de fato muito dedicado.

 No final de cada ano o resultado era sempre positivo, sua aprovação era sempre garantida, para orgulho daquela que apostou tudo nele. Ao completar dezoito anos concluiu os estudos complementares e encarou direto o vestibular. Se inscreveu como candidato a uma vaga nas mais importantes faculdades de medicina, direito e engenharia da capital. Não quis fazer curso preparatório, sentia-se preparado para encarar os exames, e assim fez. Para sua surpresa e para o espanto dos demais ele foi aprovado em primeiro lugar em todas às instituições de ensino superior nas três áreas escolhidas.

E isso lhe subiu à cabeça de tal maneira que não foi capaz de suportar. Ao invés de festejar a imensa conquista ele trancar-se no quarto e de fora podiam-se ouvir seus gritos. Estava enlouquecido, exclamando a mesma frase que pronunciou logo que viu o resultado, frases eufóricas por sua aprovação. A loucura foi o prêmio de tamanha vitória. Mesmo com os muitos esforços para tentar remediar a triste situação nada pôde ser feito para mudar o desequilíbrio mental que ocorreu sobre o jovem que se esforçou tanto para aproveitar devidamente a oportunidade que o destino decidiu lhe dá.

Poderia ter alcançado o ponto mais alto da sorte que lhe estava reservada. Brilhar como uma estrela cadente, subir no pódio e levantar a taça como um vitorioso. Mas foi impedido de viver o maior momento de sua vida. Parecia que estava mesmo amaldiçoado a não ser nada de importante, destinado a ser um zé ninguém, um fracassado. Era o filho de um pescador ribeirinha que nasceu e cresceu lançando sua tarrafa nas águas do rio amazonas, conformado com sua pobreza.

Com a miséria rondando ao redor daquele velho barraco de madeiras apodrecidas e consumidas em parte pelo tempo. Em parte, pelos cupins e traças, sem se incomodar com sua inutilidade como ser humano. Ele era do tipo que em nada contribui para a evolução humana. Agora se tornou tão inútil como foi seu pai, completamente enlouquecido. Esteve internado nos mais renomados hospitais para tratamento de doentes mentais do Estado, sob a supervisão dos mais conceituados especialistas na área, porém, todos os esforços para curá-lo foram em vão.

    — Sentimos muito, mas nada poderá ser feito para pelo menos remediar tal situação. A membrana cerebral foi rompida e os neurônios estão impossibilitados de funcionar corretamente, causando paralisia em boa parte do cérebro. Infelizmente a condição do paciente é irreversível

   — Mas não existe mesmo nada que possa ser feito para tentar mudar esse terrível estado de saúde, de meu filho, doutor?

   — Lamento em lhe dizer que aqui em nosso país, não há nada que possa ser feito

 Naomi sentia por Luís um profundo amor, como se de fato fosse sua mãe biológica e não iria desistir dele assim, tão facilmente. Seguindo orientação da equipe médica partiu com ele para os Estados Unidos em busca de um milagre, mas nada conseguiu. Ao retornarem, ela ordenou a todos os empregados da mansão que guardassem total segredo do real estado de saúde do rapaz, e assim se fez.

 Luís, ainda no início da juventude teve um irreversível distúrbio que o levou a viver em completa escuridão. Preso a profunda confusão mental. Sua inteligência sucumbiu-se nas trevas que lhe cegaram todo o entendimento. Perdeu completamente a noção da realidade. Passou a viver num mundo irreal, parou no tempo. No momento em que leu seu nome no topo da lista de aprovados nos melhores e mais concorridos cursos, em importantes universidades da região.

Seus neurônios não suportaram a descarga elétrica da forte emoção que sentiu. E seu cérebro parecia ter alcançado sua carga máxima. Algo se rompeu dentro da sua cabeça passava todo o tempo vendo ou ouvindo vozes e vultos confusos. Falava sozinho e gesticulava como se realmente alguém era seu ouvinte.

 O amplo espaço coberto localizado no centro da praça havia sido construído a mais de um século atrás no propósito de embelezar aquele lugar, mas, décadas mais tarde acabou servindo apenas como refúgio para os descamisados que, como ele, não tinham um teto para descansar de seus labores diários, após mendigar o pão rua à fora. E era ali que residia, era sua casa, seu lar, pois vivia como um cão sarnento, repudiado por todos em redor.

Toda aquela situação era lastimável, mas ele, assim como todos os outros que viviam de forma semelhante, nem se dava conta do estado deplorável em que se encontrava. Permanecia deitado sobre papelões, fitando firmemente a natureza bem à sua frente e vendo em forma de imagens antigas lembranças que ninguém mais podiam perceber. Porque elas eram apenas suas, estavam gravadas em sua mente perturbada, para ele eram todas reais e continuou a vê-las, passando como um filme.

O quarto escuro do hospital psiquiátrico era seu local de descanso após sair do lugar de martírio. A sala estreita e cheia de equipamentos de tortura era temida pela maioria dos pacientes com graves distúrbios mentais, eles que, mesmo enlouquecidos eram sensíveis a dor. E sabiam claramente o quanto era terrível passar pelos choques elétricos que recebiam dos enfermeiros por ordenança dos médicos como forma de tratamento para o que eles chamavam de manifestações demoníacas.

Naomi, que antes de desistir dele o internou ali na esperança de curá-lo, quase enlouquece ao vê-lo naquela situação. Nem todo o dinheiro do mundo parecia poder curá-lo daquela m*****a doença. Naquele momento ela percebeu o quanto os bens materiais em certas ocasiões de nada servem e, naquele caso em particular, sentiu-se impotente por nenhum de seus recursos serem suficientes para salvar o filho da loucura.

Pois o amava imensamente, mesmo não sendo uma semente de suas entranhas.  Nos meses que se seguiram após o ocorrido ele apenas vegetava. Passava todo o tempo em que se encontrava acordado sentado num canto qualquer da casa ou no belíssimo jardim que completava a luxuosa decoração da mansão. Ficava localizada na avenida Braz de Aguiar, bairro nobre da cidade.

Sempre acompanhado por um enfermeiro exclusivamente para atendê-lo qualquer emergência, bem como para sua companhia exclusiva. O profissional revezava seu turno com outro diuturnamente. Todas as tentativas para manter o enfermo numa clínica especializada no tratamento de doenças mentais foram esgotadas sem êxitos.

Visto que o paciente não mostrava qualquer melhora e, na maioria dos casos, fugia do local sem que ninguém percebesse. Isso, o que levou Naomi decidir mantê-lo em rédeas curtas dentro de casa e acompanhado vinte e quatro horas por pessoas especializadas naquele tipo de serviço.

 Passaram-se vários anos desde àquela tragédia ocorrida na vida da socialite que sonhava em ter um herdeiro para deixar todos os seus bens. Vindos a partir de uma linhagem da elite paraense, pessoas de níveis sociais extremos, antigos homens e mulheres de poder econômico inigualáveis. Apostou naquele moribundo todas as suas esperanças, agora fracassadas.  Naomi Luana Guimarães Velasco, era herdeira de duas das mais importantes famílias paraenses.

 Nos tempos em que todo o poder econômico na Região Norte do Brasil girava em torno do ciclo da borracha. Seus antepassados foram proprietários de grandes somas de terras onde se cultivavam as seringueiras. Árvores de onde se extraem o látex, no formato de um leite bastante pastoso, e dele faziam-se as tão cobiçadas borrachas para com elas abastecer o crescente mercado brasileiro, bem como a outros mercados internacionais. tornando-se o maior exportador daquele produto, enriquecendo imensamente os conhecidos "senhores da borracha".

Título dado aos grandes donos de seringais. Sua riqueza era e prestígio era amplamente conhecido tanto na sociedade paraense como por todo o país, onde possuía diversas empresas. Através de das quais movimentava milhões de reais e multiplicava ainda mais seu patrimônio. Entretanto, apesar de todo esse poderio não pôde ser evitado que tamanha desgraça destruísse sua casa.

 Alcançando aquele que adotou como seu futuro sucessor, era uma mulher de muitas posses e aptidão para os negócios. Mas sem sorte no amor e em tudo aquilo que estivesse relacionado ao coração. Ainda na juventude viveu uma tempestuosa paixão que foi duramente rejeitada pela família.

E sofreu amargamente a dor da separação sob a ameaça de ser deserdada e perder, por conta disso, o direito de sucessão no vasto império de seus pais.  Após ser forçada a dor desistir do grande amor de sua vida ela dedicou-se completamente aos estudos e depois a administração dos bens herdados, fechando-se dentro de si mesma num mundo onde amar era proibido ou algo repugnante.

Seu segundo grande amor foi épico e aconteceu depois que conheceu aquele menino pobre. Um sobrevivente que mesmo vindo de origem humilde lutava para se manter longe de toda a perversidade existente nas ruas da cidade grande. Principalmente convivendo bem próximo de pessoas com má índole. Que iam de batedores de carteira aos mais cruéis criminosos.

 Viciados e traficantes que circulavam diariamente pela feira livre do Ver-O-Peso. O cartão postal de Belém do Pará. Ela o amou como um filho desde o primeiro encontro, admirando seu empenho em atender de forma espontânea e sempre com um largo sorriso aos clientes que geralmente se aglomeravam diante das bancas de frutas e verduras existente ali.

Ele ajudava os comerciantes a servir seus produtos aos interessados visitantes da feira em troca de alimento e uns trocados. Todos o admiravam por vê-lo batalhando diariamente para sobreviver honestamente e não cometendo graves delitos como ocorria frequentemente por outros menores infratores que por não quererem batalhar assaltavam e até agrediram fisicamente muitos dos que por ali passavam, mesmo com a frequente atuação da polícia essa prática era constante.

 Quando o chamou para ir até sua casa e lhe fez a proposta de aceitar ser seu filho, imensa foi a felicidade que sentiu ao ouvir um sim como resposta. Pensou consigo mesmo que finalmente teria garantido sua sucessão, visto que não havia se casado. Era a última Guimarães Velasco, depois dela a linhagem chegaria ao fim. Luís tornou-se, desde então, o tão sonhado herdeiro da tradicional família Velasco e seu legado seria dar continuidade ao importante nome daquela geração de grandes empresários.

E tudo teria saído como planejado se ele não viesse a sucumbir em profunda loucura, entretanto foi o que aconteceu e nada pôde ser feito ao contrário. Nem mesmo todos os recursos usados foram capazes de trazê-lo à sã consciência. Quem diria que aquele jovem que parecia saudável, dono de um porte físico invejável.

Assistido pelos melhores médicos nos mais caros planos de saúde viria a apresentar tamanha fraqueza mental. A tal ponto de não suportar a emoção de uma conquista inesperada como aquela. No decorrer do tempo em que diversos tratamentos foram feitos nada trouxe a resposta desejada.

O resultado necessário ao propósito de reverter o triste estado em que ele se encontrava, tantos recursos gastos sem qualquer melhora no seu estado clínico. Fizeram com que aos poucos a mãe adotiva perdesse a esperança.

 De poder voltar a vê-lo restaurado das faculdades mentais. Luís chegou a ser internado numa clínica especializada na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, onde Naomi possuía muitos contatos e era cliente a muitos anos.

Permanecendo por um longo período, retornando dali sem nenhuma melhora significativa. Esse fracasso diminuiu em grande escala a esperança de Naomi crê em um possível restabelecimento. Com isso decidiu desistir do enfermo e partir para uma nova tentativa de achar um herdeiro para dar continuidade ao legado recebido de seus pais.

 Afinal, apesar de seus mais de cinquenta anos de idade ainda era dona de una invejável saúde física e mental. Ainda teria tempo de sobra para tal propósito. Como medida para livrar-se do atual problema, internou em definitivo o pobre diabo no hospital público Juliano Moreira, referência em tratamento psiquiátrico. Porém de forma violenta, à base de choques elétricos e pressões psicológicas estarrecedoras.

 A insensível decisão da empresária se deu pelo fato dela não querer ser alvo de críticas por parte daqueles que a criticaram. Comentavam sobre o tipo de criança adotada, eles a renegaram. Não achavam ser a ideal para servir como herdeiro de toda sua imensa fortuna.

Na opinião do restante da sociedade, o ideal seria ter dado essa oportunidade a uma das muitas crianças órfãs nos vários orfanatos espalhados pela cidade e não a um moleque encontrado pelas ruas. Ela o educou corretamente, preparando-o para que não deixasse nada a desejar na hora de assumir os negócios.

Seu maior objetivo era provar aos críticos que sua escolha teria sido a mais acertada e que todos estavam errados. Ver a loucura repentina do protegido estragar todos os seus planos foi terrível. Além disso, o risco da desmoralização diante dos que aguardavam ansiosos para rir de seu eminente fracasso.

 Tudo isso fez com que seu orgulho e o dever de defender o bom nome dos Velasco falassem mais alto. Levando-a tomar medidas drásticas para contornar a situação, então escolheu tirá-lo de cena, inventando uma enorme mentira para seu desaparecimento e o trancafiou num hospício. Sem a proteção da rica empresária e entregue aos cuidados de estranhos que pouco se importavam com seu bem.

 Luís passou a ser tratado de forma violenta como eram todos os outros lunáticos. Entretanto, naquele mesmo ano de eleições estaduais um novo governo foi instalado e muitas mudanças foram feitas em vários setores da administração pública. E na área da saúde não foi diferente.

 A primeira medida a ser tomada pelo novo governante no intuito de garantir a economia foi autorizar o fechamento do hospital onde eram mantidos em cárcere privado dezenas de doentes mentais. Demitindo um vasto número de funcionários públicos. Lançando nas ruas os desorientados que, por não possuírem familiares com condições financeiras ou psicológicas para lidar com tais indivíduos.

Permaneceram vagando sem direção pelas ruas e avenidas da cidade. Tornou-se comum vê-los espalhados por todos os lados. Nas calçadas e sarjetas, becos e esquinas, como cães abandonados e sem ter quem se preocupasse com o maldito destino que lhes aguardava a cada nova manhã.

Com as mudanças ocorridas, também, no sistema penitenciário estadual, de onde foram libertos um número incontável de detentos. Aumentou consideravelmente a violência na cidade. E com isso o hábito rotineiro dos belenenses mudou radicalmente. Assim, pessoas como Naomi que pertenciam a elite da sociedade deixaram de se expor. Mantinham-se afastadas de locais considerados perigosos, e isso incluía a antiga feira livre do Ver-O-Peso.

Onde Luís passou parte de sua adolescência e a sorte lhe sorriu, levando-o a ser ricamente agraciado com a oportunidade de ser adotado e alcançado uma enorme conquista, a mesma que por não suportar derreteu-lhe o cérebro. Portanto, tornou-se impossível os dois se encontrarem. Visto que ela circulava pela cidade dentro de seus carrões de luxo, enquanto ele perambulava como um pobre diabo, com seu saco imundo sobre os ombros, cheios dos lixos coletados por onde passava. 

 Em lugar das antigas roupas de linho vestia trapos imundos e rotos. O odor era insuportável para as narinas dos que dele se aproximavam, ao invés dos caros perfumes restou-lhe simplesmente a podridão dos molambos humedecidos no suor de seu corpo sem nenhuma higiene.

Na sua imunda aparência se podia ver claramente a verdadeira face da miséria. Bem como toda a pobreza que o seguia de perto, nada restou da beleza que possuía enquanto jovem e vivia na a riqueza. Com as regalias que a sorte escolheu lhe agraciar. Até que por azar ou pela ironia do destino lhe foi tirado o direito de continuar usufruindo de tamanha mordomia. A loucura que veio de repente sobre aquele infeliz chegou no exato momento em que ele pretendia dar a sua protetora uma razão para se sentir satisfeita, feliz em tê-lo adotado.

Aquele seria seu dia de glória, do qual jamais esqueceria. Mas, ao contrário de suas expectativas, acabou esquecendo-se de tudo. De quem realmente era e do que fez no decorrer de toda sua existência até o instante em que perdeu a razão. Jogado fora por Naomi e em seguida pelos governantes que não tinham a menor pretensão de continuar gastando dinheiro público com pessoas desequilibradas como ele, vivia ao relento.

 Era mais um moribundo ocupando espaço no vasto largo da praça. Onde diversas extraiam vezes trafegou ao lado daquela que o acolheu, quando ainda era uma criança cheia de tantos sonhos e esperança. Já era o final da tarde, a chuva forte passou e restou apenas os pingos de água que saltavam do alto sobre a grama verde bem à sua frente.

Caindo por cima das árvores e deslizando por suas folhas, acompanhados por um vento frio que ousadamente o incomodava, mesmo estando ele deitado. Naquela ocasião, no piso imundo de um dos tantos outros coretos centenários existentes naquele lugar. A praça da república era muito antiga e datava do início do século vinte.

Eram muitos os monumentos que ficavam espalhados por toda sua extensão eram belíssimos. Datavam de tempos da visitação portuguesa na região. Sua história trazia a marca de vários combates e pelejas. Todas contra os que tentaram em vão conquistar aquelas terras. Antes de ser tomado definitivamente pela loucura que pôs fim a todos os seus sonhos, o pobre diabo que agora andava mendigando pelas vias da bela cidade das mangueiras havia sido um excelente estudioso. E conhecia como ninguém as origens de sua gente.

Amava o Pará, sua terra natal, a exuberância de sua vasta vegetação. Rios e comidas típicas que nada podia se comparar. O povo paraense pode ser visto como verdadeiros guerreiros. Superadores de inúmeras adversidades, conseguindo sobreviver a incontáveis listas e chegar até os tempos atuais com êxito.

Por se apaixonado pelas suas raízes já tinha preparado uma obra a ser publicada logo após sua formatura nas três faculdades que pretendia cursar, desejava adquirir os títulos acadêmicos e exercer as profissões, mas teria como hobby a literatura, onde escreveria seus romances e contos, enaltecendo onde nasceu.

 Mais um objetivo ido por água abaixo, pois jamais alcançaria a realização deste intento. Sua brilhosa mente seria consumida pelo desvario e se perderia no vasto obscuro de vazios pensamentos. Seus neurônios ficaram desconexos ao ponto de não mais algo tão sublime.

Deitado em pleno desconforto sobre papelões imundos, com o olhar pregado no infinito que podia contemplar, revivida turvas imagens quase que totalmente indefinidas, perdidas entre a realidade e as trevas da loucura que pairava sobre sua mente confusa.

Bastante entorpecida pelo álcool, com ideias distorcidas, vindas de um passado bem distante. As recordações vinham e iam de repente. Se perdiam nas sombras de uma mentalidade obscura, presa ao irreal. A um mundo de fantasias e detalhes que sua imaginação perturbada criava e impedia que ele percebesse a terrível situação na qual se encontrava.

 Era um monturo ambulante, o pouco que restou do muito que foi um dia, certamente não suportaria encarar pelo menos um pouco do real que lhe cercava de maneira imperceptível. A barba e os cabelos grisalhos endurecidos pela grande quantidade de sujeira acumulada, devido os poucos banhos tomados.

Era raro uma boa higiene durante suas penitencias no decorrer dos dias vividos sob o descaso. Desde que as portas do hospital psiquiátrico se fecharam. A tarde finalmente se despede e em seu lugar surge a noite com seus mistérios. E como uma alma penada ele se movia de um lado para o outro, sem lugar certo, debaixo do sereno que restou depois do aguaceiro que caiu horas atrás.

Alagando as partes baixas dos bairros pobres e criando poças de lama pelas ruas desertas de pessoas com boa índole. As trevas noturnas facilitavam a ação dos bandidos e ocorriam muitos assaltos por ali. As vítimas eram quase sempre pessoas despercebidas do perigo de circular em horário impróprio numa praça cheia de desocupados. À procura de arranjar alguns trocados para sustentar o maldito vício do qual eram escravos.

De adolescentes a adultos, todos eram dependentes das drogas. A ação da polícia se tornou insuficiente para sequer intimidá-los. Quanto menos reprimir em definitivo a criminalidade que só aumentava, mais e mais. Tudo via e nada pensava fazer para defender quem quer que fosse, mesmo sob os efeitos da loucura que lhe impedia de raciocinar corretamente entendia que para poder viver nas ruas sem ser importunando pelos criminosos era preciso se adaptar à lei do silêncio. Se passar por cego, mudo e surdo.

A noite se vai e uma nova manhã dá início na mesma rotina de sempre. Seu caminhar lento. Carregando o velho saco de estopa sobre o ombro parecia trazer sobre si toda o peso do mundo. O calçadão da extensa praça estava repleto de folhas secas e de frutos. Todos bem maduros, que caiam das árvores com o forte soprar dos ventos ocorridos durante a madrugada. Com as mangas maduras podia se alimentar, era o seu café da manhã providenciado por Deus, gratuito e suculento.

Os artesãos já haviam chegado no local e preparavam suas bancas para vender seus trabalhos artesanais, eram colares, pulseiras, anéis, vasos de argila e muitas outras bugigangas que eles criavam E vendiam aos transeuntes que passavam principalmente aos finais de semana e nos feriados. Períodos em que muitos eventos aconteciam naquele lugar para a distração da população, geralmente ociosa por novidades.

 Um amplo palco estava sendo construído para logo mais receber cantores e artistas da terra que se apresentariam e fariam seus shows gratuitos como forma de entretenimento ao público, tudo gratuito. Enquanto nada daquilo começava e depois de saciar sua fome matinal retirou-se dali e seguiu em direção às ruas do comércio no intento de pedir esmolas à multidão que por lá circularia mais tarde. Fazendo suas costumeiras compras de final de semana. Pouco tempo depois já estava dividindo espaço com dezenas de outros pedintes.

Esgotando algumas moedas na movimentada rua João Alfredo, na esquina da Santo Antônio, onde se aglomeravam os camelôs e visitantes entre as barracas e lojas sempre lotadas. Repletas de consumidores por causa das promoções e preços baixos que possuíam.

Sua preferência era se acomodar num mesmo lugar e colocar no chão, bem à sua frente, uma vasilha para que quem passasse se compadecessem e lançassem nela alguns trocados, pois acreditava que deveria não importunar E funcionava muito bem. Ao meio dia, as vezes debaixo de calor quase insuportável, em outras ocasiões sob ameaças de chuvas.

 Geralmente desistia de esmolar e voltava para seu antigo local de refúgio, a praça da república. E naquele sábado não foi diferente, voltou no mesmo horário e bastante apressado. Pois ainda queria mendigar por entre os participantes que estariam por lá. Assistindo os cantores, fazendo suas apresentações.   Dezenas de pessoas observavam e aplaudiam o show, enquanto ele e vários outros pediam uma qualquer forma de ajuda.

Tudo era válido, até mesmo o menor valor da moeda ofertada era aceitável, nada era rejeitado. Porém, entre a multidão de expectadores estavam os larápios cobertos de más intenções, na intenção de roubar os pertences dos desapercebidos. E, costumeiramente, o saldo final era sempre bem pomposo. As cinco da tarde, debaixo de forte chuva, os curiosos se dispersaram.

 Findou a festividade e restava no meio da praça apenas seus monumentos. As árvores que dançavam no embalar dos ventos, a grama verde e em parte pisoteada. Os palcos de madeira armados horas antes para que os artistas se apresentassem ao público e muitos outros miseráveis. Que como ele procuravam se abrigar debaixo dos vários coretos espalhados pelo lugar. A região chuvosa, mesmo no verão possuía um horário definido para as chuvas caírem. A população já se mantém em alerta quanto a isso.

As três horas da tarde, todos os dias, isso acontece. Ocorre em qualquer estação do ano. Por essa razão é uma terra fértil e produtiva. Recostado na grade que circula o local onde se abrigava da forte tempestade que caia nas últimas horas do dia. Contemplava o vazio por onde escorriam as muitas águas. 

E num confuso refletir tentava entender algo mais sobre o que estava diante de seus olhos. Sem, no entanto, ser capaz de definir ao certo o que era concreto ou abstrato. Aquela mente brilhante encontrava-se acorrentada dentro de um cérebro quase morto, não encontrava mais forças para descrever o terrível mal que lhe aconteceu.

Como um ser irracional e pouco dotado de inteligência, olhava tantas coisas e parecia nada ver ou entender, ficava perplexo com aquilo que somente sua obscura imaginação lhe permitia enxergar.  A visão desgastada pelo declínio da idade e por causa da saúde abalada pelos maus tratos, as vezes lhe faltava. Era comum tropeçar e cair durante as longas caminhadas que de costume fazia em busca de sobrevivência, os joelhos ralados eram a prova cabal da extensa peregrinação feita para se manter vivo, apesar disso pouco lhe fazer sentido.

 Menos ainda para o mundo que o rodeia. Pois não passava de um vira lata. Em suas andanças naquele mormaço de domingo nem ousava parar em frente aos edifícios e arranhas céus localizados em derredor da ampla praça. Pois possuíam uma guarnição cerrada e os vigilantes impediam qualquer pedinte de se aproximar dos luxuosos condomínios no intento de incomodar os moradores com suas misérias.

Certa ocasião sofreu agressão de um deles e só não apanhou até a morte porque populares intervieram e lhe salvaram a pele. Portanto, desde então esforçava-se para ficar bem distante daquele lugar. A avenida que passava bem ao lado da praça, e levava o mesmo nome que ela, encerrava seu longo trajeto às margens do rio Guajará.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo