Capítulo 3 - Recordações

 Se sua mente estava travada ao ponto de não assimilara realidade, pelo menos seu subconsciente ainda podia trazer através de sonhos flash de recordações arquivadas, e assim ele pôde voltar no tempo de sua infância, quando ao lado de Bernardo e Lucinda tomavam banho às margens do largo rio Guajará, que ficava no baixo amazonas, com suas águas barrentas e fortes correntezas capazes de levar até o homem adulto e mais resistente, bem como os melhores nadadores para o fundo. Causando o naufrágio de grandiosas embarcações.

 Porém, com a coragem aventureira de criança e os irmãos não tinham medo de se divertir. Mergulhando nas ondas que iam e vinham sobre a areia da praia deserta. Na ilha existiam muitas plantas com frutos comestíveis, e eles saborearam de tudo o que encontravam pela frente.

Mangas de várias espécies, jacas, jambo, caju e goiabas. Açaí de primeira qualidade, bananas diversas, era um verdadeiro paraíso. Mas um dia, depois de crescer e descobrir que o mundo ia além das margens do rio e da beleza de suas ondas. Que além do infinito das águas havia muitas outras coisas a serem descobertas e conquistadas. Por isso decidiu deixar a família e toda aquela beleza natural para trás e fugir em direção ao desconhecido.

Pegou carona no primeiro navio de pesca que ancorou alguns dias na ilha, embarcando escondido no porão ele conseguiu chegar na capital e sobreviver meio aos estranhos sem arrepender-se da decisão tomada. Mas, qual o resultado por ter trocado a humilde vida como ribeirinho pela aventura de sair mundo afora em busca de aventuras?

 Conheceu uma senhora milionária e pelo menos por algum tempo usufruiu de tudo o que ela lhe oferecia. Sem sentir falta ou saudades do que deixou no seu passado, mas enfim veio a repreensão divina que o lançou no fundo daquele poço miserável, o sonho fundou quando as trevas noturnas começavam a se dissipar, em poucas horas a madrugada diria adeus e o sol entraria em cena com todo o seu brilho.

 Com seus raios, aquecendo a frieza que trouxe conforto, após o calor que teve de suportar na tarde anterior, durante longas caminhadas. A não ser que novamente as nuvens negras de água impedissem sua claridade. Se voltasse a chover forte. Como era habitual naquela época do ano. No mês de carnaval já se via pessoas festejando antecipadamente com fantasias e bebedeiras, aqueles que eram abastados e não se importavam de jogar dinheiro fora.

 Se divertiam pelos pequenos botecos localizados em lugares estratégicos dos arredores. O tradicional bar da praça, que algum tempo atrás serviu como ponto de encontro para os intelectuais paraenses, onde ficou comum o bate papo dos nomes mais importantes da música, literatura e artes em geral. Bem como as mais conceituadas pessoas públicas da época. Mas as coisas mudaram e restou apenas um espaço vazio de importância, repleta de bêbados e baderneiros.

Ficava perambulando de um lado a outro do lugar, confuso, perturbado, totalmente desorientado. Enquanto a maioria das pessoas normais se divertiam, ele e outros de sua laia desfilavam aleatoriamente como almas penadas, à procura de quem pudesse lhes dar algo para comer. Um casal se aproximou da banca de dona Rita, ela vendia comidas típicas e eles saborearam uma deliciosa maniçoba, o pobre diabo, morrendo de fome, apenas olhava.

Talvez a mente medíocre dele não fosse mais capaz de raciocinar corretamente, mas ainda sabia identificar o aroma e o sabor dos alimentos. Desde criança adorava aquele prato e não o esqueceria com facilidade. Dona Maria, sua mãe, era especialista em prepará-lo e ele se deliciava à vontade, até fartar.

Principalmente durante as festividades de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a padroeira, quando dezenas de fiéis compareceram no círio que ocorria todo ano.  A peregrinação começava na capela, no centro do vilarejo, em seguida prosseguia até rodear todo o percurso em redor da ilha e o aglomerado de romeiros era imenso.

Adorava acompanhar a multidão, ouvindo suas orações e súplicas a uma santa morta, sabia que aquela estátua não podia ouvi-los. Mas eles acreditavam piamente nisso e não adiantava tentar mudar a tradição.  Naomi, sua mãe adotiva, era néscia de berço. Seus pais assim como todos os seus antepassados eram, além de extremos materialistas, ateus incorrigíveis. Mas, mesmo vindo de uma família católica sua fé era outra.

Acreditava na existência de um Deus que ninguém poderia ver, apenas sentir. Vivo e poderoso que não necessitava de que alguém o carregasse sobre os ombros num trambolho qualquer. Que não fosse feito de barro, madeira ou gesso, mas um espírito presente em todos os lugares. Bem, esse era seu pensamento anterior ao acontecido, antes da perturbação mental o alcançar. Agora isso não importava mais, não fazia mais sentido algum.

Eram apenas sombras que mais pareciam névoas dissipada em forma de pensamentos nulos e irreais. Se aproximou do casal e ao longe enchia a boca de saliva. Imaginando como estaria saborosa aquela maniçoba com bastante pimenta malagueta. Toucinho defumado, pés e orelhas de porco, além das vísceras e todo o tempero que tradicionalmente se usava no preparo daquele delicioso prato regional.

A jovem percebeu o esfomeado lambendo os beiços de fome e decidiu comprar um prato para dar a ele, que recebeu e depois que derramou sobre o mesmo quase meio quilo de farinha comia-o desesperadamente, como se estivesse dias sem se alimentar.  A generosa moça se compadecia de vê-lo naquele estado, deixou pago mais duas refeições para o mendigo, garantindo-lhe o jantar e o almoço do dia seguinte.

Nem sempre surgiam pelo caminho pessoas misericordiosas decididas a estender as mãos para ajudar quem perecia às margens da sociedade.  Porém, a sorte de vez em quando lhe sorria e aprontava suas peças, ajudando ou lançando-o no abismo.

O destino é o autor da história de cada ser humano, toda sua trajetória do início ao fim, juntamente com suas vitórias ou fracassos. Suas alegrias ou tristezas, risos ou lágrimas, tudo é planejado e calculado por ele. E se algo de bom ou ruim acontece vem dele, de seus intentos contra ou a favor de cada um.  Coube ao autor de sua história escrever um começo inútil, um meio espetacular e ao mesmo tempo terrível.

Com um final talvez medíocre e da pior forma possível ou, quem sabe, surpreendente, o idoso de cabelos e barba grisalhos jantou e ficou sentado em mais um final de tarde. Observando o dançar das árvores no meio da praça onde vivia. Um vento frio soprava verticalmente de leste a oeste do lugar. Algumas pessoas passeavam.

Umas acompanhadas de seus parceiros, casais apaixonados, trocando carícias, enquanto outras optaram em desfilar sozinhas ou segurando firmemente a coleira de seus bichinhos de estimação. O rabugento observador a tudo via em silêncio, inerte como as estátuas e os monumentos encontrados ali e poucas vezes percebido pelos presentes, apesar de permanecerem diante de seus olhos.

 Os Oitis são frutas com um formato comprido, inicialmente de cor verde e acinzentada, quando maduras, meio amarelada e de sabor adocicado. Haviam dezenas de árvores desse mesmo fruto plantadas no meio da praça e no outono podia-se colher um número volumoso de frutos que caíam sobre a grama. Serviam de alimento para esquilos e para os que tentavam sobreviver a qualquer custo, seu olhar estava firmado em tudo o que se movia ao redor.

 Os namorados de mãos dadas, outros abraçados e trocando carícias num lugarzinho qualquer. Haviam aqueles que por opção ou necessidade preferiam andar sozinhos de um lado para o outro, uns caminhando e os que corriam feito loucos, em busca de realizar tantos sonhos. Tinham, também, circulando pela praça as babás de cachorros que eram assalariadas pelos ricaços só para desfilar por horas com seus caríssimos animais de estimação. 

Os bichos eram diferentes dos demais que se via pelas ruas da metrópole. Gordinhos, de tão limpos os pelos brilhavam, sem nenhuma mancha ou sujeira porque eram bem tratados. Seus donos gastavam muito dinheiro levando-os ao veterinário, ao salão de beleza para fazerem um tratamento especial como se fossem gente de verdade.

Alguns mais ousados até vestiam roupas e colocavam sapatos nos animais como se eles precisassem de tais coisas.  Tudo para esnobar os mais pobres e mostrar o poder que possuíam, pois enquanto jogavam tanto dinheiro pela janela com coisas supérfluas, lá fora eles morriam de fome e frio e falta de cuidados.

Muitos infelizes como ele que nada tinham, nem mesmo quem se importassem com seu estado miserável, chegaram a morrer pelas calçadas. O brasileiro é assim em sua grande maioria, egoísta por natureza. Também, basta olhar suas raízes e verá que faz sentido suas atitudes. Vindos de três raças completamente opostas entre si e com ideais diferentes, onde uma dominava com rigor e menosprezo as duas outras mais fracas. E estas, tinham o medo, a covardia e ingenuidade como características, o resultado final dessa fusão não poderia ser pior.

 Igualmente como nos tempos coloniais dessa terra, ainda se podia ver os mais abastados em fortuna e poder mostrando aos menos favorecidos seus chicotes ameaçando-os à escravidão. Luís Gustavo permanecia ali, no mesmo lugar. Sentado na grama verde da praça por nome república, fitando o que passava à sua frente quase sem pestanejar.

Não era capaz de raciocinar com clareza, compreendia bem pouco o que via e decifrava com dificuldade cada imagem processada por seu cérebro danificado pela loucura. Os pássaros voavam de uma árvore a outra, com seus cânticos diversos e sonoros, como se fossem uma linda sinfonia. Seus ouvidos ouviam claramente a canção.  Porém, pouco assimilavam claramente as perfeitas notas musicais nelas contidas. As crianças corriam numa incansável brincadeira.

 Pareciam serem elétricas ou movidas a pilhas que nunca acabavam. Elas eram lindas, bem cuidadas e alimentadas com o que havia de melhor. Vestiam roupas e calçados de grifes famosas, até a cor da pele parecia de outro mundo, não importava se brancos ou negros, tinham um aspecto especial. Não se comparava aos meninos ribeirinhos criados na beira dos rios amazonenses ou nas favelas, comendo açaí com peixe frito ou arroz com charque e feijão acavalado. Do tipo que demora uma eternidade para cozinhar.

Logo atrás de si ficava uma alta estátua feita de cimento e gesso, tinha a forma de um aglomerado de pessoas com espadas lanças e armas de fogo em punho. Era um monumento erigido aos desbravadores que chegaram ao Pará e colonizaram a terra. A história daquela gente e suas origens eram impressionantes.

 O ousado orgulho deles já era enorme naquela época ao saber que a existência de vida nessa parte do Brasil é datada bem antes da chegada dos portugueses, como provaram alguns achados arqueológicos. Os arqueólogos dividiram os antigos habitantes da pré-história brasileira em três grupos, de acordo com o modo de vida e ferramentas. Assim, haveriam os povos: caçadores-coletores, do litoral e os agricultores.

Estes grupos, posteriormente denominados pelos colonizadores europeus como índios. Foram encontrados registros arqueológicos comprovando a presença humana no arquipélago do Marajó e na região de Santarém desde 3000 a.C. No Marajó, os povos agricultores habitavam em cabanas ou casas subterrâneas.

Desde 3.500 anos atrás.  Estes povos conheciam a cerâmica, os corantes, compostos medicinais naturais, praticavam a coivara (queimadas para limpar a terra) e plantavam mandioca. A mais conhecida cultura deste grupo eram a cerâmica marajoara, que possuía decoração e tamanho peculiares. O período de 500 a 1300 foi o auge da cultura marajoara. Nos tempos do colegial Luís era crânio nesse particular, sabia tudo sobre a história do seu Estado e de toda a região.

 Outros alunos pagavam para ter aulas particulares com o jovem que dominava bem a matéria. Pensou, muitas vezes em se tornar um historiador, mas, devido a imponência do meio social onde vivia ao lado da mãe adotiva decidiu opinar por algo mais interessante.  Entretanto, naquele momento nada daquilo fazia qualquer sentido. Quantas vezes ele passou em frente ao mesmo monumento e fez comentários espetaculares sobre sua importância.

 Mostrando quão grande eram seus conhecimentos sobre o assunto, e naquele instante nada poderia dizer por estar com a mente apagada, vazia, numa inutilidade sem fim. Será que depois de vinte anos naquela triste situação, seria resgatado algum dia? Seria visto na sarjeta por algum dos antigos amigos com quem dividiu tantos conhecimentos em outros tempos? Teriam eles em algum momento transitado pela praça e contemplado sua miséria.

 Sem, no entanto, ter coragem de se aproximar e pelo menos zombar de sua decadente situação? Era impossível saber ao certo, mas isso pouco importava, pois se isso aconteceu ele sequer percebeu. Durante horas este no mesmo lugar, de olhos presos na paisagem e em tudo o que se movia.

No entanto sem qualquer grande definição. Nos seus lábios podia ser percebido um falso riso parcialmente encoberto pela volumosa barba, parecia estar feliz, satisfeito com algo, mas não passava de efeitos alucinante da doideira que lhe roía o cérebro, decidiu levantar-se um pouco e seguir noutra direção. Sentia fome e lembrou-se da maniçoba que a moça lhe deixou paga na banca que ficava situada em frente ao teatro da paz.

 Um lindo casarão pintado de cor róseo, localizado bem no centro da praça. Chegando ali, a senhora lembrou-se dele e o serviu.  Suas mãos tremiam bastante e quase não conseguia firmar bem a colher no alimento, levou um tempo considerável para se alimentar. Um copo de suco acompanhou o almoço que foi no capricho. Após agradecer a gentileza retirou-se de volta ao coreto onde dormia. Ali passava toda a noite na companhia de vários outros sem teto, depois de afastar a sujeira e colocar o saco de estopa no piso revestido por lajotas brancas.

 Usando-o como travesseiro, deitou-se para descansar um pouco. Tomou um gole da cachaça que trazia sempre à mão e cochichou. Os visitantes que entravam no recinto assustavam-se com a presenças do mendigo e de imediato se retiraram dali diferente do que acontecia antes de sua completa decadência. Quando ainda possuía o título de herdeiro da senhora da borracha, frequentava somente ambientes finos e requintados.

 Suas amizades eram selecionadas a dedo e pertenciam ao ponto mais alto da sociedade. E várias eram as moças de boas famílias que desejavam ter pelo menos um pouco de sua valiosa atenção. Aconteciam com frequência disputas entre as candidatas a namoro e a filha do então prefeito de Belém. Ela que fazia parte de seu seleto grupo de amigos e com quem andou se pegando algumas vezes.

 Desejava ser sua esposa, o que ele de maneira alguma fazia questão.  Agora, depois que a ter deu um giro de trezentos e sessenta graus, vejam só o que aconteceu. Se tornou um ser repugnante para todos quanto o viam naquele estado deplorável. Será que se Juliana, a antiga pretendente, o reconheceria caso o visse? Certamente que não, perdeu a jovialidade que a conquistou e só restou o lado mais horrendo e macabro. Estava dormindo profundamente, roncava como um porco e fedia como um gambá.  Ninguém suportava permanecer ao seu lado.

 Isso devido o mau odor que saía de seu corpo fétido, a não ser aqueles semelhantes a ele. Acordou após algumas horas de sono e já era metade da tarde daquele dia. Como sempre ventava forte, anunciando a chegada da chuva que costumeiramente caia no mesmo horário. O sol sumiu do céu e em seu lugar as nuvens carregadas de água escureciam toda a cidade.

Com o balançar de seus galhos as árvores deixavam cair frutos maduros e diversas pessoas aproveitavam para juntá-las. Muitos outros mortos de fome estavam entre os colhedores, do coreto ele apenas admirava tudo em silêncio. Não era dado a fazer comentários verbais, quase nem falava, apenas o necessário e quando preciso fosse. As frequentes trovoadas e o relampejar acompanharam o início da enxurrada que caia incessantemente, molhando todos os lugares e criando as pequenas poças de lama.

A praça que permanecia lotada de visitantes desde cedo, logo esvaziou-se por completo.  Nem sinal de uma viva alma se podia ver. Somente próximo do anoitecer suspendeu as trovoadas e dissiparam-se as nuvens carregadas, cessou o temporal e restou o costumeiro frio, aquele clima intenso que fazia bater os dentes dos descamisados durante as madrugadas.

Luís Gustavo fazia parte desse número de desalentados, sem teto e sem conforto algum, do lugar onde se encontrava ergueu os olhos e observou os edifícios, prédios em derredor. Sabia que lá viviam os milionários alheios ao temporal cessado minutos atrás, pois viviam trancados dentro de seus luxuosos apartamentos, cercados de tanto luxo que lhes impedia de perceber o que acontecia no exterior de suas fortificadas habitações.

Ao deitarem em suas camas cobriam-se com seus edredons caríssimos, finas cobertas e aqueciam-se até satisfazer seus intentos. Quanto antagonismo, enquanto uns comem e bebem a contento, outros sentem o estômago roer por dentro. Uns possuem demais, outros de menos e ainda restam os que nada tem. Isso é justiça? Deus é mesmo justo com suas criaturas?

O infeliz que morava na praça, como todas as outras pessoas, um dia foi cristão praticante e acreditou piamente na justiça divina. Aliás, costumava pensar que sua boa vida era fruto das recompensas por seus esforços. Pela fé que possuía em um ser superior, e creu nisso até caiu em desgraça. Sua fé, entretanto, não se baseava em idolatria costumeiras. 

Seus pais e todo o restante da família. Bem como os habitantes da ilha onde nasceu eram católicos fervorosos e seguiam à risca suas tradições, ele. Entretanto, adorava as longas procissões nas festividades da santa, mas era só assanhamento de menino peralta, no final das contas não depositava nela nenhuma confiança. Mesmo no pensamento de criança, nascida no mato, feito índio.

Era possível analisar que algo sem vida está morto e os mortos não podem fazer nada.  Portanto, estátuas não poderiam ouvi-lo nem atender suas orações. Ele via Deus na natureza. Ficava horas sentado próximo a cachoeira num igarapé perto de casa, vendo as águas escorrerem na direção do rio. A vegetação alta e rasteira, o verde encantador, ouvindo o assoviar dos pássaros, o rouxinol, a pieira, o tucano com seu bico enorme.

A garça que pescava pequenos peixes às margens do riacho, macacos pregos pulando de um galho para outro. A preguiça que gastava um tempo imenso para conseguir alcançar o topo da árvore, tudo era tão lindo e encantador, no seu modo infantil de pensar aquilo sim era Deus. O criador de todas as coisas.  Mas pior para ele se expressasse esse raciocínio a quem quer que fosse, seria criticado e podia levar uma surra daquelas, na visão deles estaria blasfemando. Desonrando que havia de mais sagrado.

Dona Jurema era católica apostólica romana e não admitia heresias.  Se alguém falasse mal da sua santinha descia do salto e gritava "olhem o respeito!". Uma verdadeira defensora da fé em nossa senhora de Nazaré. Ao vir para a capital e viver por alguns anos no Ver-o-Peso, durante a romaria costumava acompanhar o círio fluvial somente para poder andar de graça nos barcos, e comer de graça as iguarias que eram distribuídas.

 Mais tarde, quando a procissão seguia a pés pelas ruas da cidade. Ele se misturava meio à multidão.  Fazia muitas misturas como forma de entretenimento, até puxava a tal corda de pagamento das promessas, mas era pura diversão. Ao ir morar com Naomi deixou as peraltices e foi educado a portar-se decentemente.

Como de fato exigia a sociedade da qual iria fazer parte. Aprendeu corretamente como ter bons modos, agir elegantemente   com a devida classe que sua nova condição exigia. Dalí diante foi obrigado a comparecer todos os domingos à missa e realizar todas as rezas que o padre ordenasse.  Foi crismado e fez todas as comunhões do santíssimo Sacramento.

Tornou-se um completo cristão aos olhos da igreja e de sua mãe, mas de que adiantou tanta crença missão ou naquilo se no final nem a santa feita de gesso, nem Deus, o ajudaram? Se não foram capazes de impedir tamanha infelicidade? Bem, do que adiantaria ficar indagando se havia ou não justiça nas decisões divinas se para pobres diabos como ele e seus companheiros de infortúnios tudo se resumia em um inferno sem fim?  A verdade é que seu mundo desmoronou, foi reduzido a cinzas e não era mais que um vulto.

Uma sombra perdida entre outras sombras de tantas vidas sem qualquer valor, estas verdades se mantinham além de sua demente imaginação, apenas o próprio destino que o condenou a viver vegetando permanecia narrando sua triste história. Enquanto se divertia com seu intenso fracasso. O silêncio foi interrompido com o ruído estridente de um acidente.

Foi algo gravíssimo que acabara de acontecer na avenida próximo dali. Um pedinte atravessou despercebido o semáforo e foi pego de surpresa no meio da pista. Estatelando-se no asfalto a cerca de cem metros do local da batida. Vários curiosos foram ver o corpo desfigurado que permaneceu estirado ali por um longo tempo.

 Até que os papas defuntos resolveram aparecer. Não passava de um indigente, sem nome ou quem reclamasse seu corpo imundo.  Olhou o estado deplorável de Geraldo, todo estraçalhado sobre a pista e lagoa de sangue que dele escorria. A maneira desprezível como foi tratado pelos que deveriam demonstrar um pouco de solidariedade pelo menos na hora da morte, mas sem dinheiro no bolso e um nome no alto da lista social seria tratado com desprezo.

 Pior que um saco de lixo igual ao que carregava sobre os ombros. Apesar da mente obscura foi possível entender de imediato que teria o mesmo fim. Afinal, o que tinha de diferente dos outros fracassados que moravam na praça? Geraldo era um bom homem, progrediu durante a juventude como corretor de imóveis, tornou-se o proprietário da maior empresa deste ramo antes dos trinta e cinco anos de idade e sua fama ultrapassou os limites de suas expectativas.

Teria sido o ícone maior neste segmento. Isso se seus sócios não tivessem usado de ambições extremas e lhe tirado até o último centavo. Lançando-o na mais profunda vala de dívidas jamais vista, o que lhe fez perder até o teto onde se abrigava. Falido e sem novas perspectivas afundou na embriaguez, tornando-se um ébrio. A esposa o abandonou e seus filhos sentiram vergonha daquilo no qual o pai se transformou.

Sozinho e em completa penúria, sem ter como trabalhar e manter o próprio sustento terminou nas ruas como mais um na crescente lista de indigentes. Ele era seu companheiro de dormida no coreto da praça.  Não trocavam mais que uma dúzia de palavras por ano, mas assim mesmo lhe tinha como amigo.

 O dia que mais conversaram foi quando se conheceram e ele contou sua história. Depois disso o silêncio se tornou uma parede quase intransponível entre os dois. Depois da partida de Geraldo a solidão ocupou por completo seu limitado mundo, ele era o único que confiava trocar duas palavras, agora era somente ele e os pensamentos confusos que sempre o atormentaram.

 O centro de perícias criminais levou o corpo do morto para a necropsia, de lá seguiria para o crematório e seus familiares nem notariam sua falta.  Este é o fim reservado para trastes como ele, sem nenhum valor. E o que dizer dele, haveria alguém que em um momento lastimável como esse surgiria para reclamar o defunto e enterrá-lo com mais dignidade? Logicamente que não, seus pais a quem ousou abandonar, nem a mãe adotiva que um dia lhe deu sobrenome valoroso, nenhum deles estariam no seu enterro sem funeral e medíocre.

 Lá para as bandas do Tapanã, cemitério público e de má qualidade, sempre com portas abertas para qualquer um que o diabo decidisse levar ao além.  Ou, quem sabe, para ver a fumaça de seus ossos queimando no crematório público, como aconteceu com o amigo atropelado.  Mas não era ainda o momento certo para ficar preocupado com tais detalhes.

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