Explosão ancestral.
Quase não se notou a chegada do dia. O céu não clareou, os pássaros não cantaram, e o frio persistia, pois o sol sequer deu as caras.
Nos corredores, reinava o silêncio. Apenas o bater das asas de alguns morcegos e de Carcará era ouvido. A coruja voava com urgência, a pressa evidente, e pousou abruptamente no ombro de Johan, que estava sentado na cama de Nadine, ainda adormecida. Lua estava deitada, de barriga para cima, ao lado da cama.
Johan tocou as cobertas assim que a ave sussurrou algo em seu ombro, em voz baixa.
Seus olhos se abriram, tingidos de vermelho após as palavras da coruja. Ele se levantou, ajeitou as vestes e respirou longa e profundamente.
— Lua? — Sussurrou ele.
A cadela, atenta, ergueu-se rapidamente, olhando para os dois. Johan a observou.
— Para quem você contou da nossa conversa de ontem? — Perguntou ele, ainda em sussurro.
— C... como assim? — Ela se levantou, preocupada, abanando a cauda.
— Eu sei que estava ouvindo, e eu esperava que tivesse contado a ela o que de fato aconteceu. Queria que o tivesse feito. — Ele disse, fitando a cama. Desta vez, parecia tão apreensivo quanto o cão.
— Eu tentei contar, senhor, mas ela não conseguiu me dar atenção. Quando a noite chega, ela fica sonolenta demais para ouvir até um leão rugir. — Ela apontou o focinho para a garota desacordada. — Então eu contei para o Rei Benjamin... Por quê?
— ... Taddeus fugiu durante a noite, com sua cavalaria. Ele matou o rei.
Lua ficou sem reação, ansiosa. Ela avançou e suas patas mudaram, como se algo estivesse lutando para se desprender de seu corpo canino. Deu um passo à frente e rosnou, transformando-se em humana.
Em sua forma feral, ela era loira, com o cabelo preso num rabo de cavalo, vestindo roupas de cavalaria, com uma espada na cintura, e mantendo as patas, orelhas de cão e olhos castanhos claros que, brilhantes como a lua, deram-lhe o nome.
Ela observou Johan e, em seguida, a garota. Ele se sentou na janela, ciente de que a fuga de Taddeus significava algo muito pior do que ele poderia imaginar.
— Vou acordá-la. Como ela vai confiar no senhor? — Ela disse, a voz trêmula de tristeza e urgência.
— Diga a verdade. Você sabe que não sai do lado dela... Meu medo, Lua, era que ele viesse atrás dela. — Ele tocou a moldura da janela. — Por isso, fiquei aqui, para que ele não a tocasse de jeito algum.
Lua analisava o homem. Seus sentidos eram aguçados e ela percebia o coração dele disparado, o nervosismo óbvio diante de toda a situação.
Lua tocou as costas da garota com a palma da mão, e Nadine abriu os olhos lentamente, assim que Johan afastou a cortina e a pouca luz do dia tocou sua pele.
— ... Lua?... Faz tanto tempo que não te vejo assim... Aconteceu alguma coisa? — Ela se sentou, em roupas leves e brancas de dormir. Cobriu-se com as cobertas, fitando-a. Seu cabelo estava levemente desgrenhado pelos cachos não finalizados.
"Mais linda impossível", pensou Johan inevitavelmente, mas permaneceu em silêncio, enquanto Lua tocou seu rosto devagar, forçando-a a olhar em seus olhos.
— Seu irmão, ele fugiu na noite com o feral de seu pai, e ele, e algumas pessoas da comitiva que ele trouxe...
— Espera... Mas por que ele faria isso? — Ela estalou os dedos, e seu cabelo magicamente se arrumou e se prendeu longe de seu rosto. As roupas flutuaram até ela, e só então ela percebeu: — ... Minha magia?
— Não há tempo para explicar sobre isso, mas seu irmão traiu a coroa... Eu sinto muito, Rainha Nadine...
O coração da garota falhou, estacando. O sangue travou na garganta. Um nó de incompreensão subiu com o arrepio frio da notícia. Ela se levantou apressadamente e soltou um grito de susto ao ver Johan, cuja presença não havia notado antes.
— Você fez isso?!
— Ama! Não... — Lua a segurou antes que ela se levantasse completamente da cama para usar magia. — Ele estava aqui a noite inteira, eu vi... Sabe que não posso mentir.
— Eu estive em vigia do rei a noite inteira. Eu chamei os guardas quando Taddeus apareceu no corredor. Eu mesma lutei contra o feral dele...
Agora, com a visão desimpedida, Nadine levou a mão à boca. O globo ocular direito da coruja havia sido arrancado. Respingos do sangue azul dos ferais escorriam da ferida.
— Eu não quebro minha palavra... — Johan falou com melancolia, apesar da tristeza diante da luta iminente.
— Não... Temos que dar tempo de fazer alguma coisa. Me levem até ele! Eu posso usar meus poderes! — Ela saltou da cama, e sem dar tempo de ninguém a impedir, saiu pelos corredores sem saber para onde ir.
Johan pegou a coruja no colo e saiu logo após Lua.
— Não deve se aproximar! — Uma armadura tentou alertar.
Mas não houve acordo. As armaduras que antes eram guardas estavam despedaçadas e queimadas. Ao se aproximar do quarto, uma linha fina e tênue de magia azulada já a percorria, seguindo seus passos e correndo junto a ela, tomando suas pernas, braços e aura, curando tudo no caminho. Vinhedos cresciam pelas paredes e brotavam pelo teto, com uvas novas, brilhantes e cheirosas.
Foi quando ela tocou os joelhos no chão que a energia a envolveu, e marcas resplandecentes começaram a surgir, tomando toda sua pele. Johan parou na porta. O quarto era um cenário de guerra. Curandeiros que tentavam prestar socorro pararam o que faziam. As paredes estavam destruídas no acesso ao lado de fora, onde uma grande marca de queimado se alastrava pelas ruínas.
— Pai — Ela sussurrou. Suas mãos trêmulas seguraram rapidamente a mão dele.
Os corredores eram agora tomados por energia, e uma luz que ser nenhum ali presenciou até hoje começou a erradiar dos cantos, tudo vinha de Nadine e crescia com força, tremeno as raizes e flores e plantas que ja cresceram ali.
A magia se espalhou pela pele do homem e pelo chão. Raízes cresceram mais ainda, tomando as paredes o teto, levantando e partindo a cômoda. Flores, grama, de tudo brotou ali com o toque da garota.
O Rei Benjamin estava coberto pelo sangue prateado que os bruxos carregam, pois alguns dos seus guardas morreram ou foram queimados para salva-lo alguns até mesmo se encontravam sem parte de seus membros, mas o sangue humano, vermelho, escorria de seu peito, ainda perfurado por uma presa enorme de dragão.
Nadine tocou a presas segurando com força. Uma luz começou a se desprender de cada marca, linha e runa que se espalhara, até que Johan foi obrigado a cobrir a vista, cobrindo a da coruja também. A massa de energia que se desprendeu de uma única vez arremessou Lua ao chão e jogou Johan para trás, assim como os curandeiros.
No meio de tudo aquilo, Nadine caiu ao lado do pai, desacordada, com uma presa de dragão na mão...
O silêncio em seguida fez as paredes tremerem.
Ao se recuperar, Johan se levantou primeiro.
E presenciou os olhos dos guardas que ele havia perdido se abrindo, e o corpo do pai de Nadine segurando o dela, de olhos abertos e cheios da energia da magia que se desprendia das runas e tomava o corpo dele.