Capítulo 4

POV Eva Monteiro

A descida da serra de Água Serena parecia uma despedida.

As curvas sinuosas, o vento cortando o rosto, o cheiro das árvores… tudo gritava um último "fica".

Mas eu não ia ficar.

Pela primeira vez em muito tempo, eu ia embora por mim.

Lá de cima dava pra ver toda a cidadezinha. Pequena. A mesma praça onde eu vendia brigadeiro. A mesma rua da escola. A mesma igreja do quase-casamento.

Tudo tão familiar, mas tão… pequeno.

Como se minha vida tivesse sido comprimida num potinho que alguém deixou esquecido na estante.

A lágrima veio, inevitável. E dessa vez, eu deixei cair.

Não era só tristeza. Era arrependimento também. Por ter deixado minha intuição calar por tanto tempo.

Eu sabia que podia mais. Sempre soube.

Mas deixei o medo, o dote, o “futuro seguro” decidir por mim.

Burra.

Se eu tivesse apostado naquilo que me fazia brilhar, a música, os códigos estrategicos, os meus dons, eu nunca teria que implorar respeito de homem frouxo.

Cheguei em casa e comecei a fazer as malas. Eu nem sabia por onde começar. Era tanta coisa, tanto sentimento embolado.

Foi quando o celular tocou.

“Camila <3” Piscava na tela. Minha verdadeira melhor amiga.

Infelizmente ou felizmente ela não pode vir para o meu finado casamento, mas lá estava ela, já sabendo de tudo. A única pessoa que eu não precisava fingir nada.

Protetora. Leal. E a melhor amiga que alguém poderia pedir.

Eii garota! Você tá bem?”

— Melhor impossível… Por incrível que pareça tô sentindo um alívio muito grande.

Ele não te merece, nunca fez por onde... Mas e agora, o que vai fazer?

— Tô arrumando minhas malas... Se importa de eu passar alguns dias com você? Só até encontrar um lugar pra ficar.

O QUÊ? Você tá maluca? Que pergunta é essa? Claro que sim!

Eu sorri. Pela primeira vez no dia. Um sorriso de verdade.

Eva, faz anos que quero que você venha morar comigo. Claro que você pode ficar aqui em casa. E nem precisa se preocupar em achar outro lugar.

E pronto. Bastou isso.

Desabei em silêncio, olhando pras minhas roupas espalhadas na cama.

Respirei fundo. Ajeitei tudo. E passei o resto da noite me preparando pro voo das 9h.

Meu celular tocou algumas vezes com mensagens de parentes meus e do Gustavo, me desejando força e boa sorte. Fiquei grata por eles terem sido, de certa forma, solidários com tudo que aconteceu.

Os Lacerdas focaram o contato deles somente nos meus pais. Provavelmente tentando negociar o retorno do dote. Mas meus pais não são tão burros assim de aceitar fazer acordo com eles.

O Gustavo tentou me ligar algumas vezes… Sabrina também, mas eles devem estar juntos então a insistência não durou muito.

Foi uma noite difícil

A ansiedade estava me matando. A preocupação de estar longe dos meus pais pela primeira vez me corroia por dentro.

Mas era algo que eu precisava fazer, por mim!

Horas depois

A viagem foi tranquila.

A cabeça, nem tanto.

Cheguei em Avermoor por volta das 18h. O frio me deu boas-vindas com um tapa na cara e um empurrão na alma.

Mas ali estava ela.

Camila.

Linda.

Negra retinta, cabelo trançado em locs grossos, presas num coque alto com um lenço verde-claro que destacava o brilho da pele.

Nariz fino, traços delicados, um bocão poderoso de negrona.

Óculos estilosos que deixavam ela com cara de CEO e hacker de filme ao mesmo tempo.

— Olha quem resolveu virar gente e fugir do hospício!

Ela gritou antes mesmo de eu alcançar a porta do desembarque.

Caí no riso e fui direto pro abraço.

— Você fugiu cedo, ninguém por aqui desconfiou da sua loucura?

Respondi sarcástica. Ela gargalhou.

— Ai eu estou tão feliz em te ver. Nem parece que não nos vemos pessoalmente a o que? 1 ano mais ou menos?

Ela me analisou da cabeça aos pés com aquele olhar de raio-x que só ela tem.

— Você continua linda! E agora ainda mais iluminada e sem uma cobra na sua sombra!!

— Obrigada amiga, eu estava com tanta saudade.

Ela me abraçou novamente.

O carinho dela era tudo que eu precisava naquele momento.

Voltamos no carro dela cantando Pagodão e Rihanna como se a estrada fosse uma turnê.

A casa da Camila era tudo que eu precisava: moderna, perto de tudo e com alma de lar.

Ela trabalhava como analista de fraude numa empresa grande.

Hacker de elite. Inteligente até o osso.

Nos conhecemos no curso de TI e nunca mais largamos.

Depois ela foi pra engenharia de software, fez mil cursos e virou referência em tudo.

Minha melhor amiga era a definição de mulher foda.

Assim que entramos, ela largou a bolsa e já implorou:

— Eva, pelo amor de tudo que é sagrado… cozinha pra mim? Depois de você a sua comida é a o que eu mais sinto falta.

— Só se tiver vinho.

— Se não tiver, eu abro champanhe.

Enquanto eu cozinhava, abrimos uma garrafa e deixamos o riso rolar.

Falamos do traste do Gustavo, lógico.

Camila quase se engasgou de rir quando eu mostrei a mensagem do Constantine, o melhor amigo culpado.

“Me perdoa pelo que aconteceu, Eva. Eu me sinto muito mal com tudo... Se quiser conversar, tô aqui. Ouvir, consolar... sei lá. Qualquer coisa.”

— Qualquer coisa, tipo te pegar, né? — Camila disse, rindo alto.

— Certeza. O cara tá pronto pra talaricar o amigo na primeira chance.

E Gustavo não ficava atrás na babaquice. Ele já tava me enchendo o saco desde o minuto em que sai de Água Serena.

As mensagens estavam no nível patético, que saiam de: 

“você não pode ir embora assim!”

“não faz isso comigo”

“me perdoa”

Para:

“Sua vagabunda idiota”

“você mereceu!”

“você vai me pagar pelo que você fez”

Homens. Eu fui traída, e eu que sou a vagabunda?

Camila levantou a taça e declarou:

— Brindemos à nova Eva Monteiro. Livre, gata e poderosíssima.

 — Espero que eles entrem um no outro e se explodam!

Brindamos. E seguimos criticando a instituição homem: 

 — Sério, homem é uma praga né? A um tempo atrás meu chefe começou a me assediar no trabalho

— Que babaca…  — Falei enquanto tomava um gole do meu vinho

— Eu avisei uma vez, duas… Na terceira, eu só hackeei o celular dele e mandei as fotos dele com “AS” amantes para ele. Se ele continuasse eu mandaria para a esposa dele.

— Porque não mandou de uma vez?

— Porque eu poderia ser demitida por justa causa. A falta de caráter dele só iria afetar ele na vida pessoal dele, mas na profissional, ele poderia fazer da minha vida um inferno.

— É verdade… A empresa não iria demiti lo por ele trair a esposa… e so a justificativa do “Assédio” em uma empresa cheia de homens não irá ser levado a sério como deveria ser

— Exatamente! O dono da empresa é um homem. A minha área tem muito mais homem. Imagina o caos!   

Seguimos a noite conversando e fofocando.

Rimos muito e entre uma garfada e outra, que falei:

— Enquanto não acho emprego… tô pensando em tocar numa balada daqui.

Abri o notebook e mostrei a boate que achei.

Camila analisou com olhos de águia hacker.

— Boa localização. Público bem variado. Bem movimentada… Apoiada. Você vai arrasar.

— Vou montar um portfólio para apresentar pra eles… Apesar de bem movimentada eles estão tendo uma péssima avaliação sobre as músicas

Ela puxou meu notebook para olhar as avaliações e as reações seguintes não foram agradáveis.

— Uh, olha isso. “DJs sem presença de palco e transições que pareciam feitas por quem aprendeu ontem no YouTube. A seleção musical da noite passada foi previsível e sem energia — parecia playlist do Spotify no modo aleatório.”

— E piora, lê esse aqui. —  Eu aponto para ela na tela

“VÉRTICE é puro marketing. A entrada parece coisa de filme, mas lá dentro? DJ tocando set batido, música que já saturou em todo festival do ano passado.

O som tava mais alto que a qualidade da playlist. E só atendem direito quem chega de carro importado ou tá na lista do dono.

Os bartenders mais se escondem do que servem, e a energia? Gélida. Tipo o próprio dono que dizem ser um mal amado”

— Nossa, cancela o que eu falei. O que você quer num lugar como esse?

— Uma contratação rápida. Minhas playlist são ótimas, e eles devem estar desesperados. E eu estou curiosa com o que dizem sobre o dono.

Ela me olhou por um momento e depois concordou.

— Quando você vai?

— Agendei entrevista com o gerente do lugar sexta a noite . E acredite ou não, olhando as redes sociais dele, eu descobri que ele tem 25 anos.

— E trabalha em uma balada? Por isso está mal gerida.

— Eu vou junto então.

Concordei e seguimos a noite conversando sobre música e sobre a empresa dela.  Ali, no sofá com a Camila, entre taças, risos e promessas, eu não estava apenas recomeçando, eu estava prestes a dominar.

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