Há dias em que parece que saímos da cama com o pé esquerdo e tudo conspira para dar errado, piorando a cada minuto. Luana estava vivendo um desses dias.
Dormira apenas algumas horas e acordara em sobressalto ao receber uma ligação urgente do escritório. Precisavam dela com pressa. Não podia culpá-los; ela não havia aparecido o dia inteiro anterior, e todo o trabalho sob sua responsabilidade estava paralisado. Mas, após o funeral, não se sentia pronta para voltar ao trabalho. Sentia-se sobrecarregada por emoções que tentava empurrar para um canto escuro da alma, para que não escapassem enquanto estivesse em público.
Resolveu o assunto urgente o mais rápido que conseguiu. O escritório onde trabalhava era um ambiente moderno e sofisticado, com paredes em tons neutros, móveis de madeira clara e detalhes em aço escovado. A luz natural entrava pelas grandes janelas, mas naquele dia, o céu cinzento refletia seu humor. Sua mesa, impecavelmente organizada, contrastava com o cansaço estampado em seu rosto. O ar condicionado mantinha o ambiente fresco, mas não conseguia aliviar o peso que sentia.
Quando se preparava para sair, sua assistente ligou informando que seu marido estava na recepção, exigindo falar com ela. O plano de sair mais cedo foi por água abaixo. A última coisa que precisava era encontrar Rafael, especialmente tão próximo do funeral de André. Sabia exatamente o motivo da visita dele — não para prestar condolências, mas talvez para zombar dela, mostrar o quanto estava feliz pela morte de André. Só podia ser isso.
Pediu que o deixassem esperando, pois precisava terminar de analisar alguns processos pendentes. Quase uma hora se passou, e Rafael continuava lá, paciente. Ela estava prestes a ceder e deixá-lo entrar quando o telefone sobre a mesa tocou novamente. Sua assistente a surpreendeu com a notícia:
— Está uma senhora chamada Sheila Dias e deseja falar com a senhora.
— Sheila? — murmurou Luana, confusa, sem entender o que teria levado aquela mulher a procurá-la.
— Sim, doutora.
— Dá-me cinco minutos e depois podes mandá-la entrar.
— Está bem, doutora. Vou informar a recepção.
Luana desligou o telefone, mas sua mente estava a milhas de distância, tentando montar as peças do quebra-cabeça que acabara de surgir. Tirou o pequeno espelho da bolsa e, ao ver seu reflexo, entrou em pânico. As olheiras profundas permaneciam, o ar cansado não havia desaparecido, e nem os óculos graduados conseguiam disfarçar sua aparência extenuada.
Os cinco minutos passaram tão rápido que só percebeu quando a porta se abriu, e sua assistente entrou, seguida por Sheila.
— Obrigada, Vera. Peço que garanta que não sejamos interrompidas.
— Sim, doutora — respondeu a assistente, saindo e fechando a porta atrás de si, deixando as duas mulheres sozinhas.
— Por favor, sente-se — disse Luana, indicando a cadeira em frente à sua mesa, tentando disfarçar o cansaço e assumir a postura firme e profissional que lhe eram caractisticos.
Sheila caminhou até a cadeira e sentou-se, ainda visivelmente nervosa.
— Obrigada por me receber. Imagino que sejas uma pessoa muito ocupada e eu... bem... vim sem avisar. Não teria vindo se não fosse urgente... e... na verdade, eu não sabia a quem recorrer e tu... hum... bem, eras amiga e advogada do André — Sheila se perdeu no discurso, incapaz de conter o nervosismo ou permanecer em silêncio.
— Calma, Sheila — interrompeu Luana, com um tom sereno. — Queres uma água, café ou suco?
Sheila a olhou, boquiaberta e um pouco confusa.
— Água, por favor — respondeu instantes depois.
Luana levantou o auscultador e discou um número. Logo em seguida, pediu à pessoa do outro lado da linha uma água e um energético. Mal desligou, a porta da sala se abriu e uma jovem entrou, trazendo uma bandeja com uma garrafa de água de 500 ml, uma lata de energético e dois copos. Depositou a bandeja sobre a mesa e saiu silenciosamente.
Luana serviu-se primeiro, depois Sheila pegou a sua garrafa de água, encheu o copo e bebeu tudo de uma vez. Após pousar o copo e respirar fundo, olhou para Luana e só então percebeu as olheiras profundas e o semblante exausto que mais lembrava um ser quase morto do que uma mulher em seu escritório elegante, com móveis de linhas retas, estantes repletas de livros jurídicos e diplomas emoldurados nas paredes claras.
— Estás bem? — perguntou Sheila, levemente preocupada.
— Hum! Sim, sim, estou ótima — respondeu Luana, um pouco atrapalhada.
— A tua cara diz o contrário — insistiu Sheila.
— Na verdade, não estou nos meus melhores dias — confessou Luana, franzindo a testa. — Mas vamos ao que interessa. Tu pareces pior que eu.
Sheila hesitou, sentindo-se egoísta por pensar em seus próprios problemas ao perceber que Luana também sofria com a morte de André. Apesar de nunca terem sido próximas, sabia que Luana e André eram amigos íntimos.
— Sheila? — a voz de Luana a trouxe de volta ao presente, percebendo que estivera em silêncio por tempo demais.
Sheila tirou a intimação da bolsa e entregou-a a Luana, que leu o documento com atenção. Minutos depois, suspirou antes de falar:
— Não posso dizer que estou surpresa, e acho que tu também não estás. Mas não te preocupes, eles só querem assustar-te. André já havia tomado medidas, em vida, para que não tivesses nenhum inconveniente se ele... — Luana não conseguiu terminar a frase, apesar do tom sério e profissional.
— Ele tomou medidas? Que medidas? — Sheila perguntou, ansiosa.
— André fez um testamento. Os advogados já estão cuidando dos detalhes para que tudo seja esclarecido em breve. Na verdade, eu ia ligar-te hoje para marcar uma reunião aqui no escritório para a leitura do testamento.
Sheila soltou um riso nervoso, balançando a cabeça.
— Me desculpe, mas é difícil acreditar que André tenha feito um testamento. Ele era daquelas pessoas que achava que viveria para sempre. Nem gostava de falar em morte, quanto mais fazer planos para depois dela — desabafou.
Luana sorriu, sabendo que as palavras de Sheila refletiam a verdade.
— Tens razão. Foram precisos anos para convencê-lo a fazer o testamento, e olha que só o fez para eu o deixar em paz. Imagino que agora ele esteja praguejando, dizendo que eu trouxe o azar para a vida dele e que morreu antes do tempo por minha causa — disse Luana, rindo, e Sheila não resistiu, juntando-se a ela em uma gargalhada sonora.
— Estou mais aliviada agora. Pensei que fosse perder a minha casa, a casa das minhas filhas — confessou Sheila.
— Não tens com que te preocupar. Vai para casa e cuida de ti e das tuas meninas.
Seguiu-se um breve silêncio, e as duas se encararam.
— Eu sei que não é da minha conta, mas... acho que tu precisas de descanso. E urgente — Sheila foi a primeira a quebrar o silêncio.
— Na verdade, não tenho certeza de que, se for para casa, vou descansar. Ontem tentei, mas acabei num bar até tarde, e não me lembro bem de como a noite terminou. Só sei que acordei hoje com a cabeça doendo tanto que parecia que ia se partir ao meio — Luana falou, envergonhada.
— Confesso que também não me apetece voltar para casa. As meninas estão com minha mãe, porque o ambiente lá ainda está pesado, e achei melhor tirá-las de lá. Mas fiquei sozinha naquela casa onde tudo me lembra... bem, acho que entendes — Sheila respondeu.
— Entendo — concordou Luana.
Mais uma vez, o silêncio desconfortável se instalou. Sheila olhou ao redor, como se procurasse algo, e Luana, sem saber o que dizer, percebeu que nunca tivera uma conversa tão longa com Sheila.
— O que achas de sairmos daqui, sentarmos num lugar calmo e relaxante, e apenas desfrutarmos de um bom ambiente e boa comida? — sugeriu Luana, surpresa com as próprias palavras.
— É uma ótima ideia. Eu conheço o lugar ideal — respondeu Sheila, animada.
Luana fechou o laptop, pegou a bolsa e o celular, levantando-se. Sheila fez o mesmo, e as duas caminharam até a porta.
— Vera, não volto mais hoje. O resto terá que esperar até amanhã — disse Luana, ao passar pela porta da sala e parar em frente ao pequeno escritório da assistente.
— Sim, doutora — respondeu Vera prontamente.
Luana e Sheila seguiram até a recepção, desaparecendo pelas portas de correr, completamente envolvidas na conversa, como se fossem amigas de longa data.