Aquilo me desmonta por dentro. A garganta fecha, como se engolir as palavras exigisse força demais.— Sim... e ele quis me ajudar. Sem me contar. Eu não sabia que ele estava por trás desse emprego — confesso, num sussurro. — Como se ainda precisasse me proteger.— Porque precisa. — Rafael me encara, firme. — E não tem nada de errado nisso. É o jeito dele de continuar sendo seu herói, mesmo cansado. Mesmo doente.Fico em silêncio. Tentando absorver. E no meio de tudo isso, percebo que estou mostrando a ele um lado meu que quase ninguém vê. O lado que quebra. Que sente. Que sofre calado.E, por algum motivo que ainda não entendo... não me sinto exposta.Me sinto segura.Rafael sorri de leve. Mas é um sorriso de verdade agora, não aquele de fachada. Um sorriso que parece entender sem precisar dizer mais nada.— Vai para casa e descanse.Me levanto devagar. Quando passo por ele, paro por um instante, sem saber se digo ou não. Mas digo.— Obrigada... por me ouvir.Ele baixa o olhar por um
No fim da tarde, ouço batidinhas leves na porta. Reconheço de imediato. É Clara.Abro com um sorriso. Ela está com os cabelos presos num coque torto, as mãos cheias de sacolas de feira.— Trouxe umas frutas boas. Seu pai gosta de banana, né? — diz, entrando sem cerimônia.— Vai amar. Está comendo pouco, mas o que come, escolhe com carinho — respondo, pegando as sacolas.Ela vai até ele, se abaixa devagar ao lado da poltrona, segura sua mão com ternura.— E aí, campeão?Meu pai sorri, fraco, mas genuíno.— Continua aqui, firme. Só um pouco mais lento — brinca, tentando soar forte.Clara conversa com ele como se o tempo não tivesse passado. Como se ele ainda fosse aquele homem que a ajudava a consertar a torneira, carregar as compras, dar conselhos. E talvez, para ela, ele ainda seja. Eu observo de longe, sentindo o nó na garganta se formar de novo.Depois, enquanto ela me ajuda a organizar as compras na cozinha, fala baixo, com aquele olhar preocupado de sempre:— Tenho notado que ele
Segunda, à tarde....AnnaO dia segue seu ritmo, com a rotina bem estabelecida de sempre. Funcionários caminham pelos corredores, cada um com suas preocupações, como se carregassem suas responsabilidades em silêncio, quase invisíveis, mas visíveis a quem realmente observa. O cenário na empresa é de uma calma tensa, algo que parece fluir sem grandes interrupções, mas com uma energia palpável, que crescia com a aproximação da reunião.Agora, à tarde, a pressão se torna ainda mais evidente. Uma reunião de importância decisiva se aproxima, e o ambiente na empresa reflete a tensão natural desses momentos. Encontro-me no meu escritório, fazendo os últimos ajustes em tudo, como se cada detalhe fosse crucial para o sucesso do encontro. Organizo documentos, reviso relatórios e me certifico de que todos os aspectos logísticos estejam perfeitamente alinhados. Cada ponto a ser discutido, cada dado, tudo está sendo cuidadosamente verificado.A reunião é uma peça-chave. Trata-se de uma avaliação es
Uma hora depois...AnnaAo abrir a porta da sala de reuniões, sinto o ar mudar instantaneamente.Denso. Pesado. Como se até as paredes percebessem que algo está fora do lugar.Todos os olhares se voltam para mim. Curiosos. Confusos. Procurando, sem disfarçar, o homem que deveria estar à frente da reunião. Rafael.Engulo em seco. A vontade de recuar é forte, mas não posso. Endireito os ombros, prendo a respiração e caminho até a cabeceira da mesa, cada passo ecoando dentro de mim.— Boa tarde a todos. — Minha voz soa firme, mesmo que o caos me devore por dentro. — Meu nome é Anna Simon Ricci e hoje conduzirei esta reunião em nome do Sr. Rafael Fernandez. Infelizmente, ele não pôde comparecer devido a um imprevisto.O silêncio que se instala é espesso. Quase palpável.Até que ele se rompe.— Porra... — a voz grave de Raul corta o ar, baixa e rouca, carregada de uma frustração contida que reverbera na sala.Um murmúrio atravessa os presentes.Meus olhos o procuram — e o encontram.Sentad
RaulChego em casa mais tarde do que pretendia. O jantar com Dara foi silencioso e desconfortável. Ela estava cansada, o peso do tratamento deixando-a mais pálida e frágil do que nunca. Seus olhos, que antes brilhavam com intensidade, agora pareciam carregar uma sombra permanente. Dessa vez eu fiquei focado nela, mantendo a conversa leve para ela se sentir feliz, mas não teve jeito, ela estava muito apática.Ao abrir a porta da mansão, o silêncio habitual me recebe. Só o som abafado dos meus passos no piso de mármore ecoa pelo espaço amplo. A casa, mesmo grandiosa, parece pequena diante do vazio que a preenche. Subo as escadas com passos lentos, como se cada degrau aumentasse o peso nos meus ombros.Paro diante da porta entreaberta do quarto de Rafael. Um cheiro ácido de álcool e cigarro escapa pelo corredor. Meu maxilar se contrai. Entro sem bater e o vejo jogado na cama, completamente à deriva. Garrafas vazias estão espalhadas pelo chão, e sua camisa está amassada, colada ao corpo s
RaulCruzo o corredor em direção à saída principal, com Dara ao meu lado. Ela está mais pálida que o normal hoje, mas insiste em caminhar sem meu auxílio. Seus passos são lentos, mas firmes, e eu acompanho seu ritmo, oferecendo o braço quando ela tropeça de leve no carpete.— Estou bem, Raul. Não precisa olhar para mim como se fosse desmoronar a qualquer momento. — A voz dela soa baixa, quase um sussurro.Eu me esforço para sorrir, mas, antes que possa responder, algo à frente captura minha atenção.Ali, perto da recepção, está Anna. Sua postura está descontraída, e há algo em sua expressão que eu nunca vi antes: uma leveza despreocupada. Ela está... sorrindo. Mas não para mim.Rafael está ao lado dela, segurando a porta da saída como se fosse um gesto habitual, como se ele estivesse acostumado a ser o cavalheiro que, na verdade, nunca foi. Ele diz algo, e Anna ri. Não um riso nervoso ou polido, mas um daqueles que você sente no peito. Aquele riso dela que é puro, genuíno.Minha garga
RafaelAjusto a tipoia no ombro esquerdo com cuidado, tentando disfarçar o incômodo que insiste em me lembrar da dor a cada pequeno movimento. Pelo menos o carro é automático — se fosse manual, eu estaria totalmente fora de combate. Esse segundo carro, que comprei quase por impulso, me pareceu uma decisão sem graça na época. Hoje, reconheço que foi um raro acerto em meio ao caos.Enquanto aperto o botão de ignição e o motor ronrona suavemente, me pego questionando o que, afinal, me levou a convidá-la para almoçar. Já faz tanto tempo que não chamo alguém para sair sem um motivo oculto, sem algum objetivo egoísta por trás. A verdade é que, ultimamente, cada encontro que tenho parece cumprir uma função específica: me distrair, preencher o vazio, ou — na maioria das vezes — manter a ilusão de que estou bem. Que sigo em frente. Que nada me afeta.Mas hoje é diferente. Pela primeira vez em muito tempo, não quero nada além de uma conversa. Sem segundas intenções. Sem jogos. Sem o roteiro pre
No dia seguinte...A noitinha....AnnaO expediente termina. As luzes da empresa começam a apagar, os corredores antes cheios agora vazios, ecoando meus passos apressados. Só quero ir para casa, cuidar do meu pai, esquecer do dia pesado. Quando passo pela minha sala para pegar a bolsa, sinto a presença antes de ver.Raul está ali, encostado no batente da porta, como se me esperasse. O terno desalinhado, a gravata frouxa. Um contraste perfeito entre o chefe implacável e o homem em guerra dentro dele.— Anna — a voz dele é grave, carregada de algo que não entendo de imediato —, precisamos conversar.Minha mão para no puxador da bolsa. O coração pula no peito, antecipando que nada de bom viria dali.Respiro fundo, tentando não mostrar o tremor que me percorre.— Sobre o quê? — pergunto, mesmo já sabendo a resposta.Ele avança e a sala se torna pequena demais para conter tanta tensão.— Sobre você... e o Rafael — ele diz, os olhos cravados nos meus, como se cada palavra fosse um golpe.—