Terça-feira, amanhecerAnnaAcordo com a luz suave invadindo o quarto em faixas douradas. Raul ainda dorme, deitado de lado, com o braço estendido na minha direção, como se me procurasse até nos sonhos. Meu peito aperta — daquela forma estranha de quando algo bonito acontece em meio ao caos.Me levanto com cuidado. O roupão ainda tem o perfume do meu pai. Misturado ao de café da manhã de ontem. Misturado ao toque de Raul.O tempo parece flutuar. Tudo dentro de mim ainda dói, mas há uma nova clareza no fundo do peito. Algo que pulsa. Que pede movimento.Volto ao quarto com duas xícaras de café. Raul já está acordado, sentado à beira da cama, mexendo no celular. Ele sorri quando me vê — e é aquele sorriso calmo, sereno, que ele só usou comigo ontem.— Bom dia — ele diz, com a voz rouca de sono. — Dormiu bem?— O suficiente. — Estendo a xícara. — Fiz café... e tomei coragem.— Coragem? — ele pergunta, franzindo a testa.— Para voltar. — Respiro fundo. — Hoje vou com você. Quero trabalhar
Onze horas da noiteMansão FernandezA mansão Fernandez é um labirinto de sombras e luzes suaves. Enquanto caminho pelos corredores familiares, sinto o peso do silêncio, cortado apenas pelo som distante da música que ecoa do andar de cima. O clima opressivo parece refletir a turbulência que carrego dentro de mim desde que soube do câncer de Dara.A angústia aperta meu peito como um nó, constante e sufocante, lembrando-me implacavelmente do que está em jogo. Meus ombros estão tensos, e sinto uma fisgada no pescoço, fruto de noites mal dormidas.Subo as escadas, tentando silenciar meus pensamentos, mas o ranger do piso sob meus pés ecoa na minha mente como acusações silenciosas. Quando alcanço o topo, vejo a porta do quarto de Rafael entreaberta, e lá está ele, reclinado na cama, com um sorriso despreocupado nos lábios, enquanto uma jovem mulher se move ao seu lado, rindo e brincando como se o mundo fora daquele quarto não existisse.A luz suave do abajur delineia os contornos de seus r
— Ah, você está aqui... — diz ela, com um sorriso tímido que parece deslocado naquela hora e lugar. — Vim pegar um pouco de água.Permaneço em silêncio, observando enquanto ela caminha despreocupada até a geladeira.A naturalidade de seus movimentos contrasta com a tensão que cresce dentro de mim como uma onda prestes a quebrar.O perfume leve que ela exala — doce, juvenil — chega até mim, tornando a cena ainda mais insuportável.— Não sabia que estava acordado; você é o irmão de Rafael, não? — murmura ela, enchendo um copo de água. Sua voz é casual, quase inocente, como se nada na situação fosse errado.— Sim. — Respondo com um corte seco. Não me dou ao trabalho de me apresentar.Sei que não vale a pena criar laços; a garota não vai durar.— É tarde — acrescento, a voz afiada como uma lâmina. — Talvez você devesse ir para casa.Ela sorri levemente, sem se intimidar, e responde com simplicidade:— Vou passar a noite com Rafael — diz ela, sem traço de provocação, apenas constatando um
Raul Romero FernandezA chuva tamborila nas janelas da biblioteca, criando uma melodia irregular que preenche o silêncio do cômodo. O fogo crepita suavemente na lareira, projetando sombras alongadas nas estantes de livros antigos. Sentado na poltrona de couro que pertenceu ao meu pai, giro lentamente um copo de uísque nas mãos, observando o líquido dourado dançar sob a luz bruxuleante.É tarde, e Rafael ainda não voltou para casa.A tensão que cresce no meu peito já se tornou uma velha conhecida — um peso invisível, porém constante. As noites se repetem como um ciclo vicioso: eu esperando, enquanto ele se perde em madrugadas que parecem nunca acabar.Uma batida suave na porta interrompe meus pensamentos. Ergo os olhos e vejo Teodora, a governanta que nos acompanha há tantos anos que se tornou quase uma segunda mãe. Ela está parada na entrada, com um sorriso brando, mas os olhos denunciam o cansaço de quem já viu mais do que gostaria.— Rafael ainda não chegou? — pergunta, como se já s
O quarto está silencioso, exceto pelo som do meu próprio fôlego irregular. Meus olhos pesam, e a cabeça lateja, ainda repleta da névoa alcoólica que me acompanhou a noite inteira. Cambaleio até a cama e me jogo nela, afundando no colchão que não oferece conforto algum. Não busco mais conforto; busco apenas uma pausa no caos. Escuto a garrafa rolando pelo chão, vazia, como eu. Apago antes que consiga pensar em qualquer coisa, afundando na escuridão que tem sido minha companheira mais fiel.Quando abro os olhos, o sol já está alto. São onze horas.A luz invade o quarto sem pedir licença, ferindo meus olhos.A dor de cabeça me atinge como uma martelada, antes mesmo de eu lembrar quem sou ou onde estou.Suspiro fundo, soltando um palavrão baixo.Minha vida é um espelho quebrado — cada pedaço refletindo sonhos estilhaçados, mentiras contadas e partes de mim que já não reconheço.Levanto-me com esforço, tropeçando até o banheiro.O reflexo no espelho me encara com a crueldade da verdade: ol
RaulTeodora se aproxima, seus olhos carregados de uma sabedoria que às vezes me irrita, mas que, no fundo, admiro.— Rafael precisa de ajuda. Está claro que seu irmão é um alcoólatra.Suspiro profundamente, o cansaço tomando conta.— Sim, eu sei — admito, minha voz quebrando sob o peso das palavras. — Mas ele não quer ajuda. E eu... não sei como forçá-lo. Já falei para ele procurar o AATeodora se aproxima, repousando uma mão firme, porém reconfortante, em meu ombro.— Às vezes, Raul, as pessoas precisam chegar ao fundo do poço antes de enxergarem o caminho de volta. Mas você não precisa carregar isso sozinho.Faço um gesto vago em direção à porta por onde Rafael desapareceu.— Ele é meu irmão. Quem mais vai cuidar dele, senão eu? E o Santiago? Esse menino já perdeu a mãe. Não posso deixá-lo perder o pai também.— E o que acontece com você? — Teodora insiste, sua voz impregnada de preocupação. — Até quando você vai continuar se sacrificando por ele? Venda essa casa, junte com suas ec
Beleza IbéricaEscritório CentralManhã seguinteAnna Simon RicciMeu coração bate forte no peito, ecoando minha ansiedade. Essa entrevista para o cargo de secretária na Beleza Ibérica Cosméticos é mais do que uma oportunidade: é minha chance de recomeçar. Um raio de esperança que ilumina o meu futuro. Enquanto me olho no espelho, tento acalmar as borboletas que dançam no meu estômago. Afinal, essa fábrica de cosméticos, com sua origem espanhola, representa não apenas um emprego, mas a possibilidade de fazer parte de algo grandioso. Meu reflexo revela uma mistura de nervosismo e determinação. Ajusto o colar que pertenceu à minha avó, como se ele pudesse me dar força. Hoje, ele parece ainda mais significativo.Com a pasta em mãos, contendo meu currículo impecavelmente organizado e uma carta de apresentação que escrevi com cuidado, deixo minha casa e sigo em direção ao meu destino. O sol brilha no céu, mas meu coração está envolto em uma nuvem de incerteza, e a estrada até o prédio da
— Tudo bem — ela diz, com um tom que é ao mesmo tempo gentil e profissional.Há algo nesse pequeno gesto que me desarma. Um detalhe quase imperceptível, mas que me faz querer entender mais.— Vamos começar. Me fale sobre você e por que acredita ser a pessoa certa para esta posição?Ela respira fundo, e sua postura muda sutilmente. Seus olhos, que antes estavam dispersos, agora se fixam em mim. Há um brilho ali que me prende, uma convicção que cresce à medida que ela fala.— Sou formada em administração e tenho experiência em marketing estratégico. Nos últimos dois anos, trabalhei desenvolvendo campanhas para uma empresa têxtil, mas que infelizmente fechou suas portas aqui em Londres.Enquanto ela fala, algo em seu tom me surpreende. Não é apenas o conteúdo, mas a maneira como ela entrega as palavras, com uma franqueza quase desarmante. Tento me concentrar no currículo, mas minha mente divaga.AnnaO homem à minha frente permanece em silêncio por um momento, como se absorvesse cada pal