Evie Clark | 25 anos, junho de 2023, Nova York.
— Acorda, tia! Estamos atrasados! — Megan me sacode e tento enviar comando para o meu cérebro para fazê-lo entender que precisa levantar e colocar as crianças no ônibus da escola.
— Vamos, Vie, você só precisa tomar um copo de leite e seguir a vida. — Jill, minha colega de apartamento e única amiga, rebate, e lembro que preciso estar na Imperial Coffee House em poucas horas. Moramos juntas desde que ingressei na faculdade.
Jill e eu dividimos não só o aluguel, mas também os turnos de trabalho na cafeteria para pagar as contas, enquanto tento recompor a dignidade que me resta depois da festinha noturna no Hell Hole ontem à noite, o buraco que literalmente me escondo três vezes na semana para custear a metade do seguro saúde de Ryan, que possui a mesma doença que ajudou a matar Loren, já que não se preocupava com suas dosagens diárias de insulina.
Meus pais me ajudam com a outra metade, uma vez que ainda preciso alimentar as crianças e pagar a minha parte nas contas adjacentes do minúsculo apartamento.
— Todo dia é isso! — Megan reclama da minha demora, e Ryan rebate:
— Claro, sua burra, ela trabalhou a noite inteira! Pega o seu almoço, porque o ônibus já está chegando.
— Ryan, seja mais gentil com a sua irmã… — ouço Jill reclamar, conforme esfrego os olhos. A ladainha se estende até o lado de fora, com Jill acompanhando-os. Agradeço aos céus por tê-la conosco, senão, eu estaria pronta para aproveitar os dias em um manicômio. — Você está péssima! — diz ao abrir a porta, pouco tempo depois.
Estendo-lhe o dedo do meio e olho em volta, percebendo o caos formado em meu quarto, que se divide em sala e cozinha. É engraçado como oito anos é tempo suficiente para mudar vidas e transformar sonhos… Não para melhor.
Vinte e um anos foi a idade que passei de estudante de ciências matemáticas da NYU, para me transformar em mãe em tempo integral de um casal de gêmeos, após a partida precoce de Loren. Depois do episódio infame no lago, eu jurei que não tinha mais irmã, até chegarmos no momento de sua morte, há pouco mais de cinco anos. Obrigando-me a trancar a faculdade e a cuidar das crianças.
Ao retornarmos para casa, naquele verão, fingi que eu era filha única, enquanto Loren descobria sua gravidez. Lembro-me de John tentando uma conversa amigável com os Anderson por telefone, mas Charles jamais deixaria seu filho mais velho ser pai aos 25 anos, enquanto este estaria prestes a retornar a Harvard para um MBA.
Eu tentei perdoar Loren quando a vi definhar, mas percebi que isso jamais aconteceria ao me ver afastada de sua vida quando ingressei na NYU. Apenas notei nossa distância, quando recebi uma carta junto a uma súplica por perdão e um pedido para tomar conta dos seus filhos, que tinham acabado de completar três anos de idade e se encontravam órfãos. Mamãe tentou interceptar, dizendo que cuidaria dos netos, mas a culpa e a angústia que senti fizeram com que eu prosseguisse nos intuitos de minha irmã. Cuidar deles era a única coisa que eu poderia fazer depois de anos de tristeza e mágoa.
Loren morreu aos vinte e quatro anos sem o perdão que tanto ansiava e sem a pessoa que amou para minimizar sua dor. Eu vi seu sofrimento nos meses em que permaneci em casa, após a rejeição, mesmo Luke não tendo o feito de fato, uma vez que sequer sabia sobre a gravidez.
A tigela com vestígios de massa em cima da ilha, junto com as cascas de ovos, e os respingos de leite espalhados pelos azulejos e pia me dá a certeza que Ryan estava cozinhando, obviamente sob a supervisão de Jill. Ele já dava indícios que gostava de culinária, mesmo com tão pouca idade, e sempre o incentivamos. Lembro-me do dia em que chegaram ainda miúdos e com saudades da mãe. Os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar. Pouco nos víamos e massa de panquecas foi um meio para começarmos a nos entender.
— Eles continuaram discutindo? — indago enquanto pego a garrafa de leite na geladeira.
— Sempre! Ah não! Você não vai beber no gargal… — ela se interrompe quando faço exatamente isso e gargalho. — Vaca! Nós precisamos conversar sério…
— Você me ama!
— Amar é uma coisa. Odiar suas manias é outra! — Estendo outro dedo do meio e ela solta uma careta feia. — Sério! Você está precisando transar! Está cheia de olheiras e vive de mau humor. Está precisando de um homem urgente! — Reviro os olhos. — Ou mulher… Você quem sabe… — Ela ri zombeteira. Jill é homossexual e muito bem resolvida com isso.
— Eu não preciso de nada! Tenho apenas que juntar dinheiro das contas do mês…
— …que são muitas! — falamos em uníssono o meu lema predileto.
— Cortar os cabelos faz bem… — Caminho para o banheiro ao deixar a garrafa de leite na pia. — E depilar tudo também… — grita. — E ainda precisamos conversar!
Ela ama me perturbar.
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A Imperial Coffee House é uma cafeteria localizada no centro de Manhattan, basicamente embaixo de onde moramos, uma vez que o senhor Takahashi, nosso chefe, é dono do prédio inteiro. Então, meio que a metade dos nossos salários já fica para o aluguel.
— Bom dia, Takahashi san. — O senhor de cabelos grisalhos me cumprimenta com uma reverência oriental e eu faço o mesmo, vendo-o continuar o movimento diversas vezes, fazendo-me segui-lo, já que costuma ficar bravo se não devolvemos o gesto.
Ele fala algo em sua língua nativa, mas, como sempre, não entendo nada. As poucas palavras que me permito prestar atenção são: dólar, que obviamente se refere ao nosso pagamento, casa, que significa a hora de encerrar o expediente, e Arigatou gozaimasu, que é muito obrigado. O restante, normalmente, o deixamos falando sozinho, já que nunca sabemos o que responder.
Visto o meu uniforme diário, diferente do meu emprego noturno, no qual pareço uma acompanhante de luxo. Não que eu tenha alguma coisa contra elas, mas cada um com seus problemas e, de problemas, já tenho os meus.
Separo os pedidos dos clientes por ordem e disparo para a máquina de café, que me ajuda com suas funções diárias. O aroma é espetacular, mas não posso sequer pensar em encostar nele, porque minha pele começa a esquentar. Possuo intolerância à cafeína, algo raro, mas real. Já tive urticárias uma vez e não foi nada agradável.
A maioria dos clientes pede ele puro e sem creme, então, não preciso do auxílio de Sam, que costuma me ajudar nas primeiras horas do dia. Ele é o atendente mais jovem que conheci durante o tempo trabalhado aqui e que arrasa nas cantadas baratas que recebe todos os dias por causa dos seus músculos protuberantes e olhos mais verdes que o campo.
Às vezes, me pego olhando para eles, tempo demais, lembrando-me dos sorrisos furtivos que eu deixava escapar para Luke no rancho. O campo é tudo o que eu fujo há anos. Mesmo quando as coisas ficaram difíceis, financeiramente, eu jamais pedi ajuda a algum Anderson. Preferi largar a faculdade e me afundar em um segundo trabalho.
— O que esses olhinhos cor de avelã tanto observam? — Sam ama jogar conversa fora.
— Lembrando de um passado onde as coisas eram mais fáceis. Sem filhos e com apenas a faculdade na mente.
— Já falei que me candidato a pai nas horas vagas — ele brinca, e eu faço o mesmo.
— Se soubesse o quanto é difícil o cargo, não se candidataria.
Sinto seus dedos sob os meus.
— Eu só estou cansada… — confesso.
— Acho que está na hora de retornar à faculdade e pegar aquele diploma. — Dá algumas batidinhas nas minhas mãos e, em seguida, se dirige à mesa de um casal que acabou de entrar no estabelecimento.
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— House, Takahashi san? — questiono fazendo mais reverências orientais, sendo seguida por ele várias vezes, após observar que já passou meia hora do fim do meu expediente. Preciso ficar com as crianças, uma vez que já está quase na hora de Jill chegar.
— Takahashi san precisar falar Evie san. — Assimilo suas palavras e entendo que ele quer conversar em particular quando praticamente me empurra até seu mini escritório.
Sentamos um de frente para o outro, enquanto o homem abre um caderno na minha frente, e observo que é o mesmo que guarda com tanta devoção e está diariamente analisando. Há vários números japoneses espalhados. Sei disso, porque Sam me explicou uma vez, já que entende mais o senhor Takahashi do que Jill e eu juntas. O som das palavras do meu empregador se embolam na mente, junto com todos os caracteres japoneses desenhados no rodapé da folha.
— Evie, Sam e Jill san. Embora já! — Ele praticamente grita enquanto aponta, com a ajuda de uma caneta, os números em vermelho no final da folha, conforme Jill entra pela porta. Observo-a sem entender nada, completamente alheia aos gestos nada sutis do pequeno homem, que ataca fortemente o papel com a ponta da caneta. Mais um pouco e eu tenho que me desculpar com o pobre caderno por ele.
— Foi isso o que eu estou tentando dizer desde cedo. O senhor Takahashi está voltando para o Japão. Ele fechará o prédio em uma semana. — ela comenta, sabendo que isso arruina tudo. E eu? Ah! Eu fico mais perdida do que um cego em meio a um tiroteio, ainda tentando digerir tudo.