O ar da manhã estava fresco e leve, com a luz suave do sol entrando pela janela do apartamento de Clara. Ela se levantou da cama com os pensamentos ainda inquietos, sabendo que mais um dia seria um teste para suas emoções. As palavras de Gabriel ainda ecoavam em sua mente, mas agora havia algo diferente. A sensação de estar à beira de uma mudança, de uma decisão, parecia mais tangível do que nunca. Ela sabia que não poderia mais adiar o inevitável. Olhou para o espelho e se observou por alguns segundos. Os olhos estavam cansados, mas havia uma determinação neles que ela não conhecia antes. Clara sabia que a decisão que tomaria não era apenas sobre Gabriel ou sobre o que ele representava em sua vida. Era, acima de tudo, sobre quem ela era e o que realmente queria para o seu futuro. Ela passou o dia de ontem evitando olhar diretamente para a questão. Mas agora, com o amanhecer de um novo dia, ela não podia mais negar que a resposta estava dentro de si mesma. Ela já sabia o que queria
O cheiro do café recém-passado se espalhava pela casa, misturado ao som distante da televisão ligada na sala. O relógio da cozinha marcava 7h32 quando Clara desceu as escadas, ainda vestindo seu roupão branco de algodão, os cabelos castanhos presos em um coque frouxo e os olhos inchados de sono. A casa onde vivia com os pais e os dois irmãos mais novos era espaçosa, mas os sinais de desgaste nas paredes e nos móveis já denunciavam os tempos difíceis que vinham enfrentando. Clara havia completado 22 anos no mês passado. Cursava Letras na faculdade pública da cidade, mas há quase um semestre havia trancado a matrícula para ajudar nas contas de casa. Trabalhava meio período em uma livraria no centro, e passava o resto do dia entre panelas, roupas para lavar e a tentativa de manter alguma ordem na rotina dos irmãos adolescentes, Lucas e Henrique. A voz de sua mãe, Irene, veio da cozinha, como um sussurro carregado de cansaço: — Bom dia, filha. Dormiu bem? — Mais ou menos — respondeu C
A noite caiu pesada sobre a cidade, como se soubesse que algo havia mudado irremediavelmente na vida de Clara. Ela não jantou, não respondeu às mensagens dos irmãos batendo à porta, nem saiu do quarto. O celular permaneceu jogado sobre a escrivaninha, desligado. As horas passaram em silêncio, exceto pelos ruídos abafados da televisão na sala. Quando o relógio marcou três da manhã, Clara ainda estava acordada, os olhos fixos no teto, o peito queimando em um misto de raiva, medo e impotência. Na manhã seguinte, ela despertou com a luz invadindo o quarto pelas frestas da cortina. O rosto inchado, a garganta seca. Levantou-se como quem carrega o peso do mundo nos ombros. Ao sair do quarto, encontrou a casa vazia. Um bilhete preso com ímã à geladeira indicava que a mãe havia levado os irmãos à escola e o pai tinha uma reunião importante. A caligrafia era apressada, quase ilegível. Clara não se deu ao trabalho de respondê-los. Serviu-se de café, o mesmo de ontem, requentado, e tentou acal
Clara passou o restante do dia como se estivesse vivendo um sonho lúgubre. Após a conversa com Enrico, voltou para casa com o mesmo motorista, mas não conseguiu sequer apreciar o trajeto. A cidade parecia mais distante, mais cinza. Sua casa, antes pequena e acolhedora, agora lhe dava a sensação de confinamento. Assim que entrou, encontrou a mãe preparando o almoço, os irmãos rindo no sofá da sala, e o pai... ausente. De novo. Aquilo parecia se tornar padrão. — Clara? — perguntou a mãe, sorrindo, com o rosto cansado e olhos sublinhados por olheiras. — Onde esteve, querida? — Eu... fui resolver umas coisas — respondeu, hesitante. — Com o papai. A mãe não questionou. Talvez já estivesse acostumada com os segredos que circulavam por aquela casa como fantasmas. Clara subiu para o quarto, sentindo-se mais só do que nunca. Naquela noite, não dormiu. E no dia seguinte, como prometido, o contrato chegou. Foi entregue por um mensageiro formal, dentro de uma pasta de couro preta, com uma c
A manhã do casamento chegou com uma suavidade desconcertante, como se o mundo quisesse ignorar o peso do que estava prestes a acontecer. O céu estava limpo, sem uma nuvem à vista, e o ar fresco da primavera invadia a casa com uma suavidade que parecia irônica diante da tensão que Clara sentia. O dia deveria ser especial, mas, para ela, parecia apenas um rito de passagem forçado. Clara se olhou no espelho do quarto que agora dividia com Enrico, o rosto pálido, com a maquiagem impecável que Daniela, assistente de Enrico, fizera questão de aplicar. O vestido de noiva, que ela escolheu sem muita emoção, parecia mais uma armadura do que um traje de celebração. O tecido branco e a renda delicada contrastavam com a frieza de seus pensamentos. O espelho refletia a imagem de uma mulher que estava prestes a dar um passo irreversível em sua vida, mas que não sabia se ainda conseguia se reconhecer no reflexo. A casa estava calma. Sua mãe havia ficado na cozinha, preparando um café que ninguém b
A primeira noite no grande casarão foi silenciosa, tão silenciosa que Clara sentiu como se estivesse em um outro mundo, isolada de tudo o que um dia conheceu. O lugar, imenso e imponente, estava longe de ser acolhedor. Ela se mexia na cama, tentando se ajustar ao novo ambiente, mas a cama enorme parecia fria e distante, e a quietude da casa fazia com que ela sentisse um peso no coração. Nada sobre aquele lugar parecia familiar. Quando Clara olhou ao redor, a decoração luxuosa e impessoal não fazia sentido para ela. Cada objeto, cada móvel, parecia ter sido colocado ali com o único propósito de impressionar, e não de trazer aconchego. A grande janela do quarto, que dava para o jardim, permitia que ela visse as luzes da cidade distante, mas não oferecia a sensação de conforto que ela desejava. Ela fechou os olhos, tentando bloquear os pensamentos que invadiam sua mente, mas não conseguia. As imagens do casamento, a assinatura do contrato, a promessa de Enrico de cuidar dela... Tudo par
A vida na casa de Enrico começou a se moldar em uma rotina. Embora Clara ainda estivesse tentando se adaptar, o novo ambiente parecia ser mais uma prisão do que um lar. Todos os dias, ela acordava cedo, enfrentava o silêncio da casa e passava os momentos mais desconfortáveis tentando entender seu lugar ali. Enrico, por sua vez, se mostrava distante, imerso nos seus próprios pensamentos e tarefas, como se já tivesse se acostumado com a presença dela, mas sem nunca realmente estar presente. Clara sentia falta da liberdade que tinha antes. Mesmo com a obrigação do casamento, ela não podia negar a saudade que sentia de sua antiga vida, da simplicidade das manhãs na casa de seus pais. Mas, com o passar dos dias, as coisas começaram a mudar — para pior. A rotina de Clara era marcada por longos períodos de solidão. Enrico saia cedo para trabalhar e só voltava à noite, deixando-a sozinha com a casa, os empregados e a imensidão daquele lugar. Embora ela tivesse total acesso aos luxos do casa
Os dias começaram a se arrastar de maneira monótona, mas Clara não conseguia afastar da cabeça as palavras que ouvira naquela noite. Enrico estava escondendo algo, algo que poderia mudar tudo. Ela não sabia o que era, mas a sensação de desconforto só aumentava. Toda vez que ele a olhava com aqueles olhos frios, Clara sentia que ele sabia mais do que dizia. Algo no comportamento dele estava fora do lugar, mas o que exatamente? Era como se ela estivesse cercada por um jogo de sombras, onde as regras estavam sendo constantemente mudadas, e ela era a única que não sabia as respostas. Enrico, por sua vez, não parecia nem um pouco abalado. A cada dia, ele se tornava mais distante, mais centrado no trabalho. Suas interações com Clara estavam limitadas a momentos formais, como se ela fosse uma estranha, uma convidada em sua casa e não sua esposa. Embora fosse óbvio que ele tinha outros interesses além dela, Clara se sentia pressionada a manter as aparências, a continuar com o papel que lhe f