Capítulo 2

                                                    Capítulo 2

                               As escolas são locais realmente selvagens



            Já foi contada a história de como os monstros recomeçaram sua civilização depois de destronar os humanos. Já foi contado como os monstros iniciaram (acidentalmente) grupos extremistas que hoje, os humanos tomam as “glórias” de seus ideais deturpados e loucos. Também já foi contado como os humanos e monstros interagem em aliança para impedir que os mortos-vivos consigam invadir a paz do mundo civilizado (de monstros ou humanos).

            Agora, é necessário uma descrição sobre o sistema de ensino da civilização dos monstros, talvez um pouco de seus meios comerciais e econômicos, mas, sobretudo, seu sistema educacional.

            A princípio, ele em muito se parece com dos humanos: jardins de infância que ensinam o básico do básico para crianças em desenvolvimento, o período pré escolar, e então oito “graus” de estudo, da primeira série à oitava série. E as grades curriculares também são semelhantes: artes, química, filosofia, história, línguas, matemática, educação esportiva, mecânica, economia doméstica, etc. Segue um padrão que mescla sistemas educacionais dos humanos de nações como os EUA, Brasil, Europa. Mas ele para por aí. O que se segue, após o término da oitava série, é um ano inteiro de descanso e estudo pessoal do indivíduo. Durante esse ano, os corpos docentes e os núcleos estudantis avaliam a grade curricular de cada aluno. (Às vezes, esse processo pode levar além de um ano, quase chegando a três anos de avaliações). Com isso, professores, mestres acadêmicos, comerciantes, entre outros, avaliam as capacidades dos alunos, física e mentalmente. E como é de se esperar, existem os padrões comuns para cada raça: ele é um lobisomem? Suas notas em história, línguas, educação física e artes são melhores. Um anão? Sua habilidade com mecânica, matemática, artes e educação física são boas. Um elfo, então, tem sempre as maiores notas em artes, história, música, economia doméstica, etc.

            Às vezes existem aqueles que fogem desse padrão, mas nada alarmante ou desagradável, ou até mesmo desonroso. E após o período de deliberação dos mais estudados em assuntos do tipo, os alunos são chamados para uma “casa comunitária”, onde eles serão designados a escolas para que suas aptidões sejam afiadas e lapidadas. Os outros estudos recebem uma atenção moderada, enquanto que a especialidade do aluno é focada, assim, ele não se sentirá pressionado, cansado e desmotivado de estudar. O período de estudo dessas escolas de especialização ou cursos, varia de quatro a sete anos, e após os estudos terminarem e a formatura ser realizada, os círculos políticos de sua cidade, estado, país, financiarão suas atividades comerciais. Um orc se mostrou promissor nos esportes? Então vamos lhe dar dinheiro para comprar equipamentos de treino, de segurança física, o indicaremos para um time esportivo. Um elfo quer abrir uma loja de roupas finas? Daremos-lhe dinheiro para compra de materiais de construção, cabides, manequins, contatos com vendedores de tecido e costureiros. E isso funciona, pois esse investimento é posteriormente recolhido em impostos, nada muito grande ou alvo de reclamações.

            Entretanto, no momento que o indivíduo torna-se independente financeiramente, ele está por conta própria. Raras vezes o Estado político interfere nos assuntos econômicos de pequenas ou grandes empresas. Mas, se o indivíduo falha, a única forma de conseguir “pagar” pelos investimentos governamentais, será a construção civil, ou as forças armadas. Não há do que reclamar, também, pois todos recebem um tratamento adequado, salários justos, e conseguem viver confortáveis. Diferente dos governos e economias humanas, é claro: sempre pagando impostos altos.

            Mas, e se por acaso, o indivíduo quiser continuar estudando, para encontrar algo ainda mais específico que possa lhe dar uma vida satisfatória? Então, ele será mandado para os Institutos Acadêmicos de Estudo. Esses locais seriam o que os humanos chamam de “faculdades” ou “cursos profissionalizantes”. Mas são extremamente diferentes desses locais onde os humanos estudam, e, por vezes, degradam cada vez mais seu estado social. Nos Institutos Acadêmicos, contudo, o valor de cada aluno é analisado cuidadosamente. Os pais do indivíduo fazem um fundo de pagamento inicial para a matrícula, incluindo uniformes, livros, cadernos, etc. Não é caro, chega a ser acessível para muitos. Mas os Institutos costumam ser como “colégios internos”: os alunos lá vivem em dormitórios com dois ou três colegas de quarto. Há as divisões “meninos e meninas”, e uma vez lá, eles tem oportunidades de conseguir um sustento razoável. Se eles trabalham dentro da escola, em atividades como bibliotecários auxiliares, zeladores, encanadores, etc., os custos dos estudos são descontados de um salário que eles recebem do fundo da escola. Se eles trabalham fora, com pequenos negócios, o que conseguem da escola é nota extra de atividades extracurriculares.

            Isso tudo, funcionando dessa forma, é como um grande relógio, onde todas as engrenagens se encaixam perfeitamente. Pouca coisa sai errado, há casos e casos de professores mesquinhos, que maltratam alunos, ou de diretores corruptos, mas como não são frequentes nem nada do tipo, não há com o que se preocupar.

            E agora, falemos do Instituto Acadêmico Mãe Lua para Lobisomens Promissores. Mais ou menos cinquenta anos atrás, ele começou como um simples colégio para lobinhos. Os anos se passaram, e um professor chamado Bartolomeu Wolfram, resolveu investir cada vez mais na pequena escola. E não deu outra: quanto mais investia, mais ganhava. As dependências da escola cresceram, novas alas foram construídas, um ginásio de esportes, um laboratório de ciências, e então veio a ideia: dormitórios. Por que não elevar o status para Instituto Acadêmico? E então, nasceu, o Instituto Acadêmico Mãe Lua para Lobisomens de Bartolomeu. E os anos passaram, com vários símbolos de orgulho e honra sendo formados nas salas de estudo e aulas do Instituto. Mas, depois de tão velho, Bartolomeu Wolfram veio a falecer, tranquilamente, enquanto dormia. Contava com 98 anos, e todos sentiram sua falta.

            O novo corpo docente que, posteriormente veio a lecionar e comandar o local, decidiu fazer um acordo com a família de Bartolomeu: entenda, uma ideia dessas poderia ser desastrosa, mas, em honra ao espírito alegre e bondoso de Bartolomeu, seu filho mais velho, Norberbet, permitiu que iniciassem o serviço de bolsas de estudo para indivíduos de outras raças. E não teve outro resultado que não fosse o sucesso.

            Muitos alunos, elfos, anões, gnomos, orcs, entre vários outros, levam com orgulho em seus estabelecimentos e carreiras, o brasão do Círculo Prateado, o símbolo do Instituto Acadêmico. O nome permaneceu uma referência aos lobisomens, claro, eles ainda eram maioria no local. Mas, nos panfletos e cartazes de publicidade, ficou explícito que os bolsistas de outras raças seriam permitidos, desde que merecessem estar lá. E nunca houve um único bolsista que fosse indigno de tal oportunidade.

            O Instituto encontra-se na zona central de Howlingtown, tendo uma área que equivale aos maiores estádios de futebol já construídos, todos juntos numa única estrutura. Suas instalações possuem o melhor do melhor dos equipamentos de tecnologia para alavancar os estudos: livros, equipamentos de laboratório, carteiras, cadeiras, cozinha, ferramentas de mecânica, tem até uma ala hospitalar para alunos que fiquem doentes ou se machuquem gravemente na prática esportiva.

            E é nessa escola que vivem os nossos “heróis”, pelo menos sete deles. Que serão apresentados agora, sem mais demora.

            O primeiro deles é o “líder” de sua turma de amigos, Pedro Fenrirsson. Seu sobrenome não tem nada a ver com ser o filho do antigo Lobo nórdico das histórias, uma fera colossal, cujo pai era Loki. Não, seu sobrenome é o símbolo de sua “casa”, sua herança, ou parte dela. Pedro é órfão, passou de escola em escola, orfanato em orfanato, de acordo com sua idade, e quando seu período de estudos terminou (aproximadamente quinze anos nas escolas), ele decidiu que queria continuar estudando. E assim foi decidido: enviaram o jovem lobisomem ao Instituto Acadêmico Mãe Lua, e lá ele rapidamente marcou uma reputação: impetuoso.

            O segundo integrante do grupo é Lincoln Larsson, um elfo. Pouco mais velho que Pedro, foi para o I.AM.L. com pouco mais que 204 anos. Os outros quatro anos que passou foi ao lado do melhor amigo, e cuidando de sua loja de doces e confeitaria. Ele é, de longe o mais racional no grupo.

O terceiro membro do grupo chama-se Pedro Thundermount. Devido a essa tecnicalidade de nome, seu apelido no grupo é “Capivara”, e tornou-se uma piada pessoal entre o grupo de amigos. Um orc de pele escura, presas pequenas, músculos fortes, mesmo num adolescente de pouco mais que 16 anos. Costuma ser o alívio cômico entre os amigos.

            Samuel Daggerfang é o quarto, um rapaz com vinte e poucos anos, nunca se soube a idade exata dele. Um homem-rato, franzino, baixinho, que nunca esconde a cauda. Nunca deu uma explicação para esse comportamento. É o meticuloso, e tem um humor esquisito.

            O membro mais quieto dessa equipe é Heitor Sakalagrimsson. Um “werebear”, ou homem-urso, tem a altura de Lincoln e quase o dobro de músculos que um orc comum tem. Quieto, paciente, perspicaz, é quase irônico que ele entenda mais de política do que de esportes.

            O sexto membro da equipe é Igor Tideterror, o homem-tubarão. Ótimo com tecnologia, rápido em diálogos e discursos, sabe de respostas que quase sempre são dadas antes de a pergunta ser feita.

            O último componente desse improvável grupo é Andrey Dwalinsson. Um anão, muito bem resolvido com sua altura de pouco mais de 1,60 m de altura. (Anões costumam ser bem mais variados em alturas, e Andrey é, tecnicamente, o mais alto anão). Ótimo com trabalhos manuais, é o melhor fabricante “extraoficial” de bebidas alcoólicas dentro da Academia (sem que o diretor saiba, é claro).

            E agora, todos os rapazes estão no corredor, indo em direção ao salão de esportes para um pronunciamento geral do diretor. O que poderia ser, eles apenas podem imaginar, já que o anúncio foi feito de forma inesperada (como geralmente acontece). O primeiro a externar suas opiniões é “Samuca”.

– Eu acho que o diretor Tibérius vai iniciar as inscrições para os times esportivos, quem sabe alguém aqui não pega carreira de Forjador ou Caçador? – Ele questiona, de forma retórica.

– Nem inventa, cara – Quem retruca é Capivara – Cê sabe que, quando ele anuncia algo assim, os papéis de inscrição já são distribuídos antes de ele falar qualquer coisa. Por que ele faz isso, não tenho ideia.

– Ouvi dizer que são novos bolsistas – Igor comenta, distraído – Talvez aquele concurso de literatura para bolsas deu resultado.

– Quem sabe? – Capivara responde – Se bem que, de tantos dormitórios que a gente tem aqui, fico surpreso de termos até menos alunos do que seria possível como limite de pessoas.

– Olha, nunca me ocorreu isso – Pedro entra na conversa, olhando de lado para os amigos – Eu sei que, no geral, a gente tem, pelo menos, uns seiscentos alunos aqui, do tipo internato, é assim que funciona, vocês sabem. Mas, pelo que eu já contei, o Instituto tem bem mais quartos, espaço de sobra pra quantos manés forem capazes de entrar.

– Vê lá como fala, cara – Lincoln brinca, fingindo censurar o amigo – Se acaba aparecendo alguém aqui que pode minar sua autoconfiança, é melhor não dar mole.

– Se liga, bundão: não tem nada que possa me derrubar por aqui, nem aquele coió do Alexander Lambe Sacos – Respondeu o lobisomem, desafiador.

            Todos da turma riram, divertindo-se com o insulto gratuito que o autointitulado rival de Pedro recebeu. E ele o fez porque sabia que Alexander Maximov Blake estava nas imediações, seguido de perto por seus cupinchas, os primos Bruno Gonzales, Artur Rojo e Gabriel de Los Anjos.  Esses quatro indivíduos eram “de segunda geração” entre os licantropos, e considerados impuros. A provocação tinha o único intuito de fazer o rival saber que, não importa o quanto ele tente, não é capaz de atingir o jovem lobisomem.

            Na grande sala esportiva, com as arquibancadas praticamente lotadas por todos os alunos, o diretor Tibérius “Presas de Espada” esperava, num pequeno palco, em frente ao microfone. Junto dele estavam os professores mais influentes da escola, como Logan Manto Cinzento, de filosofia, Rose de Lacroix, de história, e a professora de economia doméstica, Annete Loudlaugh. Um pouco atrás do diretor, seu vice-diretor e conselheiro, o homem-corvo Lúcius Mistyomen. E, logo à direita desse palco, estavam vinte novos bolsistas. Cada um deles pertencente a alguma raça diferente da maioria gritante dos alunos, os lobisomens. Havia harpias, tritões, sátiros, ninfas e até mesmo as infames lâmias. E, enquanto todos os alunos esperavam o pronunciamento de boas-vindas do diretor, Pedro notou, dentre todos os pares de olhos dos vinte novos alunos, um par de olhos de castanho amarelado, com pupilas em fendas. Os olhos, essa foi a primeira característica que viu, depois um belo rosto feminino e cabelos castalhos.

            “É, acho que vou gostar desses alunos novos”, ele pensou, enquanto permanecia olhando, com um interesse quase infantil. Até que Lincoln deu-lhe um cutucão nas costelas, pois o diretor estava tomando fôlego. O discurso teria início.

– Estão todos me ouvindo? – Ele não esperava resposta quando falou ao microfone, era força do hábito – Muito bem, meus alunos. Estamos aqui reunidos para fazer alguns pronunciamentos…

– Quem morreu? – O comentário infeliz partiu-se de alguém logo na ponta esquerda da arquibancada, seguido de algumas risadas abafadas.

– Será você se não fechar essa boca – O diretor retrucou, sério e inalterado. Um lobisomem de 50 anos merecia um respeito natural, ainda mais o diretor de um Instituto Acadêmico – Como eu dizia, antes de ser rudemente interrompido, alguns anúncios. O primeiro deles será que, a partir de amanhã, sexta-feira, os alunos poderão fazer sugestões de cardápios semanais para a cantina da escola – Essa novidade foi bem recebida, com alguns murmúrios empolgados – O segundo anúncio é que, semana que vem, as aulas de educação física terão agora dois professores. Isso se deve ao fato de que muitos alunos buscam aulas nessa matéria, e portanto, o professor Maurice Rapidórix terá um auxiliar. O professor Gunnar Firefoot é um ótimo mestre de artes marciais, jogos com bola ou mesmo atividades físicas. Espero que apreciem sua estada aqui.

            Logo, mais murmúrios de entusiasmo e curiosidade. É bem verdade que entre os lobisomens, sempre há os que valorizem mais a força física e aptidões físicas do que as habilidades mentais. E, por conta disso, o homem-ouriço de trinta e poucos anos, o professor Maurice, precisava de um auxiliar. Agora as aulas teriam um tom mais agressivo no ginásio.

            O diretor esperou pacientemente até que os alunos se calassem, para, então, prosseguir com os anúncios.

– Em terceiro lugar, quero avisar que haverá mais vinte novos alunos. O ano letivo está começando, e portanto, não há problema com matérias atrasadas. Esses vinte bolsistas foram os que conseguiram as melhores e mais altas notas no concurso literário, dentre eles, a jovem dama Ana Maria Redcoat – Ele gesticulou educadamente para o pequeno grupo, e logo, para a surpresa de Pedro, a garota que levantou, tímida por causa da atenção, foi a dona do par de olhos cor de âmbar a qual ele olhara com tanto interesse.

– Espero que vocês sejam comportados para com os novos estudantes – O diretor prosseguiu, brincando, pois sabia que os ânimos de seus alunos eram fervilhantes com novidades – De qualquer forma, logo todos estarão acostumados uns aos outros. E, na semana que vem, haverá uma pequena festa de boas vindas aos novos bolsistas, ao retorno dos velhos alunos e a chegada dos novos, é claro. Espero que tenham passado um bom período de férias.

– Nem todo mundo, diretor, experimenta fazer bolos e doces sem parar pra clientes frescos – Lincoln gritou, conseguindo uma salva de risadas animadas. Até mesmo o diretor riu ante a piada.

– Nem me arrisco a imaginar, já tenho de cuidar de todos vocês, seus encrenqueiros – O diretor respondeu, conseguindo mais risadas, até mesmo os bolsistas riram – Agora, estão dispensados. As aulas terão início após a comemoração de semana que vem, na segunda-feira. Tenham um bom dia.

            E, ao fim dos anúncios, os alunos formaram grupos e saíram do ginásio esportivo, falando alto, gritando, rindo, provocando-se. O grupo de Pedro estava indo para o refeitório, ele queria ser o primeiro a dar sugestões de cardápio para a “Dona” Abigail Spiceclaws. Uma velha mulher loba, robusta, de riso fácil, que adorava seu maior admirador: Pedro. Sempre recebia elogios sobre sua culinária, e portanto, era fácil que fosse aceitar as ideias do rapaz.

            E, durante a caminhada, o grupo de vinte bolsistas dividiu-se em outros, pois agora eles estavam enturmando-se com seus futuros colegas de quarto. E não diferente com Ana: estava rodeada por três outras alunas, veteranas, também bolsistas: Judy, a fauna, Elise a fada e Vivi, a garota felina. Um grupo nada comum, e logo, as três estavam perguntando a Ana o que ela era, mas ela esquivou-se dessas perguntas, dizendo que na hora certa, ela diria. Estava atordoada por causa de toda a movimentação, a agitação, a forma fervilhante com que os alunos conseguiam misturar-se tão rápido. E, aparentemente, suas novas colegas de quarto a estavam “arrastando” ao refeitório: já estava quase na hora do almoço, e era bom que a garota nova visse quem era quem no Instituto.

            Os rapazes estavam sentados numa mesa, com ainda muito espaço de sobra, mas apenas eles sentavam ali. Por quê? A reputação os precedia, e eram alvos de respeito e medo de uns e outros. Ninguém ousaria trespassar os limites territoriais, a menos que fosse convidado. Os lobisomens sabiam muito bem disso, e sabiam melhor ainda do temperamento de Pedro. Afinal, logo nos primeiros anos em que estudou no Instituto, ele fez valer a reputação de pavio curto. Em pouco tempo, os metidos a valentão foram reduzidos a alunos comuns, com sua confiança e ego esmagados pela raiva explosiva do rapaz.

            Lobisomens são muito passionais por natureza, costumam deixar-se levar pelos sentimentos, como amor e ódio, com facilidade. Isso se deve a sua natureza animal, é claro, mas Pedro ia além: sua frieza em certos momentos, sua fúria em outros, e então um sorriso bem-humorado tão repentino e inesperado, logo o marcaram como imprevisível. E isso era uma arma poderosa nas mãos de um lobisomem quando demarca território nos seus anos de juventude: se ninguém espera o que você é capaz de fazer repentinamente, então é melhor que pensem duas vezes antes de cruzar seu caminho. Mas, no geral, ele era extremamente amigável e sociável, o que confundia os antigos valentões que tentaram intimidar o rapaz e até mesmo agredi-lo: alguns ainda guardavam as cicatrizes de dentadas que ele deixara em sua carne, tão profundas que dificilmente desapareciam por completo.

            Agora, no refeitório, os rapazes aproveitavam o assado de bolo de carne de porco com cenoura que a cozinheira lhes dera. Ela já os havia instruído da “caixa de sugestões” para cardápios futuros, e, como uma cozinheira orgulhosa, lhes dera quantias generosas do almoço para seus maiores fãs. E agora, enquanto comiam, eles discutiam as novidades:

– Rapaz, nem imagino como aquele cara deve estar sentindo-se agora – Capivara comentou, entre uma garfada e outra.

– Cê diz aquele mané que interrompeu o diretor? – Heitor perguntou, com sua voz profunda.

– Exatamente esse mané – Capivara confirmou – Cacete, a gente teve dois assassinatos já registrados, pelo misterioso assassino, e o imbecil me inventa de perguntar uma coisa dessas pro diretor.

– Não se esqueça: jovens, lobisomens ou não, curiosidade, hormônios… Isso explode a cabeça de muita gente, aí fazem perguntas estúpidas quase tão naturalmente quanto respiram – Samuca argumentou, conseguindo algumas risadas.

– Ah, vá, por que um diretor de escola iria ficar encucado com dois assassinatos? – Andrey perguntou, cético – Ele tá mais preocupado com notas ruins do que com gente morrendo, desde que não sejam estudantes, aí ele ficar cabrero.

– Não é tão simples, Andrey – Lincoln disse – O primeiro “alvo” foi um vampiro, pelo que eu soube, um rico exportador de perfumes. O segundo foi o militar Gustav Boskonovich, um lobisomem. Quem quer que tenha tido poder pra matar um vampiro e um lobisomem, no intervalo de cinco meses, precisa ser caçado.

– Além disso – Igor completou – Não significa que aquelas sejam suas últimas vítimas.

– Então cêis estão querendo me dizer que pode ser um tipo de serial killer? – Andrey questionou, interessado.

– Precisamente, Andrey – Igor disso – Algumas investigações na polícia e no departamento de detetives já deram algumas declarações. O vampiro, Maximillian De Laroux, foi morto com os pulsos presos por estacas de teixo atravessadas nos pulsos e tornozelos, afogado em água com um forte suco de alho.

– Carai, que negócio horrendo – Andrey comentou, interessado.

– Sim, e Gustav foi morto com vários cortes de faca, prata, a pele queimada não dava dúvidas disso. Além de intoxicação por pó de prata. O mais assustador, no entanto, foi o que o pesquisador botânico da polícia descobriu: acônito.

– Como é que é o negócio…? – Pedro perguntou, baixinho. Aquilo o surpreendeu mesmo.

– Te juro, usaram acônito nele. Onde conseguiram, e como confeccionaram um gás de acônito, não tenho idéia.

– Espera, acônito não é aquela florzinha roxa sem graça que chamam de “mata-lobos”? – Capivara perguntou.

– Infelizmente… – Pedro respondeu, apreensivo – Agora fiquei preocupado… Alguém com tamanha frieza… Usar suco de alho e essência de acônito, nem me atrevo a imaginar quais são os objetivos desse “monstro”. Mas, se ele botar os pés aqui na escola, vai sofrer.

            Os amigos riram um pouco, o que melhorou o humor do jovem lobisomem: piadas ajudavam a fazê-lo sentir-se mais confiante. E enquanto mudavam de assunto, comiam e faziam suas piadas, não notaram a aproximação do metido a rival, Alexander.

– Ora, ora, ora, meninas, como vai o bolinho de vocês? – Ele perguntou, abrindo os braços num gesto de “vocês são meus, divirtam-se”, e seus cupinchas de cara latina riram feito idiotas.

– Meu filho, a única “menina” aqui é você, com essa tua cara delicada de poodle bem cuidado a base de creme pra pele – Pedro respondeu, com desdém, enquanto comia o bolo de carne.

            Era verdade, e Alexander sabia, que ele era muito vaidoso com sua aparência. De uma família rica, porém de casta mais baixa na raça dos licantropos, ele agia como se fosse da realeza: cabelo louro platinado, o uniforme arrumado e impecável, sapatos engraxados a ponto de reluzirem o preto com reflexos, e é claro, os cremes para pele. É de saber geral que lobisomens tem a aparência maltratada, quase rabugenta, de cicatrizes, marcas, e carrancas, devido à quantidade de brigas ou mesmo de confrontos cruéis que eles tinham na juventude. Mas Alexander agia com manipulação e costumava deixar as brigas reais para seus asseclas, que, mesmo cuidando da aparência como o “chefe”, tinham uma aparência maltrapilha de lutadores de box de segunda.

– Vem cá, lobinho sacana, quem você pensa que é pra me criticar? – Alexander respondeu, contrariado – Você sempre usa roupas rasgadas, parece quem compra num brechó, todas remendadas, ou você mesmo as faz. Não tem um centavo que seja pra comprar uma marca que preste, é? O papi não te deixou muita grana, mané? – Ele gostava de provocar, mas não conhecia o oponente como deveria.

– Olha, Alexa – Pedro respondeu, incomodado com a insistência do inimigo –, se você acha que eu me importo com o preço duma roupa por marca, tá enganado pra cacete. Eu prezo a minha masculinidade e minhas habilidades de ser adaptável. Diferente de você, todo afeminado e frescolóide, com seus creminhos, seus capangas bundas moles e sua atitude ridícula de tentar me intimidar. Já vi valentões do jardim de infância que te fariam borrar as cuecas de quinhentos reais, rosa, que você usa debaixo dessas calças de seda.

– Veja lá como fala comigo, seu merda! – Alexander deu um tapa na mesa, a mão espalmada a centímetros do prato de Pedro – Diferente de você, um órfão ridículo sem importância alguma, eu tenho meu pai que pode te botar pra trabalhar na construção civil num piscar de olhos…

– Seria muito bom, o trabalho engrandece o lobisomem – Pedro caçoou – E se quiser trazer teu pai aqui, nem ele é forte pra fazer frente a mim. E você sabe por quê?

            Era uma pergunta retórica, provocativa, mas Pedro sabia que ia surtir o efeito necessário. Seu objetivo era fazer Alexander perder as estribeiras, tentar dar um tapa nele, como fazia com aqueles que, por ignorância, tinham medo dele. E quase aconteceu: ele levantava a mão no alto, para acertar seu golpe, e por descuido, deixou a gravata cair para fora do colete de lã. E foi nesse momento, que Pedro agarrou a oportunidade – e a gravata – com força, puxando-a para baixo e fazendo a cabeça de Alexander bater com um impacto na mesa de alumínio.

            Os amigos de Pedro não iriam interferir. Estavam sorrindo, sabendo que ele era capaz de assustar até mesmo um ogro líder de gangue criminosa. E, afinal, já havia dois anos que esperavam por esse confronto: Alexander, dois anos mais velho, chegara na escola fazendo barulho, e tentando intimidar a todos. Pedro o ignorou e fez com que o inimigo o estudasse de longe, concluindo erroneamente uma análise do jovem lobisomem. Agora, pagava o preço.

– Você não é puro… Teus ancestrais mais distantes foram mordidos, e portanto, teu pai também não é puro… Seu cão vira-latas ridículo – Pedro sussurrava perto da orelha disponível de Alexander, que se debatia para soltar-se – Você não me mete medo, seu cão sarnento, nem esses teus amigos mambembes aí, mais parecem recepcionistas de fast food de quinta. Se você quiser briga, traste, quando e onde for, eu quebro você e te faço chorar pela sua mãe, aquela cadela suja… – ele sibilava as ofensas, cuspia os insultos, deliciava-se com esse poder que sua raiva podia lhe proporcionar.

            De súbito, ele soltou a gravata de Alexander, e antes que este pudesse se equilibrar, Lincoln pôs um pé atrás de suas pernas cambaleantes e o fez tropeçar para frente, de cara no intencionalmente posicionado resto de bolo de carne de Capivara. Todos no refeitório estavam vendo a cena, e todos riram, aplaudindo e gritando, enquanto o metido a dono da escola era humilhado, saía dali cuspindo fogo (e pedaços de bolo de carne, ele odiava bolo de carne) e seus capangas controlavam-se entre o medo e a raiva, olhando para o grupo com intenções quase assassinas.

            Pedro, obviamente, já voltara a comer e agia como se nada tivesse acontecido, mas seus amigos o parabenizando e dando-lhe tapinhas costas o forçaram a dar um sorriso orgulhoso de seu pequeno ato heróico. Afinal, não era todo dia que alguém agia de forma tão estúpida a ponto de tentar enfrentá-lo, não é?

            Um par de olhos cor de âmbar, com fendas negras no lugar de pupilas, olhavam curiosos para o rapaz. Ana estava com seu grupo de colegas de quarto, e elas comentavam animadas os acontecimentos do refeitório, e ela perguntava quem eram aqueles garotos, e, sobretudo, quem era o lobisomem que havia humilhado o garoto louro. “É, as aparências podem enganar, mas não custa nada saber sobre ele”, ela pensou. E, logo, seus destinos se cruzariam.

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