Capítulo 3

                                                                          Capítulo 3

                                  Quem é esse cara? Parece mandar em tudo



            O dia seguinte, sexta-feira, começou com certa agitação. Metade dos alunos da escola queriam passear na cidade, Howlingtown, fazer compras, comer lanches, ir em lojas, shoppings, o costumeiro da juventude. Todos se comportavam num humor de alegria comum, como se fosse apenas outro dia como qualquer outro. Quem se importava se eles eram alunos de um “colégio interno”? Eles tinham liberdades de horários, tinham boas notas todos os anos, pagavam por seus vícios e luxos. E, ademais, as aulas só retornariam na terça-feira da semana que vem, portanto, pra que ter pressa de estudar?

            A outra metade dos alunos estava na escola, queriam conhecer os professores, demarcar seus territórios nas salas de aula, laboratórios, salas de informática, e os mais exigentes queriam verificar se suas requisições do ano passado haviam sido atendidas, como por exemplo: haviam três bebedouros que estavam estragados, canos rompidos devido a traquinagens alheias. Algumas bolas das aulas de educação física estavam em falta, pois estouraram: não é fácil chutar uma bola, ou enterrá-la na cesta de basquete, e esperar que ela fique inteira como ficaria nas mãos delicadas de humanos. E, é claro, havia os alunos que tinham idéias de cardápio para o refeitório. Ao que parece, essa novidade realmente deixou os alunos mais interessados do que se poderia esperar.

            Entre todos esses alunos, havia o grupo de Pedro e seus amigos. Lincoln já acordara cedo, indo até sua confeitaria na cidade, próxima a escola. Ele tinha de dar ordens, verificar carregamentos e encomendas, dar instruções aos empregados, e avisar de seus horários de aula (ele costuma pegar seus horários com muita antecedência, para não atrapalhar nos estudos). Samuca e Capivara estavam concentrados num jogo de FPS, estavam de tal forma compenetrados na tarefa de eliminar os campers numa missão de resgate dentro do jogo, que parecia que o mundo não existia ao redor deles. Igor e Heitor discutiam algumas sobre as matérias de filosofia, línguas e antropologia (parece estranho e quase absurdo que monstros estudem “antropologia”, mas, até onde se sabe, a antropologia dos monstros difere e muito da humana). Andrey estava anotando itens numa lista de compras: precisariam de ovos, ovos de codorna, codornas, peixe, cenouras, pedaços de porco picado, entre outras extravagâncias. Ele gostava muito de cozinhar.

            No meio disso tudo, esparramado na cama e sem pensar em nada além de seu livro de terror, estava Pedro. Ele lia com prazer histórias sobre assassinos em série, canibais, policiais aspirantes a detetives, e vários outros temas. Agora, ele lia sobre uma jovem aluna do corpo de investigação americano enviada para interrogar um canibal psiquiatra refinado demais para o gosto público. E ele mal percebeu quando, batendo a porta, o assistente do diretor o chamou a sala da diretoria. Olhando um pouco mal humorado para o chão, que agora teria de tocar, desceu da cama e arrumou-se da melhor forma que pôde. Para sua surpresa, Capivara perguntou, sem olhar para ele:

– Será que o diretor Tibérius ficou sabendo o que aconteceu ontem no refeitório?

– Claro que sim, né – Andrey respondeu por Pedro – Como ele não saberia? De qualquer forma, o Predu nunca leva bronca do velho – Andrey sempre chamava Pedro assim, era uma brincadeira entre eles.

– Que se dane, galera – Pedro comentou, bem-humorado – Provavelmente ele vai me parabenizar por ter dado aquela coça no Alexander. Só queria ter tido a oportunidade de chutar as bundas dos namorados dele.

– Não acho que essa chance vá demorar muito – Igor comentou, divertido com a possibilidade – O que me ocorre agora é o típico protocolo escolar dos novatos: o diretor tem vinte novos alunos, logo, cada um deles vai ter um guia para mostrar os arredores. Pelo que parece, dezenove já conseguiram seus guias, só resta o vigésimo. E será sua responsabilidade não assustar o coitado.

– Engraçadinho – O lobisomem retrucou, rindo – É melhor que os novatos saibam que, escola ou não, são necessárias tripas de ferro pra aguentar essa selva de corredores e alunos malucos.

            Despedindo-se momentaneamente dos colegas, ele sai da sala e caminhou devagar até o segundo andar. No meio do caminho, foi interrompido por outro incômodo, e dos grandes: Manuella. Há muito tempo a jovem lâmia de escamas negras como uma víbora tentava, de todas as formas, arrastar o lobisomem para um relacionamento tão apimentado que lhe daria úlceras. É claro, ele sabia manter ela a distância, sabia recusar e fazê-la entender que, não importa como ou quando, ele não ia cair nas voltas de sua longa cauda negra. Mas, pelo jeito, não adiantava muita coisa.

– Hey, bonitão – Ela sibilou, tentando soar rouca e provocativa – O diretor vai te dar sermão por ter arrumado briga com o Alexander?

– Desafasta, vai. Quantas vezes tenho que dizer que não me interesso por suas opiniões?

– Nossa, que cara grosssssssseiro… – Ela fez beicinho, fingindo estar magoada, mas sem tirar aquela expressão languida dos olhos – Sabe, você parece realmente estressado com isso. A possibilidade de ficar levando broncas do diretor por causa do seu mau humor… Coitado do lobinho, posso aliviar seu stress se me deixar… – E aos poucos, ela arrastava a cauda num aperto que enrolava suas pernas, e a ponta da cauda subia perigosamente para a braguilha do jeans do lobisomem.

            A esse ponto, ele se questionava por que não havia nenhum infeliz desavisado agora no mesmo corredor, que pudesse pegar essa atrevida de surpresa. Mas, como não era o caso, ele tinha de dar um jeito.

– Escuta só, sua mané: eu te conheço, entendeu? – Pedro disse, baixo e irritado – Não é a primeira vez que te aviso sobre isso… – Ele dizia enquanto saía do meio do abraço reptiliano da parte inferior do corpo de Manuella – Se eu quiser te dar uma surra por esse atrevimento, ninguém vai reclamar. Se eu quiser arrancar tua pele e fazer de tapete no meu banheiro, é capaz de me parabenizarem. Então, vê se fica na tua, que eu não vou entrar no seu rodízio. Conheço-te bem o suficiente, Manuella, então vê se não me amola.

            Ao dizer isso, ele saiu andando, pisando duro e com a expressão carregada de pura raiva. Ele detestava esse magnetismo estranho que, por vezes, exercia nas garotas erradas. Já teve de lidar com situações muito inconvenientes, mas essa maldita lâmia era persistente. E não havia desistido ainda, então ela o seguiu e o interrompeu mais uma vez, apenas para dizer:

– Um dia, lobinho. Um dia, vou fazer você ser meu e só meu. Você que me aguarde… Vou achar uma brecha nessa sua armadura. Até maaa-iiissss – Ela cantarolou enquanto coleava e arrastava seu corpo para longe, na direção oposta. E Pedro apenas cuspiu de lado numa lixeira próxima.

            Mais alguns metros e estava na sala do diretor. Respirando fundo, bateu duas vezes a porta, e a secretaria lhe disse para entrar. A senhora Ardellia Christine Greystone, uma matrona entre as velhas lobas, era a secretária do diretor desde que Pedro se lembrava, e ela já parecia velha naquela época. Ela ergueu um pouco os olhos, e sem dizer nada, apontou para a sala do diretor. E novamente, Pedro bateu a porta, ouviu um educado “entre”, e se fez presente.

– Ah, aí está você – Disse o diretor, com um tom quase paterno na voz – Fiquei me perguntando se você havia passado no refeitório antes de vir até aqui.

– Nah, eu tive um pequeno desconforto no caminho – O jovem lobisomem respondeu, puxando uma cadeira e sentando-se – Nada com o que se preocupar, eu sei me cuidar.

– Sim, como fez ontem no refeitório? – Tibérius perguntou, meio acusativo – Eu ouvi o que aconteceu, ouvi todos os lados suficientes do ocorrido. Infelizmente, não posso expulsar Alexander, o pai dele decidiu que pagaria todas as dívidas dele na escola, o pivete mal move um músculo para ajudar nas atividades da escola, e, portanto, não me surpreendo que ele tenha tentado arrumar confusão com você. Surpreende-me é que ele tenha esperado dois anos pra isso.

– Olha, sabe que eu me pergunto o porquê disso também? – Pedro confessou, intrigado. Agora que sabia que o diretor não desaprovava de todo sua atitude, podia relaxar um pouco – De qualquer forma, o cara achou que era capaz de me intimidar. Vê se pode, um lobisomem de sangue impuro…

– Bah, não se preocupe com isso. Só peço que não arranque o fígado dele, caso ele e os colegas dele decidam brigar com você – O diretor brincou, conseguindo um riso contido do aluno.

– Bem, terminadas as amenidades verbais, diretor, o que precisa de mim hoje? – Pedro perguntou, curioso.

– Bem – Tibérius começou, usando um tom de voz formal –, como você bem sabe, recebemos outros vinte alunos, os bolsistas. Já designei alunos que poderiam ser guias para mostrar os arredores da escola para eles, mas resta uma pessoa. Imagino que seu amigo, Igor, tenha conjecturado a possibilidade dessa responsabilidade – ele levantou uma sobrancelha, inquisidor.

– Acertou na mosca, diretor – O jovem respondeu, satisfeito – Bem, então mostre-me a carne fresca desses bolsistas, vai ser fácil instruir ele a se orientar por aqui.

– Sabia que podia contar com você, rapaz – O diretor respondeu – Ela foi a que melhor se saiu no concurso de literatura. Mas, o que me surpreendeu na fixa dela é que ela quase foi expulsa do concurso…

– Ué, por qual motivo?

– Bem… – O diretor fuçou alguns papéis até achar a ficha que queria – Ah, aqui está. Redcoat, Ana Maria – a esse nome, Pedro ficou atento instintivamente, e não sabia dizer o porquê – Tem 24 anos, pouco mais de 1,66 m de altura. Consta que ela não revelou, por razões pessoais, a raça a qual pertence, não que isso seja muito importante. Deixe-me ver… Aqui, durante as avaliações das histórias escritas pelos participantes, a dela foi a que mais chocou, assustou e aterrorizou os jurados, devido ao teor cru e bem detalhado da história.

– Cacete, e sobre o que era? Você tem uma cópia contigo? – O jovem lobisomem perguntou.

– Tenho, tenho sim, vou mandá-la ao seu dormitório, mas garanto que vai te dar arrepios. Eu mesmo li, e fiquei impressionado com as habilidades dela, é uma escritora nata. Devo dizer também que ela tem uma habilidade natural para descrever cenas que, ao mesmo tempo podem comover e outras que podem te fazer revirar o estômago. Por ironia, foi o filho de um dos jurados que salvou a vaga de vencedora dela. O garoto, um elfo jovem, pouco mais de 57 anos, achou os documentos do pai sobre a competição e leu, e quando leu a história dela, ficou impressionado também. Positivamente, é claro, e quando questionou o pai, censurou-o por querer desclassificar a garota.

– Nada mais justo, afinal, talento é talento. Desperdiçar isso apenas porque não tem estômago é jogar fora a chance de alguém lapidar esse talento.

– Tirou as palavras da minha boca, rapaz. Eu mandei chamar a garota do dormitório dela alguns minutos depois, assim poderíamos ter essa conversa e depois, tempo para apresentar os dois… – Ao dizer isso, ouviu uma batida na porta, suave e tímida, e ele disse – Entre, por favor.

            Nenhuma surpresa, era Ana Maria Redcoat. Agora que podia olhá-la com mais atenção e mais de perto, constatou que era muito bonita. Ela era tipicamente baixinha para uma garota (metade das garotas lobisomem tinha a altura média de 1,70 m, a outra metade era até menor). Vestia o uniforme padrão da escola, e Pedro se surpreendeu com isso: quase todos os alunos que estudavam no Instituto Acadêmico tinham permissão de customizar seus uniformes para que ficassem à vontade consigo mesmos, mas mantendo, obrigatoriamente, o brasão da Lua Cheia do lado esquerdo ou direito do peito em suas roupas.

            E, para a surpresa de Ana, o rapaz que ela via agora era o lobisomem belicoso e divertido do dia anterior, no refeitório. Ela ainda estava confusa com a diversidade dos uniformes, pois, como acreditara desde o início, os uniformes seriam rígidos e formais, até elegantes, para manter a imagem refinada de um colégio interno. Mas, ao contrário disso, ela vira uma quantidade enorme de garotos usando tênis de corrida, jeans, jaquetas com braços rasgados, blusas de moletom com capuzes, até mesmo coletes jeans com patches de bandas. E o jovem lobisomem não era diferente: usava uma camiseta vermelha com desenhos em preto, jeans preto folgado para correr, coturnos de cano alto até um pouco abaixo dos joelhos, um colete preto que, ela supôs, era de tecido de brim. E no colete estava bordado o brasão escolar: um círculo elaborado e prateado, representando a Lua Cheia, com um pequeno corte em escarlate abaixo, uma nuvem vermelha, sobre um fundo violeta.

            Enquanto eles se olhavam, com surpresa e curiosidade, o diretor pigarreou algumas vezes para chamar a atenção dos dois. Quase não conseguiu, o que o deixou preocupado, mas, mesmo assim, começou a falar.

– Senhorita Ana, sente-se por favor. Este ao seu lado é um dos nossos veteranos, de melhores notas e comportamento levemente duvidoso – Ele brincou, fazendo com que Pedro brincasse um gesto de mão displicente, como se dissesse “são seus olhos” – Pedro Fenrirsson é um dos melhores alunos do Instituto, e ele será seu guia.

– Entendo, senhor diretor – Ana respondeu, um pouco tímida, pois Pedro ainda a olhava – Eu estou feliz por ter um guia, mas, sem querer ofender, não havia outra pessoa?

– Bom, devido à quantidade de alunos na escola, e pelo que sei, metade deles está na cidade aproveitando enquanto as aulas não voltam, escolhi o de maior confiança aqui. Eu sabia que ele estaria presente.

– Entendo. Bom, fico feliz que tenha escolhido alguém de confiança – Ana confessou, suspirando aliviada.

– E como vão as colegas de quarto? – Perguntou o diretor.

– Ah, elas são legais, me deram algumas dicas sobre a escola e tudo. Não vai ser nenhum bicho de sete cabeças – Enquanto ela dizia, lançou um olhar quase imperceptível para o lobisomem ao seu lado. Pedro, é claro, percebeu.

            Até agora, ele apenas observou, em silêncio, apenas apreciando o som da voz dela. Era raro que ele ficasse admirado assim com alguém, era quase magnético. E haveria tempo para conhecer mais a garota. Só que, o que mais o deixava curioso era a natureza dela: lobisomens, por natureza, tem um faro extremamente aguçado. O cheiro dela, no entanto, era uma novidade, algo totalmente diferente. Ele já se habituara a todos na escola, sabia diferenciar um sátiro bode de um sátiro cabra ou ovelha sem precisar pensar muito. Sabia quem, dos lobisomens, era sangue puro ou impuro. Sabia mesmo dizer a idade de um elfo. Mas, ao que parece, o cheiro dela não constava no seu “catálogo aromático”, então, antes que percebesse ou que pudesse se controlar, ele perguntou em voz alta:

– O que você é…? – Num tom sonhador e distraído, ele só percebeu a gafe alguns segundos depois.

– Oh, é… Bem, eu sou uma vulpe. Não gosto de ficar falando nisso, não é nada pessoal nem complicado, posso te explicar outra hora – Ana respondeu, meio sem jeito ante a pergunta inesperada e acidental.

– Bem – O diretor falou mais alto, para chamar a atenção de ambos – Se já está tudo acertado, creio que Pedro pode lhe mostrar a escola agora. Por favor, rapaz, não assuste a menina – Ele disse, brincalhão, e Pedro conseguiu sorrir um pouco.

– Ora, diretor Tibérius, e alguma vez eu fiz diferente? – O rapaz respondeu, fazendo uma referência de um de seus filmes favoritos, levantou-se e saiu devagar, acompanhado de Ana.

            Uma vez fora da sala, eles andaram juntos sem nada dizer até chegarem ao primeiro andar, onde a maioria das salas eram dormitórios. Ela precisava ir ao banheiro, e ele esperou educadamente até que ela voltasse. E voltou. O tour pela escola teria início.

            Enquanto caminhavam lentamente, e Pedro ia explicando os detalhes curiosos a respeito dos dormitórios no primeiro piso antes, enquanto ele e Ana esquivavam-se de um ou outro aluno andando por ali, ela olhava atentamente a expressão do rapaz. Era confiante, tímida, diferente da expressão de triunfo e raiva que viu no dia anterior. E ele ia falando.

– A maioria dos dormitórios masculinos fica à esquerda, a maioria dos dormitórios femininos fica à esquerda. Por questões de saúde e natalidade – Ele brincou – É estritamente proibido que alunos do sexo masculino e do sexo feminino dividam o mesmo dormitório.

– Caraca, já teve gente que engravidou aqui?

– Sim, houve alguns casos, e por causa disso, a enfermaria da escola disponibiliza preservativos. Mas, no geral, como não dá pra segurar os coelhos pelos bagos – A forma de linguagem fez duas garotas lebres o olharem com um ar surpreso, antes de saírem correndo –, o jeito foi pôr uma regra. É complicado, mas dá resultado.

            Já no segundo piso, após subir as escadas, ele ia explicando como funcionava as divisões das salas de aula:

– Novamente, a divisão de matérias das aulas é com base na quantidade: a maioria das salas de aulas do tipo teoria ficam à esquerda, e a maioria das salas com matérias de prática fica á direita.

– Quer dizer que, por exemplo, a sala da aula de história fica à esquerda, e a aula de biologia fica a direita? – Ana perguntou, intrigada.

– Precisamente.

– Mas, espere: se a aula de biologia também tem a teoria antes da prática, então…?

– Por que ela fica à direita? Simples: só se aprende fazendo. Você só aprende como funcionam os órgãos se tocar neles, se abrir eles, depois faz as anotações, esse tipo de coisa. Da mesma forma que há o elevador de acesso à sala de mecânica.

– Elevador?

– Subterrâneo. Os professores são anões.

– Já ouvi falar nisso, preferem trabalhar debaixo da terra.

– Correto. Há, no entanto, as salas que são exceção: a sala de informática fica à esquerda, porque ela precisa da teoria junto com a prática, é complicado explicar, eu teria de chamar a professora aqui, mas quero evitar isso antes da hora. Agora vamos pegar um acesso rapidinho pro primeiro andar: quero te mostrar a sala de recreação – e seguiu andando por uma escada, assobiando uma canção animada.

            “Ele consegue ser bem volátil, pelo jeito”, ela pensou. E, por vezes, enquanto andavam, ela percebeu no comportamento dos alunos: enquanto que havia lobisomens que o cumprimentavam com um peculiar gesto circular ao redor do lado direito do peito e levavam a mão à testa, outros abaixavam a cabeça e acenavam, quase como se fossem súditos desobedientes com medo de serem castigados. Já os bolsistas, de outras raças, olhavam para ele com respeito, acenavam a cabeça, chamavam-no pelo nome, e ele respondia educadamente a todos, com um sorriso amistoso e gentil no rosto. Isso agradou Ana: ele tratava todos como era tratado, pelo menos, a grande maioria. A exceção eram aqueles lobisomens mais amedrontados.

            E enquanto se dirigiam para a sala de recreação (voltando ao primeiro piso), ela resolveu perguntar o estranho fato. A resposta, contudo, deixou-a ainda mais curiosa.

– Ah, eles são impuros – Pedro disse, simplesmente.

– Impuros? Como assim?

– Bom… Como é que eu vou explicar? – Ele coçou a cabeça, falando consigo mesmo – Bem, o que você sabe sobre lobisomens?

– Ah, bom… Prata pode matar, vocês mudam de forma humana pra lobo, são muito fortes… – Ela foi enumerando alguns detalhes, até chegar numa informação interessante – E que podem adquirir a transformação via mordida de outros lobisomens.

– Ah-ha! Sabia que você acreditava nisso! – Ele respondeu, rindo – Essa informação é falsa, ou pelo menos, metade dela é falsa. Arrisco dizer que foram as castas baixas que espalharam essa asneira só pra se sentirem acima da farofa.

– O que quer dizer? – Ana inclinou a cabeça de lado, confusa.

– Seguinte: um lobisomem puro nasce um lobisomem. Seus pais, seus avós, seus ancestrais, todos eles já eram licantropos há muito tempo. Tornar-se um lobisomem via mordida te faz impuro.

– Impuro… Então, deixa eu entender uma coisa: aqueles caras que faziam o círculo em volta do lado direito do peito e levantavam a mão para a testa, eram “puros”? – Ela perguntou, incerta.

– Acertou em cheio, garota – Ele sorriu, satisfeito com o raciocínio da garota – Esse gesto é uma tradição das antigas tribos, significa “a Lua que vive no meu coração sorri ao nosso encontro”. Alguma coisa do tipo. Já os impuros, das castas baixas, são como os cães vira-latas de sangue miscigenado e sem raça definida. Mesmo na metamorfose de lobisomem, eles se parecem com cães de rua: pêlo desgrenhado, cinzento, quase opaco e sem vida. Um lobisomem puro tem um belo casaco lupino que o identifica na sua espécie ou tribo.

– Ah, isso parece bem complexo… – Ana concordou, interessada pela pequena e improvisada aula.

– Na real nem é tão complexo. Os lobos que existem não são muitos, e mesmo esses, seus pêlos são diversificados de acordo com o DNA deles. Com lobisomens, é a mesma coisa. É como se duas árvores, da mesma espécie, tivessem suas próprias vidas e fossem diferentes entre si.

– É, faz sentido. Me diz uma coisa: você nunca viu um vulpino antes? – Ela perguntou, querendo agora que fosse sua vez de contar algo.

– Não, nunca. Acho que já ouvi boatos ou coisa assim, mas ver, nunca. Acho que já li sobre como são reclusos, e evitam contato externo, não é? – Pedro perguntou, morrendo de curiosidade.

– Sim. Temos nosso próprio país, e lá, poucos de outras raças entram. Não permitimos que muita informação saia de lá a nosso respeito, não que seja grande coisa, mas nos valemos dessa cautela. E, se quer matar a curiosidade: sou uma vulpina.

– Uma… Vulpina…? – Ele repetiu em voz baixa, imaginando coisas. Ana quase podia ver as engrenagens movendo-se rapidamente na cabeça do rapaz.

– Sim, é como as outras raças, mais próxima dos licantropos devido à biologia do corpo, acho. Eu só não gosto de ficar me mostrando, peguei esse comportamento da tradição, sabe como é.

– Ah, e como sei… Se bem que, até onde sei algo sobre minha família, minha mãe morreu de depressão quando eu era pequeno, meu pai morreu num dos conflitos no Ninho dos Mortos 1. Desde que soube isso, odeio aquele lugar e mal posso esperar pra explodir aquela merda.

– Sinto muito por isso – Ela disse, num tom amistoso.

– Não esquenta, meus pais deixaram uma quantia valorosa pra mim, e tenho orgulho de ter o sangue deles nas veias. Isso, e a estátua na praça do centro, em homenagem ao meu pai, me bastam – ele deu de ombros, sorrindo.

– Espera, quer dizer que Uther Fenrirsson é seu pai?

– Ué, não conseguiu pensar nisso pelo sobrenome? Ah, claro… Eu explico: “fenrirsson” é o nome da nossa casa, ou clã, teoricamente falando sou um líder de tribo, mas ainda sou jovem demais pelos padrões lupinos.

– Então, presumo que você vá seguir os passos do seu pai? – Ana perguntou, admirada de estar perto de uma “celebridade”.

– Quem pode saber? Agora, vamos voltar ao segundo andar, tenho que te mostrar os equipamentos das aulas.

            No segundo andar novamente, Pedro ia mostrando as salas para Ana: laboratórios de química, biologia, com seus potes de formol e animais em conserva, as salas de informática, as salas regulares de aula. A sala que mais a impressionou foi a de filosofia: ela era grande, e as carteiras estavam dispostas em três filas circulares, e ao centro via-se um quadro-negro sobre rodinhas. Aquilo, sim, parecia interessante e matéria de filosofia.

            As salas seguintes eram mais comuns, com exceção de artes e literatura: salas grandes abarrotadas de material para desenhar, pintar, esculpir, escrever, livros de referências, manequins, máquinas fotográficas, máquinas de escrever… Parecia quase um sonho estudantil ter tanto material de estudo reunido de forma tão organizada. E ainda no segundo andar, havia uma passarela de acesso às quadras esportivas: o ginásio de esportes regular, para lutas, jogos com bola, exercícios, havia a piscina para natação, e mais para a esquerda estava uma pequena academia para os alunos mais propensos a exercícios físicos.

            No terceiro andar, por sua vez, estavam os dormitórios restantes e outras salas de aula, como astronomia, medicina, etc. Em determinado ponto, Ana pediu para ver a biblioteca, e percebeu um brilho animado nos olhos de seu guia. Ele caminhou devagar, contando a história da escola, contando até algumas histórias sobre supostos fantasmas.

– Mas não esquenta, fantasmas não existem.

            À essa afirmação, Ana não tinha o que responder. Quando finalmente chegaram às grandes portas da biblioteca, Pedro parou e virou-se.

– Abra – Disse simplesmente, com um sorriso e um floreio.

            Quando Ana tocou a maçaneta, sentiu uma pequena corrente elétrica na mão. Não era desagradável ou doloroso, era algo como magia. E, ao abrir a porta, se deparou com a maior biblioteca que já vira em toda a sua vida, totalmente organizada e abarrotada de vários livros de diferentes cores, tamanhos e conteúdos. Havia poucos alunos por ali, e estavam concentrados em estudar. Pedro foi mostrando as categorias, e Ana viu-se perdida pelas possibilidades de leitura em cada prateleira. Havia computadores para pesquisa também, e a bibliotecaria (uma velha harpia coruja que mal se movia) tinha fama de dar pesadelos em quem não devolvesse os livros aos seus devidos lugares.

– Isso tudo é… Uau – Ela sussurrou, admirada.

– Minha seção favorita é de terror – Pedro sussurrou de volta, enquanto caminhavam pelos corredores de prateleiras.

– Eu gosto de ficção cientifica – Ela respondeu.

– Tipo aquelas paradas com alienigenas e tal?

– Mais ou menos isso.

– Bom, já li alguns que me agradaram. Agora bateu uma fome, mas não tô a fim de ir pelo refeitório.

– E o que tem em mente?

– Vamos voltar ao segundo andar e eu te mostro.

            Curiosa, Ana seguiu seu guia de volta ao segundo andar. Lá, ele se dirigiu ao elevador da sala de mecânica.

– Ué, a gente vai pegar comida aí?

– Espere e verá.

            Esse elevador, é claro, era o único acesso ao subterrâneo, e veio subindo e trovejando nas correntes, para levar os dois à sala de mecânica para alunos que gostavam de quebrar coisas, consertar coisas, montar coisas, forjas coisas. Uma infinidade de utilidades. E havia lá, é claro, o professor de mecânica Daeron Coração de Ferro, famoso pelos seus sanduíches absurdos,  com alguns de seus assistentes, a limpar e organizar todos os materiais. O professor cumprimentou educadamente ambos, depois lhes deu um sanduíche de mortadela com pasta de amendoim para ambos e os expulsou “educadamente” de sua sala, alegando que ela só ficaria em ordem na semana que vem.

            E os jovens, é claro, rindo a atitude rabugenta, subiram no elevador e voltaram ao terceiro andar da escola, comendo os sanduíches de gosto agridoce. Havia agora os últimos locais a mostrar para a novata: a quadra esportiva ao ar livre, o pátio externo com jardins, isso com certeza, ele acreditava, ela gostaria mais do que todo o resto. E depois da longa caminhada ao redor dos locais com cheiro de grama recém-cortada e irrigada, Ana sugeriu que se sentassem numa grande árvore ali perto, para descansar na sombra que ela produzia. E lá sentaram, descansando à sombra do grande carvalho.

            Ficaram assim, apenas aproveitando a brisa fresca sem nada dizer, próximos o suficiente para não “invadirem o espaço” um do outro, afinal, acabaram de se conhecer. Mas, ao que tudo indicava, uma química natural havia surgido entre eles. Talvez pelo jeito amistoso e educado de Pedro, ele sempre conseguia fazer amizades ou colegas com facilidade, e isso ajudava em suas relações pessoais ou interesses, especialmente com os professores menos mal humorados. Ou talvez fosse a personalidade tranquila, reservada e tímida de Ana, mas ainda assim, receptiva ao bom humor e boa educação dos outros. Fosse o que fosse, eles agora sentiam-se como se houvessem se conhecido desde pequenos, em menos de algumas horas andando pela escola para que o veterano mostrasse a escola à novata.

            Do nada, Ana decide perguntar algo engraçado:

– Por que os anões comem sanduíches de mortadela com pasta de amendoim? Não que eu esteja reclamando, só fiquei surpresa de o sabor ser bom.

– Sinceramente, eu convivo com um anão e o cara é um ótimo cozinheiro. Só que os anões valem mais quando se trata de bebidas e carnes assadas com molhos e condimentos. Os sanduíches? São sempre bizarros – Pedro respondeu, sorrindo, olhando para frente sem um ponto fixo.

– Gosto de culinária, e às vezes me meto a fazer algumas gordices. Será que isso é o pecado da gula?

– Bom, eu sinto prazer em cozinhar, sentir o cheirinho dos temperos se misturando e depois saborear minhas gororobas. Não acho que seja “pecado”, partindo da idéia de que o pecado é um crime, logo, ruim. Comer não é ruim.

– Concordo – A vulpina concordou, rindo.

– Agora, passadas as formalidades, me fala um pouco a seu respeito – O lobisomem pediu.

– Bom… Tenho 24 anos, você já deve saber algumas coisas a meu respeito.

– De fato.

– Bem, eu gosto mais de salgados do que de doces. Comer muito doce fica enjoativo demais. Também gosto de ficção científica, já devo ter mencionado, um pouco de fantasia, desde que seja um mangá ou um desenho animado que valha a pena assistir.

– Duvido encontrar um que preste, eu tô acessando a internet pra assistir os desenhos antigos, aqueles eram legais.

– A maioria, se você se refere aos anos 80 e 90. Aquela época não tinha muito dessa besteira de censurar tudo…

            E assim foram, conversando e conversando, distraindo-se e conhecendo melhor um ao outro. Mal notaram a aproximação indesejada de uma pequena plateia, liderada por ninguém menos que Alexander Maximov Blake e seus capangas lobisomens mexicanos de expressões carrancudas. O grupo ficou observando atentamente enquanto os quatro valentões andavam em direção ao improvável casal, e logo, Alexander estava próximo deles.

            Pedro interrompeu a conversa instintivamente, fingindo que estava tendo um ataque de vômito por causa de um fedor inexistente que, obviamente, era uma gozação com o perfume e cremes de cheiro doce de Alexander.

– Muito engraçado, lobinho. Muito engraçado… – Alexander grunhiu bem irritado – Achou que ia ficar impune por ter me humilhado ontem?

– Olha cara… – Pedro respondeu, entre risadas e ânsias de vômito simuladas – O único que não vai sair impune de alguma coisa aqui é vossa baixeza. Se liga, mané, não achei que fosse tão ávido por levar um chutão na bunda.

– Quem disse que eu vou apanhar? – Alexander zombou, dando um sorriso de escárnio – Rapazes… – E dizendo isso, afastou-se para trás, deixando Bruno, Artur e Gabriel liderarem a briga.

– Ora, ora, ora… – Pedro falou de lado para Ana – Não é que o Igor conseguiu prever outro acontecimento? – E com isso, levantou-se num pulo, evitando ser agarrado pelos desordeiros. E teve início a briga.

            Enquanto os três primos lobisomens tentavam golpear e acertar socos e chutes desordenados em Pedro, este apenas esquivava, desviava e movia os punhos e tornozelos dos oponentes para que eles batessem uns nos outros. A estratégia precisava de muita concentração para acertar pontos chave na musculatura deles, fazendo com que se machucassem mais do que normalmente fariam.

            Isso irritou os primos, que decidiram agir um de cada vez contra o oponente. Uma péssima idéia, diga-se de passagem. O primeiro, o maior deles, Artur, era um boxeador fracassado que fora expulso da escola de boxe por usar trapaças desleais com os oponentes. Seu treinamento e experiência com os punhos, somado à sua personalidade trapaceira, lhe garantiam certa vantagem com um lutador inexperiente ou mesmo tomado pela raiva e com o único intuito de acabar logo com a briga. Não era o caso desse oponente. Pois Pedro estudara várias técnicas de revide e contra-ataque, além de algumas artes marciais que, devidamente combinadas, formavam um arsenal assustador.

            Artur tentava acertar ganchos, jabs e socos em parafuso, e seu oponente os desviava para, em seguida, acertar tapas fortes o suficiente para estalar na pele feito golpes de chicote, que queimavam e irritavam. E funcionou: logo, Artur estava tomado pela impaciência e raiva, e dava socos a esmo, mirando a cabeça e os ombros do inimigo, ao que o lobisomem rival respondia agora com socos rápidos nas costelas e cotovelos, sempre que tinha uma brecha nos movimentos. Ao final, Artur arqueou as costas num gesto de cansaço e rendição, os braços jogados para frente e a cabeça levemente olhando pra cima, quase chorando de raiva. Pedro presenteou o inimigo com um chute poderoso de seu pé esquerdo calçado no coturno.

– Próximo…? – Ele desafiou, depois de Artur decolar três metros para trás e cair, desfalecido.

            Gabriel, o mais velho, estudara táticas de combate de exércitos como as forças especiais ucranianas, além do sombrio estilo de combate da extinta KGB, a força secreta de espionagem russa. Além disso, como seus outros primos, ele era um trapaceiro. Gostava de usar os pés, seus chutes eram famosos por terem deslocado várias mandíbulas e arrancado dentes. Agora, ele queria um colar com os caninos desse metido arrogante que derrubara seu primo.

            Quando a luta começou, Gabriel estudou um pouco o padrão de movimentação do rival. Sem sucesso: ele não assumia uma pose de combate, como as típicas artes marciais exigem. Ao contrário disso, ele andava em círculos e olhava com uma fome animal, o corpo levemente inclinado para frente como um predador. Pedro gostava disso, gostava de intimidar quem quer que se metesse a valentão, a corajoso, a agressor e bully. Gostava mais ainda de esmagar gente assim. Gabriel começou numa sequência de chutes com a perna direita, baixo, médio e alto, tentando acertar a coxa, costelas e ombro do inimigo. O lobisomem puro, por sua vez, defendia os golpes usando braços e perna como se fossem um escudo, e empurrava a perna do inimigo para desequilibrá-lo. Quando isso acontecia, ele desferia um soco logo acima do estômago, e ele podia jurar que via a pele do inimigo chacoalhar feito gelatina por dentro da roupa.

            O impuro tentava, tentava, e tentava, arriscando chutes circulares, altos, rasteiras, ao que o lobisomem puro devolvia com esse movimento de escudo de braços e perna, empurrava, e logo dava chutes curtos e fortes, que causavam dor a longo prazo. Numa dessas de usar um chute rasteiro, Pedro pisou com força no pé esquerdo de Gabriel, que gritou de dor, sentindo os ossos se romper devido ao peso do inimigo. Tentou, feito uma criança desesperada, arrancar aquele pé pesado calçado numa bota de combate, com mãos de movimentos débeis. E foi essa distração que o fez não ver o enorme soco de duas mãos que suas faces receberam, fazendo os olhos tremerem no crânio, antes de cair. Depois da queda, Pedro removeu o corpo, arrastando o inimigo desmaiado para o lado do primeiro “presunto”, voltou ao local de confronto e abriu os braços, convidativo.

            Ana olhava tudo isso com fascínio, medo, surpresa e impaciência. Ela não era muito fã de brigas de escola, já vira muitas e participou de algumas. Não era uma atividade escolar de que gostasse, mas, afinal, pelo que soube das colegas de quarto, o grupo de Alexander era mau visto por praticamente todos na escola. O diretor Tibérius não podia expulsar os alunos, seus pais pagavam muito bem, fazendo dos moleques encrenqueiros praticamente intocáveis pelo corpo docente. Mas, segundo as regras internas do Instituto Acadêmico: “se você se envolver numa briga, tente não matar o rival. Apenas ponha-o em seu devido lugar”. E Ana via que era exatamente isso que seu colega estava fazendo. E com maestria, ela tinha de admitir.

            O último dos primos hesitou alguns instantes, mas logo após receber um tapa na orelha, presente de Alexander, correu para cima do inimigo. Bruno era o maior dos três, estudara muay tay (ou box tailandês), com técnicas de luta livre e submissão do oponente. Sua estratégia seria tontear o oponente, derrubá-lo, e quebrar seus braços, fazendo-o desistir da luta. É fato que o vigor dos licantropos podia curar e bem rápido membros quebrados, mas não rápido o suficiente para que ele retornasse a briga.

            Bruno começou desferindo socos e chutes, bem equilibrados e ordenados, tentando acertar o tórax de Pedro. Este, por sua vez, voltou a apenas desviar os socos, devolvendo em socos curtos e localizados, enquanto que os chutes ele empurrava de volta, um contra-ataque eficaz que cansava os músculos do inimigo. Num momento de descuido, entretanto, o lobisomem impuro tentou agarrar Pedro, para jogá-lo ao chão: um abraço surpresa na cintura que visava desequilibrar a vítima. E o jovem lobisomem não perdoou: urrando de raiva ante a tática sorrateira, começou a socar as costas do inimigo, sem dó, com toda a força que podia, feito golpes de martelo, e quando o inimigo não soltou, agarrou-o pelas axilas, desferiu joelhadas para cima, acertando o peito dele. Então, gritou para a plateia:

– Se é um show que vocês querem, vocês o terão! – Ao que os presentes urraram em aprovação, torcendo e gritando. A surpresa de ver um único lobisomem batendo em três oponentes era uma novidade e tanto, mesmo em se tratando de Pedro Fenrirsson. Sua reputação como lutador corria pela escola, mas poucos realmente tinham visto o que ele era capaz de fazer, visto que foi ele o causador da paz tranquila sem valentões no Instituto. Até Alexander chegar, com seus cupinchas, é claro.

            O lobisomem levantou o inimigo cansado, até os ombros, virou-se de costas, olhando na direção de Ana, que o olhava com certa admiração e preocupação, e, num movimento rápido, jogou o corpo para trás. O impacto de Bruno com o chão foi um estrondo, ele deslocara os dois ombros e estava tonto, os aplausos causavam dor de cabeça.

            E Alexander, coitado, tentava calar a multidão que ele chamara para torcida, fazendo ameaças vazias e sem sentido, infantis, que beiravam o ridículo:

– Calem a boca, seus pés rapados de merda! Meu pai vai arruinar a vida de todos vocês! Calem a porra da boca! – A multidão gritou, zombando e rindo – CALEM A PORRA DA BOCA SEUS BASTARDOS IDIOTAS!

– Ei! – Pedro chamou, zombeteiro, e Alexander sentiu-se compelido a olhar – Só falta você agora. Mas duvido que seja homem, ou lobisomem, pra lutar suas próprias lutas.

– Eu vou matar você!!! – Ele gritou, correndo na direção do inimigo, sacando do bolso uma coisa que assustou a platéia de imediato: uma faca, afiada e brilhante. Mas, é claro, isso seria suficiente apenas para um breve susto. O problema é que a faca era de prata.

– Atreve-se a cometer um crime de traição contra um lobisomem de casta mais alta? – Pedro urrou de ódio, agora movendo-se para esquivar do som sibilante de corte que a faca produzia.

– CALE A BOCA! NADA DISSO TERIA ACONTECIDO SE NÃO TIVESSE ME HUMILHADO! VOCÊ NÃO MORRERIA SE TIVESSE… – Alexander não via a hipocrisia de suas palavras, e foi logo interrompido pelo rival.

– Se eu não tivesse me defendido de suas ofensas e ameaças? Se eu não tivesse sido nada além de um cordeiro de merda? Medroso e assustado?! – Com um golpe rápido, ele deslocou o pulso de Alexander e chutou a faca para longe, fazendo a multidão recuar, como se apenas chegar perto da faca de prata pudesse machucar seu couro de lobo.

            Após isso, Pedro correu para trás, pisou na árvore e subiu em vertical pela superfície de madeira (assustando Ana no processo, que olhava para Alexander com incredulidade), fazendo em seguida um giro rápido no ar. O que veio em seguida mal se pareceu com um soco: um impacto meteórico de dor, que quase arrancou o maxilar de Alexander. Por muito pouco. Perdeu cinco dentes, enquanto caía de joelhos e recebia um chute nas partes íntimas, vindo a desabar no chão e chorando. A platéia olhou aquela explosão de fúria, sem saber ao certo se ficava agradecida por Pedro ter explodido de raiva, ou com medo de que Alexander pudesse tirar outras armas de prata dos bolsos. Ou mesmo seus capangas.

            Alguns minutos se passaram em silêncio, até que a torcida de Fenrirsson se fez presente, soando como tambores de guerra numa canção que exultava sua raiva e sua fúria lupina. Ele mal notou isso, olhando aquele objeto afiado que poderia ter sido usado em alguém mais fraco, que não poderia defender-se como ele fez. Rapidamente mexeu no celular, avisou seu amigo Capivara que corresse em chamar o assistente e vice-diretor do Instituto, Lúcius. E alguns minutos depois, a enorme sombra de um corvo humanoide desceu do terceiro andar, chegando a “cena do crime”. Ele recolheu a faca em silêncio, enquanto ouvia o relato de Pedro e Ana atentamente.

            Após anotar algumas coisas numa prancheta, suspirou desapontado, e olhou com certa cumplicidade para o jovem lobisomem. Depois disse:

– Você poderia ter matado esse rapaz. Sabe disso, não é?

– Sim, vice-diretor.

– Entretanto… Ele poderia ter feito muito pior se não tivesse sido impedido. Como ele conseguiu pôr um item de prata em seus pertences…? – Perguntou-se o vice-diretor, pensando em voz alta – O diretor Tibérius vai ficar sabendo disso. Os pais dos garotos serão notificados, alertados sobre o comportamento deles. Talvez, finalmente, resulte numa expulsão. A primeira em dez anos.

– Lamento que isso possa prejudicar as verbas da escola, vice-diretor – Pedro confessou – Mas, sejamos francos: antes uma perda de verba que possa ser recuperada em longo prazo, do que uma mancha de assassinato na história da escola. Ainda mais um crime de lobisomem matando lobisomem com uma faca de prata – Disse isso em voz baixa, quase ao pé do ouvido do vice-diretor.

– Tem razão, não me anima nem um pouco essa possibilidade. Vou chamar o pessoal da enfermaria. Você e sua amiga podem ir.

            Acenando a cabeça levemente, ele chamou Ana e ambos saíram dali, enquanto o amontoado de outros alunos dispersava-se aos poucos. E no meio desses alunos, Capivara correu em direção ao amigo, quase sem fôlego de tanto correr para chegar ao local.

– Cê tava falando sério? O cara tirou uma faca de prata do bolso? – Ele perguntou, cético e curioso.

– Infelizmente, Capi – O lobisomem respondeu, enquanto os três andavam lentamente até um local onde pudessem conseguir água gelada.

– Caralho, cara… Isso é assustador. Como esse mané conseguiu uma faca de prata? Será que ele sabe das conseqüências disso?

– Duvido muito, ele tava obcecado em tentar me arruinar, e só. Pensou nele mesmo e apenas em vencer a briga.

– Esperem um pouco, meninos – Ana interrompeu, ao que os dois olharam-na – Eu sei que uma arma de prata é nociva aos lobisomens, mas por que vocês falam disso como se fosse realmente um crime tão pesado?

– Seguinte, Ana – Pedro respondeu, calmamente – Você bem sabe que cada raça de monstro do Novo Mundo possui um aglomerado de leis únicas, não é?

– Sim, mesmo os vulpes têm algumas regras que só cabem ao nosso povo. Isso quer dizer que um lobisomem usar uma arma de prata contra outro é, tipo, crime hediondo?

– Sim, precisamente. Você ouviu quando eu rugi a palavra “traição”. Pois bem, dentre as leis licantropicas, a proibição do uso de prata contra membros do Povo é considerada a mais alta dentre todas. A prata, outrora um presente de Mãe Lua, tornou-se um veneno cortante para nós, é uma longa história. Os puros não ficam muito feridos, é claro, os impuros sofrem mais com isso.

– Acredito que as mãos do Alex estejam todas ferradas – Capivara acrescentou.

– Realmente – O lobisomem continuou – E mesmo os criminosos mais baixos não usam prata contra outros lobisomens, sejam da mesma casta ou de uma superior, mesmo os mais revoltados. Isso é, como eu disse, traição. Traição pelo sangue que corre nas nossas veias, nossa herança, nossos ancestrais. Gostando ou não, eu e ele somos lobisomens, e o que ele fez vai arruinar a família dele permanentemente.

– Nossa… – Ana disse, sem saber direito o que dizer acerca dessas informações – Isso parece complicado… O ego daquele cara, ele não pensou que poderia detonar até a família dele? Mesmo eles sendo impuros?

– Pelo jeito, ele só queria afirmar sua superioridade – Pedro deu de ombros, enquanto ele, Capivara e Ana iam ao refeitório comer algo e beber algum refresco.

            Os acontecimentos do dia estavam tornando o clima abafado, talvez. Mas, fora isso, em pouco tempo, Ana conseguiu esquecer aquela briga, as conseqüências dela, e estava divertindo-se na presença do lobisomem e do orc. E, de vez em quando, ela e Pedro ficavam apenas se olhando, entre risadas bobas e piadas. Isso acalmou a ambos, e Capivara logo notou isso. Sorriu consigo mesmo, satisfeito. “Já era hora, caramba”, ele pensou.

            Mais tarde, eles despediram-se e foram cada um para seus dormitórios. No de Pedro, ele foi recebido como um verdadeiro herói selvagem. Seus amigos jogaram refrigerante de maçã em cima dele, comemorando. Não foi uma boa ideia: era o refrigerante favorito do lobisomem, e logo ele estava de mau humor, o que parecia ser ainda mais engraçado, e passou enquanto ele fingia ser rabugento e reclamão. Os amigos imploraram pelos detalhes da briga, e ao final do relato, todos eles estavam admirados.

– Eu queria ter estado lá pra ver – Heitor confessou – Quando o Capivara saiu daqui correndo, deixando o Samuca jogando sozinho, eu só fiquei imaginando. Já conhecia sua reputação de briguento, mas isso? Caramba.

– Três ao mesmo tempo… – Samuca repetia, incrédulo – Caraca, cê devia ter chamado a gente, eu teria assistido tudo com um balde de pipocas.

– Cê sabe que eu não gosto de pipoca – Pedro retrucou, rindo.

– Ah, vai saber? Aliás, o que você usou nos caras? Sambô ou Glíma?

– Uma combinação de tudo o que eu já aprendi, não usei um estilo de luta específico.

– Bem pensado – Igor entrou na conversa – De todos aqueles games de luta que você adora, imaginei que fosse fazer algo como Def Jam Fight for New York. Aquilo dá um leque de possibilidades.

– Nem me fale – Lincoln disse – Ele me forçou a jogar aquilo por horas a fio, eu aprendi alguma coisa, mas não tenho tempo – ou inimigos – pra aplicar na vida real.

– Que? Não dá pra usar os bonecos da academia de exercícios? – Andrey perguntou.

– Eles não revidam – Lincoln respondeu, e todos riram até a barriga doer.

            Jogados nas almofadas e pufes do quarto, decidiram que era melhor jogar algum dos videogames deles pra manter o clima. E ficaram assim por horas e horas, rindo e comendo besteiras.

            No quarto de Ana, as três garotas queriam logo saber o que acontecera. E ela contou tudo, cada detalhe, explicou que o rapaz licantropo havia sido escolhido para mostrá-la a escola, seus corredores, salas, etc. Depois, que ambos saíram juntos ao pátio externo, apenas para jogar conversa fora. E depois teve início o conflito entre o galante anti herói licantropo e os quatro valentões impuros. A cada descrição, Judy suspirava, sonhadora. Em certo momento, Ana perguntou:

– Tá tudo bem com você?

– Ah, só estava imaginando a sorte que você teve ver cinco lobisomens se atracando, um deles defendendo você

– Ah, pára. Eu até admito que gostei de ver o Pedro lutando, ele é muito bom. Mas detesto brigas, odeio esse tipo coisa.

– Vai me dizer que não ficou admirada com os músculos deles? – Judy recebeu um tapa na nuca de Vivi.

– Você é uma tarada, sabe disso. Eles estavam usando roupas, não tinha nada de músculos desnudos feito estátuas gregas – Vivi reprendeu-a, depois do tapa.

– Bom, o Pedro usava mangas curtas. Mas, sério, no meio de uma briga, parar pra olhar os corpos dos caras não é a melhor idéia – Ana disse, rindo da cena.

– Imaginem se eles estivessem nus e cobertos de óleo… – Judy suspirou, sonhadora, levando outro tapa de Vivi, acompanhado dessa vez de um tapa de Elise também.

– Para com essa merda, garota, você é virgem e fica aí, fantasiando essas loucuras. Vai assustar a garota nova – Disse a fada, censurando o comportamento da fauna.

– Sei, como se eu fosse pior do que aquela maldita víbora.

– Víbora? – Ana perguntou.

– É, Manuella Poisonheart. A maior vagabunda da escola – Respondeu a fauna.

– Vai por mim, Ana – Vivi disse – Se tiver a chance de conversar com ela, perca a chance sem pensar duas vezes.

– O que tem de errado com ela?

– Ela é uma lâmia – Elise respondeu – Raramente as lâmias são confiáveis. Os naga, machos da espécie, até que são bacanas. Mas, em especial, a Manuella é a pior. Metida, arrogante, se acha super erótica e sexy, com cabelo preto cacheado e lábios carnudos…

– Que escondem a língua de cobra daquela vadia – Judy deixou claro sua opinião.

– … Além das escamas pretas e reluzentes da cauda de víbora – Elise continuou, ignorando o comentário da fauna – Sem mencionar que a garota é bem rodada na escola.

– Cacete – Foi tudo o que Ana conseguiu dizer.

– E Pedro odeia ela com força total, só não agride ela por ter esperança de que ela largue do pé dele.

– Eu fiquei sabendo do motivo, descobri dias atrás – Vivi, a felina comentou animada – Até onde sei, ela é desandada a fazer esses feitiços wicca, e tentou fazer um feitiço de amarração no lobisomem. Não preciso dizer que deu errado, não é?

– Ele era imune ou coisa do tipo? – Judy perguntou, curiosa.

– Parece que sim, não tenho certeza. Só que, depois disso, ele passou a evitar ela a todo custo. Dá pra ver nos olhos dele a repulsa… Antes eram amigos, ele sabia da vida pessoal “agitada” dela com os caras da escola. Depois disso, ele treme de nojo quando ela fica por perto.

– Caraca, e ela ainda quer pegar o lobisomem? – Ana perguntou, curiosa.

– Pelo jeito, sim. De todos os caras na escola que ela já traçou, ele é o único que ela não conseguiu pegar. Garoto de sorte ele… – Judy resmungou, chateada. Provavelmente queria que ela fosse a sortuda de ter aquele “deus lupino” com ela.

– Chega, sua pervertida – Disse Vivi – Vamos dormir, entenderam? Amanhã vai ser um sábado tranqüilo, vou levar você, Ana, ao centro da cidade, pra fazer compras. Se quiser, vai poder customizar seu uniforme.

– Obrigada, tomara que seja divertido – Ana respondeu, animada com a possibilidade. Suas colegas de quarto pareciam legais, então seria bom ter amizade com elas.

            Apagadas as luzes, as meninas foram para suas camas, e caíram no sono, uma a uma, sonhando com seus desejos interiores de um sábado tranqüilo.

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