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Longe do Que Eu Deveria Querer

Eu não saí de casa naquela noite. Não podia. Não depois do que aconteceu no quiosque. Minha cabeça tava um caos, um redemoinho de pensamentos que eu não conseguia organizar. O beijo. Aquele beijo. Eu ainda sentia o gosto dele na minha boca, o calor da mão dele no meu rosto, o jeito que ele me puxou como se eu fosse dele.

Cayo.

O nome dele tava grudado em mim como o cheiro de gasolina que parecia vir dele, misturado com cigarro e algo que eu não conseguia nomear. Algo perigoso. Algo que eu sabia que não deveria querer, mas que, droga, eu queria.

Estava na varanda da mansão, sentada numa poltrona de vime, olhando pro mar escuro que brilhava com o reflexo da lua. As meninas — Mari, Bia e Lú — tavam eufóricas, se arrumando pra sair. Elas tinham combinado de encontrar os amigos do Cayo numa festa na praia, provavelmente algum rolê barulhento com funk e cerveja barata.

Exatamente o tipo de coisa que minha mãe teria um infarto se soubesse que eu estava considerando. Mas eu não ia. Não podia. Não depois daquele momento no quiosque, quando ele me beijou e o mundo pareceu virar de cabeça pra baixo.

— Analu, você tá mesmo ficando? — perguntou a Bia, enquanto passava um gloss brilhante nos lábios e ajustava o vestido curtinho que mal cobria as coxas. — Sério, gata, vem com a gente! O Juninho disse que vai ter um som foda, e os caras são legais. Nada de ficar aqui mofando com o Humberto.

Eu forcei um sorriso, balançando a cabeça.

— Tô de boa, Bia. Tô cansada. E, sabe, não é meu rolê. Vocês vão, se divertem, e amanhã me contam tudo.

A Mari, que tava colocando um salto alto que gritava "olhem pra mim", riu alto.

— Analu, você tá muito séria. Relaxa! É só uma noite. E aquele cara, o Cayo, ele te olhou com uma cara... menina, ele tá na tua. Aposto que se você for, ele não desgruda.

— Não, obrigada — respondi, seca, tentando não deixar transparecer o quanto o nome dele me fazia tremer por dentro. — Ele não é meu tipo. E, sério, vocês não acham meio... sei lá, fora da curva? Esses caras não combinam com a gente.

A Lú, que tava mais quieta, mas com um brilho nos olhos que denunciava a empolgação, deu de ombros.

— Eu acho que é só diversão, Analu. Não é como se a gente fosse namorar eles. Mas o Vitinho é fofo, e ele dança bem. Por que não?

Eu suspirei, mexendo no copo de água com gás que tava na minha mão. Elas não entendiam. Não era só sobre o Cayo ser "diferente" ou de outro mundo. Era sobre como ele me fazia sentir. Como ele me olhou com aqueles olhos castanhos, intensos, como se pudesse ver através de mim. Como se soubesse que, por trás da fachada de menina perfeita, tinha uma Analu que queria gritar, quebrar as regras, ser livre. E aquele beijo... meu Deus. Foi como flutuar. Como se, por um segundo, eu tivesse esquecido quem eu era. Quem eu deveria ser.

— Divirtam-se, meninas. Mas cuidado, tá? E não bebam muito — falei, tentando soar como a voz da razão.

Elas riram, me chamaram de "mãe" e saíram, deixando um rastro de perfume caro e risadas.

Fiquei sozinha na varanda por uns minutos, até que o Humberto apareceu, trazendo uma caixa de pizza que a gente tinha pedido. Ele tava com aquela camisa polo impecável, cabelo penteado pra trás, cheirando a perfume importado. Tudo nele era... perfeito. Exatamente o que meus pais queriam pra mim. O tipo de cara que não causava problemas, que não bagunçava minha vida.

Mas, enquanto ele abria a caixa de pizza e falava sobre o jantar beneficente que a mãe dele tava organizando, eu não conseguia prestar atenção.

Minha cabeça tava no Cayo. No jeito que ele sorriu quando me chamou de "gata". No jeito que ele se inclinou, com aquela confiança de quem não tem nada a perder. No cheiro de gasolina e cigarro que, por algum motivo, parecia mais real que o perfume caro do Humberto. E no beijo. Aquele beijo que me fez flutuar, que me tirou do eixo, que me fez sentir algo que eu não queria admitir. Algo que eu não podia querer.

— Analu, tá tudo bem? — perguntou o Humberto, me puxando de volta pra realidade.

Ele tava cortando a pizza com um cortador chique, como se fosse um jantar gourmet.

— Você tá meio distante.

— Tô de boa — menti, pegando uma fatia de pizza de mussarela. — Só cansada. O sol hoje tava forte, sabe?

Ele sorriu, aquele sorriso branco e perfeito que parecia ensaiado.

— Sei como é. Mas, olha, amanhã a gente pode ir pro barco do meu pai. Só eu, você e uns amigos. O que acha? Vai ser incrível.

— Parece legal — respondi, sem entusiasmo.

Ele não notou. Humberto nunca notava. Ele era o tipo de cara que achava que tudo tava sempre perfeito, que eu tava sempre feliz, que a vida era um comercial de margarina. E eu deixava ele pensar assim. Era mais fácil.

A gente comeu a pizza na sala, com a TV ligada num canal de música que tocava umas baladas pop que eu nem gostava tanto. Ele falava sobre a faculdade de Direito que ia começar, sobre como o pai dele tava orgulhoso, sobre como a gente podia viajar juntos no próximo verão. Eu assentia, sorria, fazia o papel de sempre. A Analu perfeita, a filha perfeita, a namoradinha perfeita. Mas por dentro, eu tava em outro lugar.

Eu pensava no Cayo. No jeito que ele me olhou no quiosque, com aquele sorriso torto e aquele ar de quem não liga pra nada. No jeito que ele me desafiou, como se soubesse que eu tava morrendo de medo de sentir algo por ele. No jeito que ele me beijou, com uma urgência que me fez querer mais, mesmo sabendo que era errado.

Errado porque ele não era do meu mundo. Errado porque minha mãe teria um ataque. Errado porque eu sabia que, se eu me deixasse levar, tudo que eu construí — ou que meus pais construíram pra mim — podia desmoronar.

Mas e se eu quisesse que desmoronasse?

O Humberto se aproximou, passando o braço pelos meus ombros.

— Analu, você tá linda hoje. Quer saber? Acho que a gente combina demais. Minha mãe sempre fala que você é o tipo de garota que qualquer cara sonharia em ter.

Eu sorri, forçado.

— Valeu, Humberto. Você é um fofo.

Mas enquanto ele falava, minha mente voltava pro Cayo. Pro jeito que ele me chamou de "princesa" com um tom que era meio provocação, meio admiração. Pro jeito que ele parecia não se importar com o que eu representava — a riqueza, a aparência, o sobrenome.

Ele me via. Ou pelo menos, era o que parecia. E isso me assustava. Porque ninguém nunca me viu de verdade. Não a Mari, não a Bia, nem mesmo o Humberto. Eles viam a Analu que eu mostro pro mundo. Mas o Cayo... ele parecia ver além.

O celular dele tocou, e ele se levantou pra atender, me deixando sozinha na sala. Peguei meu copo e fui pra varanda de novo, precisando de ar. O som do mar era calmante, mas não suficiente pra apagar o que eu tava sentindo. Eu queria odiar o Cayo. Queria achar ele um grosso, um cara qualquer, alguém que não merecia meu tempo. Mas eu não conseguia. Aquele beijo tinha mexido comigo de um jeito que eu não explicava. Era como se, por um segundo, eu tivesse sido livre. Livre de ser a Analu perfeita, a filha dos Bernardes, a garota que nunca erra.

Ouvi as meninas voltando de madrugada, rindo alto e tropeçando nos saltos. Elas entraram na casa falando sobre a festa, sobre como o Léo, que era engraçado, como o Juninho dançava bem, como o Vitinho tinha beijado a Lú num canto da praia. Eu fingi que tava dormindo no sofá, com o Humberto do meu lado, assistindo a um filme que eu nem lembrava o nome. Não queria falar sobre a noite. Não queria contar que, enquanto elas tavam dançando com os motoqueiros, eu tava pensando no Cayo. No cheiro dele, no olhar dele, no beijo que ainda queimava nos meus lábios.

— Analu, acorda dorminhoca, você perdeu! — disse a Mari, jogando uma almofada em mim. — A festa tava insana. E sabe quem tava lá? Aquele cara, o Cayo. Ele perguntou de você.

Meu coração disparou, mas fingi indiferença.

— Sério? Bom, ele que pergunte. Não é como se eu ligasse.

Ela riu, mas não insistiu. O Humberto me olhou, curioso, mas não disse nada. Melhor assim. Ele não precisava saber. Ninguém precisava saber.

Deitei na cama mais tarde, sozinha no quarto gigante, com o ventilador de teto girando devagar. Fechei os olhos e vi o Cayo. A cicatriz na sobrancelha, o sorriso torto, a mão no meu rosto. E o beijo. Aquele beijo que me fez flutuar, que me fez querer algo que eu não deveria querer. Algo que eu não podia ter.

Mas e se eu pudesse? Só por um momento?

A noite passou, e eu não dormi direito. O som do mar lá fora parecia me chamar, como se soubesse que eu tava lutando contra algo maior que eu. Contra ele. Contra mim mesma. E, no fundo, eu sabia: Angra não ia me deixar sair ilesa. Não enquanto o Cayo estivesse por aí, me olhando como se pudesse mudar tudo.

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