Era cedo. Nas escadarias da grandiosa Mansão Mantovani avistei Liam, meu primo, com um espalhafatoso casaco de pele sintética imitando leopardo por cima de uma camiseta que nem era dele, e calça jeans.
Desci do carro, contornei e abri a porta. Ele desceu a escada, saltitante, e o perfume doce e feminino invadiu minhas narinas. Oh, Liam!
— Que parte de seja discreto você não compreendeu?
— Estou sendo discreto, meu querido, porque se eu não fosse eu mesmo ao sair de casa, todos desconfiariam! Meu noivo seria acionado e tchau, tchau, operação secreta. — Piscou os olhos cheios de máscara de maquiagem e ficou nas pontas dos pés, estalando um beijo morno em meu rosto, por entre os fios loiros da barba. Liam entrou no carro e eu bati a porta, respirando fundo.
Contornei o carro e me sentei no volante, bati a porta, o cinto passou por nossos corpos e Liam espreguiçou-se, colocando os braços para cima.
— Hm, para onde vamos?
— Sarajevo.
Vi quando meu primo arregalou seus olhos azuis e sua expressão passou de divertida para realmente preocupada com a minha sanidade mental.
— Oh, Ben. — Revirou os olhos e resfolegou, eu acelerei o carro e contornei a fonte da fachada da mansão, tomando caminho para os portões. Os guardas acenaram. — Isso é… loucura.
— Farei um resumo, ok?
— Vamos, me entretenha!
— Daniel morre e é enviado para a Espanha, onde seu caixão é interceptado pela AEES. Ao mesmo tempo, um clone é acionado em seu lugar, Daniele Di Mallo, que mais tarde é rastreado pelos meus pais.
— Certo, essa parte eu tou sabendo. Nero ficou com ele.
— Você também, né, Liam?!
— Ei, você disse que ia dar um jeito na situação e não deu. — Voltamos à mesma discussão.
Liam me deu aquele olhar ardido que eu detestava receber dele. Eu gosto mesmo, de verdade, do meu primo e considero sua amizade especialmente valiosa. Não apenas isso, meus primos são tudo o que eu tive como família e se não tivesse descoberto meus irmãos, certamente seriam apenas eles pelo resto da vida. Não vai ser uma foda mal resolvida que ficará no nosso caminho e eu apenas não queria que Liam me culpasse pelo fim de seu relacionamento com Nero.
— Passa uns meses para frente. Daniele está em desprogramação com os médicos mais treinados da Giostra… Mas começa a entrar em colapso. Segundo Nero, um computador repetidor de sinais está enviando dados para Daniele, confundindo sua mente, reprogramando-o.
— Pobrezinho.
— Ele ataca esse computador, destruindo-o, gerando um curto-circuito extremo e a AEES explode.
— Sério? — Liam pareceu genuinamente interessado e ergueu bem as sobrancelhas, surpreso com as atitudes de Nero, mas bem, talvez ele já soubesse, até muito antes de mim, que Nero tem sentimentos verdadeiros por James.
— Não foi o fim da AEES — logo avisei, para ele não pensar que estávamos livres disso. — Mas durante o incêndio um clone escapa, com memórias vívidas de si mesmo, e procura Matthew Clark, seu treinador.
— Quem é Matthew Clark?
— Um dos clones de Daniel.
— Oh! — Liam arregalou mais uma vez os olhos e cobriu a boca com ambas as mãos. — E achou?
— Não. Tecnicamente, Matthew Clark está morto. Meus pais emitiram um atestado de óbito, quando Daniel morreu. Eles eram a mesma pessoa naquele momento.
— Hm, e isso garante a morte de Daniel.
— Mas a AEES roubou o caixão, lembra? — Tamborilei os dedos, cantarolando o meu ponto de vitória.
— Oh, é mesmo.
— E esse agente clone, chamado MKD, Matthieu, reencontra com Camilo, ex-marido de Matthew.
— Daniele, Daniel, Matthieu, Matthew, argh!
— Exatamente, os nomes são especialmente para causar confusão.
— Pra quê?
— Para esconder a verdadeira identidade de um deles, para confundir as pessoas e a própria AEES — expliquei, mas Liam abanou a mão, incapaz de me acompanhar. Respirei fundo.
— Tá, vamos, continue. — Liam cruzou os braços e eu girei o volante, acessando a estrada que nos levaria ao aeroporto. — Mathieu foge da AEES, procurando por seu Treinador, e encontra Camilo.
— Na mesma época, você ajudou Daniele a fugir da Itália, pela rota da Espanha.
— Sim, ele queria muito ir, parecia nervoso, disse que ele e Nero estavam se desentendendo.
— Lembra que ele era surtado, Liam. Daniele apenas não se lembrava de que ele e Nero combinaram apagar a mente dele e colocar outra coisa no lugar, um arquivo chamado Kyle, que seria sua nova identidade e sob a qual Nero pretendia protegê-lo.
— Oh, sim, certo. Não sabia desses detalhes, estava mais preocupado em esquecer Nero, perdoar Daniele e claro, namorar com Dante! — Liam mesmo sabe que ele é muito orgulhoso e egoísta, que bom. Eu queria ter domínio da minha psiquê como ele tem da dele, francamente. Troquei a marcha e dei uma risadinha. — Não me julgue, Dante é um daddy e tanto.
— Certo, poupe-me dos detalhes — pedi. Liam abanou a mão, mas ele me pouparia. — Daniele, ou James, como é o nome dele verdadeiro...
— Oh, James? — interrompeu rindo.
— James Blackwell.
— Ótimo, tem um nome. — Cruzou os braços e revirou os olhos com entojo, ainda magoado com o fato de que Nero tinha se esforçado tanto por outro homem. — E aí? James foi pra Espanha e Matthieu estava lá com Camilo, eles se encontraram?
— Não, não se encontraram. Suspeita-se que James sofreu um recall. É como chamam quando é enviado para um agente o pacote de ordem que o faz retornar para a AEES. Ele foi reavido pela agência, para ser terminado do projeto.
— Oh, pobre!
— E Matthieu cruzou com ele lá na AEES… Até que Nero, bravo com tudo e desesperado, bombardeou o computador que enviava os sinais, deu um curto-circuito e…
— Buuuum! — Encheu as bochechas de ar, de um jeito que considerei gracioso. — Todos fugiram?
— Não se sabe, mas Matthieu encontrou Camilo e, na mesma época, eu tinha ido para a Espanha, atrás do cartão que Daniele me enviou. Benício, meu irmão, descobriu uma compra de um rifle potente no nome de Matthew Clark, eu pensei que era Daniel.
— Mas não era.
— Era Matthieu, usando o nome de Matthew, o marido de Camilo.
— Tá, tá, mas isso não comprova que Daniel morreu?
— Acontece que Benício também descobriu um documento recente da AEES em relação a Matthew, ou KLD, como o chamam por lá, que ele foi reavido pela AEES na mesma época em que houve o tal incêndio.
— E você está convencido que no lugar de Matthew, foi Daniel quem foi recuperado, certo?
— Certo.
— Faz sentido. Trevor sempre sustentou essa ideia, de que Daniel estava vivo a menos que o perfil dele do fórum de atiradores na Deep Web fosse apagado.
— É, por isso vamos para Sarajevo atrás de Trevor e você vai me ajudar a arrancar o que ele sabe. — Sorri. Liam estalou os dedos e devolveu o sorriso, ele adora uma tortura interrogativa. — Trevor vivia cochichando com Daniel em Nápoles, eu tinha ciúmes, admito, mas recentemente descobri que Daniel já sabia que era um clone do projeto quando veio para Nápoles.
— Hm, que interessante e complicado. Sempre achei que Daniel tinha vindo para reatar com você, mas por causa de Anna, bem, e por causa de Nero, as coisas saíram do controle.
— Daniel veio para Nápoles para se despedir e colocar um fim no Projeto Gato Preto. Ele ia fugir e desaparecer com a ajuda dos meus pais.
— Seus pais se confundiram com Daniele, achavam que era ele.
— Se confundiram? Ou sabiam exatamente o que estavam fazendo, nos distraindo do paradeiro real de Daniel? Dentro de um caixão, sendo enviado para a AEES com o nome de outra pessoa!
— Espere… Não faz sentido, eles foram contratados para proteger Daniel e não mandá-lo de volta para a AEES — Liam rebateu a questão, me dando um olhar de dúvida dentro do carro. Naquela altura, já estávamos perto do aeroporto e era possível ver diversos aviões. Meu coração acelerou ao ver que Liam estava me acompanhando. — Há o código de Honra da Giostra. Seus pais nunca entregariam um cliente.
— Por isso mesmo que eles não entregaram um caixão contendo Daniel. Entregaram um caixão contendo uma pessoa que morreu antes, muito antes. Matthew Clark. O marido de Camilo. Daniel ainda ficou em Nápoles por um tempo, cuidando dos assuntos dos meus pais.
— Estou chocado. — Liam abriu a boca e cobriu com uma das mãos.
Dei um tempo para ele absorver toda aquela informação, afinal, todos precisávamos de um momento para pensar em quão calculista, estratégico e esperto Daniel tinha sido em Nápoles.
— Por esse motivo o agente que estava na Itália, Daniele Di Mallo, sofreu recall para a Espanha, e outro agente, Matthieu — sem sobrenomes —, foi acionado para assumir a missão antes interrompida.
— Seus pais revelaram sobre Daniele, quer dizer, James, naquele enterro, para te despistar do verdadeiro paradeiro de Daniel, que foi desviado da AEES.
— Por isso não adianta eu ir lá, ligar para eles, né? Nunca vão me contar a verdade, onde Daniel está… Talvez, nessa altura do campeonato, eles não saibam. Daniel sabe desaparecer, ele já fez isso antes.
— Trevor sabe de algo e eu vou descobrir o que é. — Liam bateu o dedo indicador no queixo, ele estava intrigado e eu podia ver seus olhos estreitando, calculando toda a situação. — Filho da puta, Daniel é bom, muito bom, Benito!
— Eu disse a você que ele é.
— Quando você viu Daniele…
— James.
— Tá, James, que seja. Quando viu James, você achou que ele era Daniel. Até brigou comigo, ficamos meses sem nos falar.
— Sim, eu achei, quer dizer, eu vi que tinha algo de diferente e acionei vários contatos para investigar, mas até ontem eu estava andando em círculos. Porém, quando transei com James em Bologna, vi sua tatuagem, aqui na orelha, sabe… É tão diferente da de Daniel, que eu tive certeza. Mas até então pensava mesmo que Daniel estava morto… Transei com o clone dele só para encerrar aquela questão. Entretanto, no dia do meu casamento Benício descobriu que ele havia sido recuperado pela AEES.
— Certo. Mas não faz sentido. — Liam balançou a cabeça, esparramando seus cabelos castanhos para os lados. — Se tem essa tatuagem, por que a AEES não percebeu que era a tatuagem de outro agente no corpo que foi fechado para um caixão?
— Aí que está, Liam. Daniel é uma incógnita e sua identidade permanece um mistério, acho que ele não tinha um número de série, uma tatuagem. Nunca teve! A vez que ele foi a campo, foi com a identidade de Daniel Kovaliev no lugar de Matthew Clark, que era o agente original designado para o papel e ele tinha a mesma tatuagem de Matthew por isso. Ele deve ter recebido a tatuagem idêntica à do ex-marido de Camilo nessa época.
— Dois homens, uma mesma identidade. Isso é loucura.
— Camilo relatou que seu marido foi enviado para a missão e voltou como sendo outra pessoa… Com comportamentos diferentes, entende? Camilo está convencido: o homem que voltou da Operação Navio Fantasma era idêntico ao seu marido, inclusive a tatuagem, mas não era seu marido. Ele está convencido de que Matthew foi morto como uma pária e Daniel foi colocado em sua casa, até disse que Serban aumentou seu interesse, ia na casa deles visitar.
— E por quais motivos?
— Boa pergunta. Ninguém sabe.
— Então tem um agente que assumiu diversas identidades, mas que não tem nenhuma?
— Exatamente. Esse agente é o Daniel, ou seja lá qual for o nome dele, aff. O meu Daniel.
— Seu, né. — Liam esticou as sobrancelhas e riu debochado. Olhei torto para ele. — Benito, pelo amor de Deus, se a gente for até Sarajevo e Trevor souber onde esse agente está, você tem que me prometer que ele vai ser mesmo o seu Daniel, porra. Que você vai tomar posse, caralho. Não vou testemunhar você fazendo as merdas que fez, todas de novo.
— Não estaria indo até Sarajevo se não fosse com essa intenção, Liam. Daniel morreu nos meus braços e minha vida é um inferno. Você tem razão, aquele 1% vale mais que os 99% que eu tenho hoje. Você tem razão.
— Ei, peraí! — Ele alcançou o celular no bolso e abriu o visor, deixando uma foto sensual de Dante à mostra. Não gostei de ver, mas se meu primo se dizia apaixonado, eu respeitaria. — Fale aqui, quero colocar isso como o seu toque personalizado, para que toda vez que você me ligar eu escute você admitindo que eu tenho razão!
— Ai, Liam!
— Vamos, fale, Benito, fale. — Colocou o celular na minha frente.