O sol ainda não havia nascido quando Camila despertou com um sobressalto. Não tinha sido um pesadelo — tinha sido uma lembrança. A mesma que retornava sempre que ela dormia em algum lugar que não conhecia. A mesma que pressionava seu peito desde a infância.
Ela se sentou na cama devagar, respirando fundo. O quarto que Adrian preparara para ela era confortável, silencioso, espaçoso. Mas nada disso aliviava o peso que ela carregava. A mansão era grande demais… silenciosa demais. E silêncio sempre foi um problema para Camila.
O silêncio fazia ecoar o passado.
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Camila cresceu numa casa pequena na periferia, onde o grito do pai era mais forte que o vento do lado de fora. Ele bebia. E quando bebia, batia. Na mãe, nos irmãos, nela. Cada dia era um campo de batalha, e cada segundo tinha o peso da incerteza:
Quando ele vai explodir? Quem ele vai machucar hoje?
Aos quinze anos, quando a mãe finalmente criou coragem para fugir, Camila ajudou a empacotar as poucas roupas e correr com os irmãos para a casa da avó. Mas a paz durou pouco. A avó morreu dois meses depois, e a mãe não aguentou a pressão, afundando em depressão.
Camila, mesmo tão jovem, assumiu tudo.
Três irmãos menores para alimentar.
O trabalho de diarista que pagava quase nada.
E o medo constante de que o pai descobrisse onde estavam.
Aos dezessete, ela teve que abandonar a escola. Aos dezenove, perdeu a mãe. Tragicamente, abruptamente. A vida a espremeu contra a parede até a coragem virar a única arma.
E agora, aos vinte, ela estava ali — numa mansão que parecia longe demais do mundo que conhecia. Mas não era segurança. Era apenas um lugar diferente para lutar.
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Camila caminhou até a porta e, antes de descer, olhou-se no espelho.
Os olhos castanhos, escuros como a madrugada, ainda carregavam a menina assustada que ela foi… mas havia algo novo. Determinação.
— Você está aqui por um motivo — murmurou para si mesma. — É só trabalhar. O resto… você dá um jeito.
Mas o “resto” tinha nome.
E olhos que viam demais.
E voz que mexia com partes dela que nunca deveriam ser tocadas.
Adrian Verdan.
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Quando ela chegou à sala de brinquedos, Lucas ainda dormia na poltrona, encolhidinho como alguém que tinha medo de ser esquecido. Ela se aproximou devagar, tocando seu cabelo com carinho.
— Você merece mais do que solidão — sussurrou.
Assim como ela.
De repente, uma voz grave rompeu o ar:
— Ele dormiu aqui a noite toda?
Adrian.
Camila virou-se devagar. Ele estava na porta, impecavelmente vestido, como se já estivesse desperto há horas. Os olhos dele pousavam em Lucas com um misto de culpa e… medo? Não. Adrian não parecia alguém que sentia medo. Mas algo nele rachava quando olhava para o próprio filho.
— Ele ficou com medo de dormir sozinho — explicou Camila. — Então eu fiquei aqui com ele até pegar no sono.
Adrian assentiu, embora seu rosto permanecesse rígido.
— Você não precisava fazer isso.
— Ele precisava — Camila corrigiu, baixinho.
O olhar dele se estreitou.
Avaliação.
Interesse.
Irritação contida.
— Não é seu trabalho ser um escudo.
Camila respirou fundo.
— Então qual é, senhor Verdan?
Adrian a encarou por um longo segundo. Um muito longo.
— Não sei — ele finalmente disse. — Eu ainda estou descobrindo.
Foi a primeira vez que Adrian pareceu… humano. E vulnerável.
Mas Camila conhecia esse tipo de vulnerabilidade. Era a mesma que o álcool arrancava do pai antes de ele se tornar um monstro.
Ela não sabia se podia confiar.
Mas também não conseguia se afastar.
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Mais tarde, enquanto preparava o café da manhã, Camila refletia na estranha sensação dentro dela. Aquela casa enorme, rica e fria despertava memórias dolorosas. Como se ela tivesse voltado para um lugar onde precisava vigiar cada passo, cada respiração. Mas ali havia algo diferente.
Ali havia Lucas.
E havia Adrian, que a desconcertava de formas que ela evitava admitir. Ele a olhava como se estivesse tentando decifrar algo… algo que ele não queria reconhecer.
Camila sabia ler pessoas. A vida a obrigara a isso. E Adrian tinha aquela dureza típica de quem perdeu demais. Mas também tinha um perigo silencioso: ele podia machucar sem levantar um dedo. Podia destruir com palavras. Com ausência. Com poder.
E ela?
Ela sempre fugiu de homens assim.
Mas algo nela — algo que ela odiava — queria entender aquele homem quebrado. Queria descobrir por que ele construíra muros tão altos. E queria saber o que aconteceria… se alguém ousasse atravessá-los.
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Quando Lucas entrou na cozinha, sorrindo como se o mundo tivesse finalmente um pouco de luz, Camila se abaixou para abraçar o garoto.
— Bom dia, meu pequeno.
Ele se agarrou ao pescoço dela com força, como se tentasse se encaixar num lugar que sempre foi seu.
E Adrian, parado na porta, assistiu à cena com algo que queimava por dentro dele.
Ciúme?
Desejo?
Dor?
Camila não sabia.
Mas seu corpo soube. Seu coração soube.
Sentiu o impacto daquele olhar atravessando-a como um raio silencioso.
Ali, naquele instante, ela entendeu uma coisa:
A mansão Verdan tinha dois tipos de sombras:
as que ela trouxe consigo.
e as que ele guardava trancadas.
E todas elas… estavam prestes a se misturar.