Capítulo Quatro

A noite era impenetrável. Embora eu me sentisse exausto, era como se nenhuma parte de mim estivesse disposta a descansar. A cama rangia a cada movimento inquieto, o que já parecia estar durando horas. Eu sabia que a manhã chegaria e eu precisaria estar de pé, mas por mais que tentasse desligar a consciência, um pedaço dela continuava funcionando a todo vapor.

Meus olhos se adaptaram muito rapidamente à pouca luz, que entrava no quarto através da janela e que vinha de um dos postes na calçada. Eu conseguia discernir o contorno da mancha que havia no teto, bem na direção do meu olhar, e a encarava por uma eternidade.

Quando mais novo, eu costumava ter pesadelos, razão pela qual, por tantas vezes, recusara-me a me deitar. Com os anos, eles foram se tornando menos frequentes. Agora minha maior dificuldade não era me manter na cama, mas essencialmente dormir. Em pensamento, os acontecimentos do dia eram revividos num vício cíclico. Horas insones já se tornavam costume.

Lembrava-me das palavras da minha irmã, garantindo ao pai que os olheiros a escolheriam e que a levariam embora. Eu sabia que jovens como ela nunca eram selecionadas, portanto não me preocupava com essa possibilidade. Não conseguia imaginar como seria a vida na província sem ter minha irmã por perto, sem receber notícia dela. A ideia de perder um membro da família para o Núcleo, o lugar de onde os páuperes nunca retornavam, era assustadora.

Os demais habitantes das províncias, por outro lado, não pensavam como eu. Quando os olheiros levavam consigo um páuper, sua família recebia uma ajuda de custo mensal, suficiente para que nenhum de seus membros precisasse trabalhar. Assim como Alve, todos sonhavam com a celebração de fim de ano — com a possibilidade de serem resgatados do desconforto das províncias — ou com o dinheiro que receberiam quando seus filhos fossem levados. As descrições do livro de fundamentos reforçavam esses ideais, trazendo esperança e servindo como um manual para quem pretendia se fazer merecedor de tal privilégio.

De fato, julgando pela aparência dos olheiros, não era difícil imaginar como devia ser a vida no Núcleo. Pareciam saudáveis e intelectualizados, embora quase nunca dirigissem palavra a um páuper; suas roupas eram impecáveis, usavam terno de um tecido branco tão lustroso que era impossível estimar quanto valia. Além disso, e principalmente, eram belos; tão belos que quando um páuper trombava com eles, sentia-se impelido a admirá-los por quanto tempo pudesse, até que sumissem de vista.

Quando os caminhões de lixo atravessavam a ponte de ferro e depositavam na Escória os detritos do Núcleo, os páuperes mais miseráveis aguardavam ansiosos, prontos para vasculhar os entulhos. Algumas vezes, encontravam utensílios em bom estado, produtos pouco usados e até bens novos em folha. Um breve passeio pela Escória era o suficiente para que qualquer um conhecesse o estilo de vida dos habitantes do Núcleo: eles esbanjavam, e todos queriam morar num lugar onde esbanjar era possível.

Aqui na província, era comum que alguns se rastejassem pela sujeira à procura das migalhas, a fim de se sentir um pouco mais perto de uma realidade que a maioria jamais conheceria. Explorar o lixão, contudo, não era visto com bons olhos; a maior parte dos páuperes ainda tinha seu orgulho, envaidecia-se em dizer que não precisava revirar o lixo dos outros para sobreviver. A Escória era, acima de tudo, muito perigosa, já que lixo hospitalar e resíduos radioativos se misturavam; por conta disso, seus terrenos eram frequentemente patrulhados pelos milicianos, a força pública que garantia a aplicação das normas na província.

Fosse por meio de seu lixo ou pela vista magnífica que podíamos ter ao alto da serra, o Núcleo parecia ser bom demais. Para a maioria de nós, aparência era tudo o que importava. Se a ideia de migrar para o Núcleo reluzia como ouro, lá devia mesmo ser o paraíso. Alve estava convencido disso e Lena tinha a esperança de ser escolhida um dia.

Minha mãe, por outro lado, costumava contestar isso tudo. Era uma mulher muito diferente das outras, e talvez eu houvesse herdado dela o ímpeto de questionar. Quando eu era pequeno, meu pai havia chegado a revelar algumas histórias sobre minha mãe, das quais eu não me lembrava mais, mas que tinham a ver com seu pensamento de que as aparências podiam enganar; ela nunca entrava em detalhes a respeito — parecia se tratar de um segredo ou de uma lembrança sofrida —, portanto eu nunca perguntava.

Ágda era seu nome. Significava "bom" numa antiga língua extinta e representava muito bem quem ela era. Minha mãe também costumava ser intrigante, do tipo que parecia sempre saber mais do que dizia. Quando viva, ela criava lebres no quintal de casa, das quais costumávamos tirar a maior parte do nosso sustento, economizando a renda obtida pelo pai e Farid na madeireira. Devido à doença, o cuidado com os animais fora negligenciado, e, após uma distração, as lebres fugiram. Todas foram embora, correndo pela cidade ou para a floresta; todas exceto uma: um filhote tão feio que dificilmente daria uma boa refeição um dia. Então a mãe morrera, e Espicho acabara entrando para a família, para nos lembrar do carinho com o qual ela costumava tratar aquelas criaturas, conquanto mais tarde precisássemos nos alimentar delas.

Eu sentia falta da minha mãe e entendia que Lena também sentia. Ela certamente apaziguaria a situação e não permitiria que meu pai nos tratasse daquela forma. Talvez o que vinha me mantendo acordado fosse a saudade.

Como quem joga uma moeda num poço, implorei que minhas preocupações me deixassem em paz; e, como tal, minhas súplicas jazeram no fundo. Quando os pensamentos finalmente se tornaram sonhos, continuaram desagradáveis. A noite não durou muito, no entanto. Logo o dia chegou.

Meu pai ainda devia estar dormindo quando Farid voltou para casa, com uma cara de doente e movimentos vacilantes. Ele engrolou duas palavras e entrou no quarto, de onde eu sabia que não sairia até de noite.

O galo do vizinho cacarejava, anunciando oficialmente a chegada do último dia do ano. A manhã veio um pouco mais morna, porém a energia elétrica tinha sido cortada durante a noite, o que me obrigou a tomar banho gelado e sair do chuveiro batendo os dentes. Em dias de festa, a eletricidade era desativada em algumas partes da cidade, a fim de mantê-la nos pontos mais importantes. Quanto a isso não havia nada que pudéssemos fazer, além de esperar as festividades acabarem.

Preparei o café da amanhã, mas não acordei meu pai. Em seguida, Lena pediu ajuda para se vestir, ao que cedi com uma insatisfação hesitante. Cruzei as pernas sobre a cama, acomodando-me no colchão.

— Acha que eu deveria ir de cabelo solto ou preso? — perguntou ela, sentada em frente à penteadeira. Parecia ignorar a maneira como a noite tinha se encerrado ontem, preocupando-se apenas em se preparar para a festa mais aguardada do ano.

— Não faz diferença — respondi. Lena se virou para mim com um semblante frustrado, como se eu a houvesse ofendido. — Quero dizer, você vai ter mais liberdade para se divertir se deixar o cabelo preso. — Tentei consertar a situação. Eu sabia que cabelos longos podiam ser bem incômodos, afinal os meus eram quase tão compridos quanto os cachos da minha irmã, exceto que eram lisos e oleosos.

— Mas se eu prender vou ficar feia — contrapôs. — Não quero estar feia.

Lena encarava o próprio reflexo no espelho. Seus olhinhos eram puxados nas laterais das pálpebras, dando-lhe um ar estrábico; geralmente ela tinha um olhar simpático, embora agora carregasse desapontamento.

— Você não precisa se preocupar em ficar bonita. É linda como é.

Eu realmente achava Lena bonita, não como os olheiros eram, mas como um filhote de gato do mato. Às vezes, alguns felinos selvagens saíam da floresta em busca de alimento, e quando cedíamos a eles as sobras do jantar — como ossos e partes inaproveitáveis —, sacudiam a cabeça, satisfeitos, miando de alegria. Era uma beleza tão natural, tão cativante, que me dava vontade de apreciá-la todo dia. Assim era Lena.

Ela agitou as madeixas com força, até que os revoltosos cachos tomassem quase o dobro do volume. Então estalou a língua num muxoxo, indignada.

— Droga, o papai tem razão! — exclamou. — Ninguém nunca olharia para mim assim.

— Não se preocupe com isso. — Estiquei o braço para puxar Lena, fazendo-a olhar para mim. — Você não precisa agradar a ninguém. Sabe disso.

Lena respirou fundo e desviou o rosto, pensativa. Ficamos ambos calados por um minuto, enquanto ela focava sua atenção em algo invisível à sua frente. Quando finalmente voltou a se pronunciar, sua voz saiu mais grave e retraída.

— Se eles me levassem, o papai sentiria orgulho de mim.

Ela mergulhava cada vez mais em seu estado contemplativo.

Era verdade. Se perder minha irmã para o Núcleo fosse possível no momento, eu poderia largar o trabalho na madeireira, e ainda assim todos teríamos uma vida mais confortável, graças ao dinheiro que nos seria concedido. Quem sabe poderíamos nos mudar para a parte mais bonita do complexo habitacional? Meu pai ficaria mesmo muito orgulhoso, mais ainda do que quando eu recebera o resultado do meu teste vocacional. No entanto, parecia errado esperar que nossa família se desfizesse dessa forma.

Em quase todas as vezes, os olheiros selecionavam os jovens mais bonitos que pudessem encontrar: páuperes atléticos, de preferência, ou magros. Ironicamente, a maioria dos habitantes da província era bem feia, graças à exposição prologada ao sol, subnutrição e saúde precária, portanto qualquer um cuja pele fosse clara e o rosto um tanto simétrico possuía alguma chance. Eu odiava concordar com o pai, mas Lena estava longe do padrão, com suas raízes encaracoladas e gordura infantil ainda remanescente.

Considerando minha hesitação como aquiescência, Lena encerrou o assunto e se levantou, arrasada. Abriu o guarda-roupa à procura de um vestido.

Larguei o corpo em cima da cama.

Talvez fosse bom Lena não ser considerada bonita. As pessoas veneravam o bonito, mais do que deveriam. Lena não tinha como perceber como isso era nocivo, mas eu sabia. Desde pequeno lutava para lidar com os olhares; já sabia que estava fadado a ser como uma estátua de mármore, bela e facilmente quebrável. Por sorte, a puberdade me fizera bem: eu não cortava os cabelos e deixava crescer os pelos no rosto; usava roupas surradas e permitia que o sol me queimasse enquanto trabalhava na madeireira. Com o tempo, fui colecionando marcas de espinhas, manchas escuras na pele e cicatrizes.

Meu pai apareceu na porta, chamando nossa atenção. Ele lançou um olhar incerto para o interior do quarto; parecia completamente sóbrio — o que era meio inesperado —, e seu semblante era muito mais tranquilo que na noite passada. O que mais me surpreendia, entretanto, era a maneira como estava arrumado: vestia sua jaqueta de couro vermelha, um presente que recebera há alguns anos e que tinha sido usado apenas duas vezes; seus cabelos, tão longos quanto os meus, estavam amarrados num rabo de cavalo. Pensando bem, ele devia ter acordado bem cedo para se preparar. Não entendi o que o havia levado a se arrumar daquele jeito.

— É o dia da Grande Emersão — disse ele, como se o feriado em si fosse motivo suficiente para tanto. Ambos sabíamos que desde que minha mãe ficara doente, há mais de um ano, ele nunca tinha se importado tanto com festividades, muito menos com essa em particular.

Eu não gostava de admitir, mas agora, com uma aparência limpa, meu pai parecia tão bem quanto costumava ser anos atrás, o velho madeireiro Góris; até se pareceria um pouco comigo, caso eu me prestasse a me vestir melhor. Seu humor estava mais leve sem o álcool no organismo, quase como se houvesse esquecido a discussão da noite anterior.

Vendo meu pai vestido daquele jeito, Lena correu mais uma vez à penteadeira e tirou da gaveta sua máquina fotográfica. Minha irmã adorava aquela câmera, pois revelava fotos instantaneamente. Quando a ganhara em seu décimo aniversário, tinha fotografado tudo o que via pela frente, apenas para ter o prazer de admirar seu trabalho impresso.

— Faça uma pose, vou tirar uma foto sua. — Ela mirou a câmera para o pai.

Por um momento, ele se manteve rígido e sério. Meu pai não gostava de ser fotografado, e, além disso, era perceptível que o clima de desavença ainda não havia se dissipado completamente. Entretanto, de qualquer forma, ele cedeu à brincadeira de Lena, mesmo que apenas por um segundo.

Quando a fotografia saiu, Lena sorriu, sacudiu a foto no ar e, após olhá-la por um segundo, guardou-a no bolso. Ela lançou um sorriso para mim e correu porta afora, dizendo que terminaria de se arrumar no banheiro.

Virei-me ao pai mais uma vez.

— Tome conta da Lena enquanto estiverem na praça — pedi, contente por não precisar acompanhá-la até a festa, já que meu pai iria também.

Ele franziu o cenho.

— Sua irmã não tem idade para ir — falou, dando uma última ajeitada no colarinho.

— É tradição que os novos graduados participem.

Ele soltou uma risada cínica.

— Com aquele certificado vergonhoso, eu me recuso a vê-la como uma graduada — estabeleceu, e então me lançou um olhar peremptório. — Não quero Lena naquela praça hoje. Fui claro?

Meu pai virou as costas e sumiu de vista, dirigindo-se à porta da sala. Eu tampouco gostava da ideia, porém sabia como Lena ficaria triste se fosse proibida de ir. Levantei-me da cama, indignado, e disparei para fora do quarto, disposto a fazê-lo mudar de ideia antes que saísse de casa.

— Você nunca compareceu às festas de fim de ano. Por que de repente resolveu participar?

Meu pai bateu a porta da frente sem responder. Lá estava o mesmo homem da noite passada, apenas menos violento.

Quando Lena saiu do banheiro, com o cabelo preso numa fita amarela, já parecia saber da proibição.

— Não é justo! — choramingou ela, seus olhos rasos de lágrimas mais uma vez.

Não, não era. Mas nada era justo quando se tratava do meu pai.

Lena estava mesmo bonitinha com aquele penteado, mas talvez fosse a vontade de se divertir que lhe caísse tão bem.

— Quer saber? Nós vamos assim mesmo!

Lena abriu um outro sorriso radiante. Era só uma festa, afinal.

Mais tarde, caminhando em direção à praça central, passei um braço por trás das costas de Lena. Plinio havia nos dado uma carona até a esquina.

A Grande Emersão era a festa mais popular da província. Certamente todos estariam lá. À distância, pudemos ver o amontoado de gente. Centenas de pessoas perambulavam pela praça, dançando umas com as outras, comprando comida nas barracas de lanche.

— Fique sempre onde eu possa ver você, está bem? — pedi.

Lena assentiu.

Ao penetrarmos a multidão, senti o calor humano quebrando o frio da estação. A música era alta e me fazia querer tapar os ouvidos. Sentia o odor de corpos suados, carne gordurosa frita e algo cítrico que não pude definir.

Lena avistou um conhecido e correu em sua direção. Felizmente consegui encontrar um lugar de onde eu poderia observar minha irmã enquanto ela se divertia com os amigos.

Os páuperes estavam felizes, carregando no rosto uma expressão relaxada e jubilosa que raramente era vista. Vestiam roupas curtas e apertadas, deixando à mostra seus atributos físicos.

Na província não era atípico que os páuperes agissem daquela maneira. Aliás, era usual ver pessoas de diferentes idades se relacionando, mesmo publicamente. De qualquer forma, esse era o dia do ano em que não explorar sua sexualidade parecia errado, portanto todos se aventuravam nos corpos alheios sem qualquer pudor.

Eu os observava com genuína curiosidade, sentindo-me um estranho noutro mundo. Era fascinante imaginar que muitos deles costumavam ser meus colegas de classe quando mais novos; alguns até trabalhavam comigo na madeireira. Em sua vida particular, até se esforçavam para serem minimamente reservados, mas, naquela ocasião, apreciavam sem culpa tudo o que a juventude podia oferecer. Naquele momento, nada importava senão o ímpeto de pertencer à multidão. Todos queriam estar em exposição, ansiavam por se sentir belos e desejáveis, permitiam que todos os tocassem e adorassem. Retornariam à rotina no dia seguinte, na qual seu valor equivalia à importância do trabalho que realizavam, mas hoje não havia moral que pudesse condená-los.

Eu me satisfazia em ficar somente num canto. Evitava o cheiro azedo da praça suja, escutando as risadas alucinadas e filtrando a batida doentia da música.

Lena estava contente, discutia animadamente com uma garota da sua idade, embora precisasse berrar para ser ouvida.

Feirantes aproveitavam a folia para oferecer seus produtos. Circulavam por entre a aglomeração, portando alimentos, preservativos e bebidas alcoólicas.

Eu me atinha a uma árvore isolada, protegida por um canteiro maltratado. Vestido da cabeça aos pés, ninguém parecia notar minha presença.

Então notei uma agitação ao redor; um chorrilho de pessoas se afastou, de maneira que formasse um corredor livre entre a multidão. Precisei esticar o pescoço para descobrir do que se tratava. Meia dúzia de homens altos vinha caminhando por entre os festejadores, com o queixo suspenso no ar e seus ternos de um branco impecável. Sua pele era rosada, seus cabelos louros e brilhosos estavam meticulosamente penteados para trás. Os olheiros se pareciam uns com os outros, desfilando de modo majestoso pelo caminho vazio que os páuperes haviam lhes reservado. Mesmo à certa distância, era possível perceber o quanto se destacavam em meio aos habitantes da província. Pareciam bonecos, como brinquedos de montar perfeitos, deslizando entre os feios e os vulgares, servindo como entidade para suas adorações. Se havia algo que pudesse ser chamado de divino, eram os olheiros.

A música de repente cessou. Ao redor, não se ouvia sequer um cochicho. Procurei Lena, passando o olhar pela aglomeração, e a encontrei espremida entre dois adultos apopléticos, com a mesma expressão de arrebatamento.

Notei que alguns páuperes se curvavam, numa tentativa desesperada de chamar atenção com suas reverências forçadas.

Uma mulher cortou o aglomerado e, surpreendendo a todos, projetou-se à frente de um dos olheiros, interrompendo sua marcha. Ela usava vestido longo e uma espécie de turbante na cabeça, tinha o rosto marcado por diversas cicatrizes.

— Senhores, por favor. Venho lhes suplicar, por favor! — bradava, sem ao menos ser capaz de encará-los.

A multidão se inquietou, julgando-a por se expor daquela maneira. Páuperes nunca cruzavam o caminho de olheiros — eles lhes prestavam cortesias respeitosas, vestiam-se como pavões, tentavam se mostrar tão belos e altivos quanto os habitantes do Núcleo, mas nunca cruzavam seu caminho.

A mulher puxou uma jovem pelo pulso, sacudindo a garota diante dos olheiros como se ela fosse seu bem mais precioso. Forçava um linguajar sofisticado para se referir aos homens, embora isso soasse estranho vindo de alguém como ela.

— Levem consigo minha primogênita. Ela é tudo o que tenho de mais bonito.

A garota parecia envergonhada, mas, acima de tudo, temerosa. Devia ser um ou dois anos mais nova que eu, e era realmente uma moça bonita: tinha longos cabelos escuros e feições suaves, ainda que fosse magra demais, até mesmo para uma páuper.

O olheiro à frente disfarçou a repulsa, seus companheiros cruzaram os braços. Mesmo naquela situação era impossível não admirar sua beleza: seu rosto era quadrado; seus olhos grandes resplandeciam o anil mais invejável; a pele de seu rosto era tão lisa e vistosa que parecia uma camada fina de seda. Os habitantes do Núcleo provocavam deslumbramento, como se fossem perfeitos demais para serem humanos, totalmente diferentes de criaturas feito os páuperes, seres como eu.

As pessoas começaram a gritar injúrias à mulher, ávidos para mostrar serviço aos olheiros, exigindo que ela saísse do caminho.

Os olheiros não reagiam, provavelmente esperando que a mulher se tocasse e abandonasse a festa. Ela, entretanto, lançou-se de joelhos ao chão, com os dedos entrelaçados numa súplica fervorosa.

— Levem tudo o que tenho. Levem minha filha, eu imploro! — choramingava.

A garota parecia temer os olhares de reprovação dirigidos a ela. Murmurava algo para sua mãe, mas esta não lhe dava atenção.

O olheiro adiante finalmente tomou uma atitude, esticou a perna e empurrou a mulher com a ponta de seu sapato. Ela se desequilibrou e tombou para o lado.

— Registre-a na urna — ordenou o homem. Sua voz era contida, mas autoritária.

Então, um a um, os olheiros passaram pela mulher, atentando-se a ela apenas o suficiente para contorná-la.

Olhei para o final do trajeto dos olheiros, que andavam na direção de poltronas altas, dispostas estrategicamente a alguma distância da multidão, de onde observariam os páuperes. A alguns metros dos assentos, havia uma urna de madeira, na qual os páuperes deveriam se inscrever se quisessem passar pela seleção dos olheiros.

Após os homens se sentarem, a música retornou, tão alta quanto antes, e então a multidão se misturou novamente. Pôde-se ouvir apenas um grito da mulher de turbante quando diversos páuperes a seguraram e a levaram embora por entre as pessoas.

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