Vários dias se passaram. Meus pais me deixaram aos cuidados de Tulipa, e pude organizar meus pensamentos nesse quarto que é como um eco profundo do meu passado. Eu preciso de um plano. Um plano para mudar o curso dos eventos sem que isso recaia sobre o ducado. Tenho o conhecimento do futuro, mas não a força física ou a influência do nome que fiz como General Kendra.
É como ter um mapa do tesouro sem uma pá para cavar. A primeira coisa a fazer é entender a linha do tempo em que estou. Não me recordo totalmente dessa época porque estava acamada, doente. Só me lembro do que ouvi enquanto era transportada até a capital, mas são coisas vagas e confusas. Se estou no Primeiro Ano Fênix, então é antes do ataque que vitimou Tulipa. Isso vai acontecer em alguns anos, tenho certeza. Assim como a ascensão de Milton ao trono como primeiro herdeiro, após a morte súbita do irmão mais velho e legítimo herdeiro do trono. Logo após isso, uma grande guerra iria eclodir com o Império, mas isso ainda vai demorar uma década. Eu tenho tempo, mas não em demasia. Cada decisão será crucial para salvar a todos. Minha mente de estrategista militar, afiada por anos de batalhas e intrigas, não trabalha mais como antes; talvez ao voltar eu também tenha regredido mentalmente. O que eu sei com toda certeza? Milton é um traidor cruel. Sofia, uma víbora. O Império, um inimigo implacável. E eu, Kendra, estou em um corpo frágil e fraco, mas com uma mente que já sobreviveu ao inferno dos campos de batalha. Mesmo que de forma enferrujada agora. Afinal, quando morri, a guerra já havia acabado há mais de cinco anos. Olho para minhas mãos sem calos, a pele macia e jovem. Como vou segurar uma espada com isso? O treino vai ser exaustivo. Preciso recuperar minhas habilidades, mas sem levantar suspeitas de que estou me preparando para algo. Uma jovem duquesa não se torna uma general sanguinária da noite para o dia. Talvez eu possa usar a desculpa do veneno para explicar uma mudança súbita de comportamento ou interesses, por não querer mais preocupar meus pais. Ambos estão atolados em trabalho após ficarem dois dias me mimando de todas as formas. Não que eu tenha achado ruim; a companhia dos dois foi o que me motivou ainda mais a tentar mudar o trágico destino do Império de Fênix. Levanto da cama e vou até a janela, observo o jardim que antes parecia um paraíso, mas que agora, para mim, é o local do meu renascimento. Os canteiros de rosas são vibrantes, o cheiro adocicado flutua no ar. A mansão está em paz, seus muros intactos, as risadas dos serviçais ecoam pelos corredores. É uma paz frágil, sei disso, mas é uma paz tão agradável. — Tulipa? – chamo, minha voz ainda um pouco infantil, mas com uma estranha autoridade que não consegui disfarçar completamente. Ela entra, os olhos arregalados, como se ainda estivesse assustada com minha repentina doença. Após a saída dos meus pais, não tocamos mais nesse assunto. Mas ela foi quem me encontrou, quem viu mais da cena. — Sim, jovem senhorita? – ela responde, segurando uma bandeja com frutas frescas e um jarro de água. Em nenhum momento a vi ficar parada desde que ficamos somente nós, talvez procurando motivos para ficar calada. — Você se lembra de tudo que aconteceu antes de eu desmaiar? – perguntei, observando-a atentamente. Seus olhos vacilam por um momento. Ela franze o cenho e coloca a bandeja sobre a mesa. — A senhorita estava brincando perto do poço. Eu fui buscar biscoitos, e quando voltei, a senhorita estava caída. — Hesitou, e sua mão tremeu ao servir a água em um copo. — Eu vi... eu vi uma sombra perto da cerca. Parecia alta e esguia, mas sumiu rapidamente. Pensei que fosse um animal grande pulando-a. Uma sombra. Interessante. Isso confirma que minha doença não foi um mero acidente. Alguém me atacou. Isso abre uma nova linha de investigação. Seria alguém que já conspirava contra meus pais? Ou um aviso? Alguém de fora? Ou alguém de dentro? Não posso confiar em ninguém. — Entendo. — digo, pensativa. — Tulipa, você poderia me trazer alguns dos livros da biblioteca? Gostaria de reler algumas das histórias que mamãe me contava. – Preciso de informações. Livros de história, mapas, registros. Tudo o que puder me ajudar a fixar a linha do tempo e os eventos importantes. Além disso, vai ser uma ótima desculpa para passar horas isolada, estudando e traçando meus planos. Também um pretexto para minha súbita mudança de atitude em relação às espadas. — Claro, senhorita! Quais gostaria? – pergunta, com um sorriso aliviado pelo fim do interrogatório. É bom ver que ela parece feliz por eu estar interessada em algo tão normal. Talvez eu tenha sido um pouco dura com ela nos últimos dias. — Todos aqueles sobre a história do Reino de Fênix. E alguns sobre a fauna e flora local, especialmente sobre os Lobos Brancos. – digo, e posso observar a surpresa sutil em seu rosto ao mencionar os lobos. A ameaça dos Lobos Brancos é real, e eu sei que eles seriam a primeira faísca da guerra que me consumiria. Mas não sei quanto tempo tenho antes de eles agirem, ou por que eles atacariam uma terra tão distante do seu local de origem. Tulipa assente e sai do quarto, provavelmente curiosa com minha escolha incomum de leitura. Apenas me sentei no beiral da janela, apreciando o vento. Tenho que começar logo para não ser pega no fogo cruzado quando tudo começar. Irei lidar de forma monumental com tudo que está por vir e salvar aqueles que me são queridos. Nem que para isso tenha que sujar minhas mãos de sangue novamente. ◇◆◇ Assim que os livros chegaram, trazidos por Tulipa, que parecia ainda mais curiosa com minhas súbitas incursões intelectuais, pude me afundar neles, me distrair de todos os pensamentos sobre a guerra e tentar me localizar em tudo isso. São tomos empoeirados de história, relatos sobre a fauna das terras do reino e até mesmo mapas antigos. Eu me dediquei a devorar cada palavra, absorvendo as informações como uma esponja. O cheiro de papel velho e tinta é um contraste bem-vindo ao cheiro de sangue e pólvora da minha memória mais recente. A primeira coisa que fiz foi confirmar o ano e os eventos cruciais. O Primeiro Ano Fênix, Quinhentos e Um, Mês da Fênix é, de fato, o período que antecedia os grandes conflitos que participei. O Reino de Fênix está em um período de relativa paz, embora tensões veladas com o Império do Leste fossem sempre uma constante. Milton, o terceiro Príncipe e aquele que aceitei como noivo no futuro, ainda não é o Príncipe Herdeiro, mas já é conhecido por sua imagem carismática e honesta. Minha doce prima Sofia é apenas uma jovem dama de companhia, aparentemente inofensiva, que estuda na capital. Não preciso me atentar aos dois, isso por pelo menos dois anos. É quando Sofia volta ao ducado e quando o Príncipe Herdeiro morre de causas desconhecidas. Por sua vez, é quando o terceiro Príncipe se torna herdeiro. Não consigo me lembrar o motivo da segunda princesa ter renunciado ao cargo sem nem ao menos tentar. Meu foco principal, no entanto, é nos Lobos Brancos. Os livros de história fazem menção a eles como uma tribo de guerreiros ferozes que habitavam as montanhas geladas do norte. Eles são nômades, conhecidos por sua brutalidade e por ataques esporádicos a vilarejos fronteiriços. Mas também conhecidos como amigos da natureza e leais àqueles que os acolhem. Não são vistos como maus; eles apenas atacam aqueles que ferem a natureza ou que ferem os seus. Então, por que eles atacaram os dois ducados sucessivamente? Não faz sentido um povo com tradições tão fortes ter feito isso. Minha lembrança daquele ataque é vívida: um assalto maciço e inesperado que dizimou diversas comunidades, incluindo a minha própria, e tirou a vida de Tulipa na minha linha do tempo original. Mesmo que na época eu tenha sido colocada às pressas em uma carruagem junto com minha prima e fugimos até a capital, não participando diretamente da luta. Foi o pior cenário que já presenciei, mesmo que não me lembre os detalhes, ainda parece vívido o que passamos naquele dia. O pior foi ter de voltar para limpar os corpos; havia sangue e destroços por todo lado, corpos jogados pelos corredores, vidro e restos de móveis por todos os lados. Balanço a cabeça, espantando as lembranças que ainda me assombram. Esse acontecimento foi o estopim perfeito para o Príncipe Milton, que já havia se tornado herdeiro da coroa, declarasse guerra ao Império, sob o pretexto de proteger o reino da iminente ameaça que eles eram. Sorrio em escárnio. Um tolo com uma coroa. Folheei mapas, procurando por padrões de ataques passados; não eram tantos, fui os marcando aos poucos. Os pontos marcados indicavam rotas de migração e áreas de caça dos Lobos Brancos. Parecia que seus ataques eram mais frequentes durante os meses de inverno rigoroso, quando a comida se tornava escassa nas montanhas geladas. Mas se for parar para pensar, toda a criminalidade aumenta nessa época do ano em decorrência da falta de comida e do frio extremo. Por que há tantos ataques de uma tribo em específico? Não faz sentido. — Tulipa. – chamei, dessa vez com pressa. — Você pode me trazer o jornal mais recente do reino? E talvez as correspondências oficiais dos últimos meses que meu pai não se importe de compartilhar? Preciso de informações atualizadas, não apenas histórias antigas dos livros. Preciso sentir o pulso do reino, as intrigas da corte, as preocupações atuais. Tenho que ter certeza antes de poder concluir esse raciocínio. Se o que estou pensando for verdade, terei mais motivos para me vingar daquele ser infeliz. Em poucos minutos, ela retornou com uma pilha de documentos. Comecei a lê-los com voracidade. Notícias sobre colheitas, alianças comerciais, fofocas da corte… E então, um pequeno artigo na seção de notícias locais chamou minha atenção. “Aumento da Atividade de Lobos nas Montanhas Orientais”. É uma nota breve, quase um rodapé, mencionando avistamentos incomuns e alguns pequenos roubos de gado e de passagem forçada pelas propriedades. Para a maioria, seria uma inconveniência menor. Para mim, era o sinal de alarme. Os Lobos Brancos não eram os culpados. Os ataques eram muito distantes dos pontos de migração dos Lobos Brancos; é impossível eles estarem naquela região nessa época do ano. Por que agora eles estão aqui, no ponto mais afastado do nosso território, dentro das grandes matas? Foi por isso que atacaram os dois ducados tão rapidamente. Porque foram provocados. O ataque dos Lobos Brancos não foi um evento aleatório. Foi um evento que Milton ou Sofia provavelmente manipularam para seus próprios fins, como fizeram na minha vida anterior. Se eles já trabalham juntos desde agora, todos os ataques relacionados aos Lobos Brancos de minha vida anterior foram forjados. Eu me lembro dos relatórios que chegavam até mim, ano após ano, sobre como as defesas das vilas atacadas estavam misteriosamente enfraquecidas, e como o Príncipe Milton milagrosamente chegava com reforços após o pior da carnificina. Eles sempre chegavam após algo grande acontecer e ajudavam a suprimir o caos. Sempre me senti fascinada com isso. Agora sei que era tudo mentira. Todos aqueles ataques foram premeditados. Todos para aumentar a fama e o prestígio do Príncipe Milton. Sinto náusea e vontade de vomitar. Não acredito que trabalhei tanto em minha vida passada por nada. Como não percebi? Estava tão cega de amor? Ou eu era apenas tola? Fui condecorada uma grande general, e mesmo assim fui incapaz de ver que matava inocentes quando dizimei a tribo dos Lobos Brancos no fim da grande guerra. Amasso os jornais, jogando-os no chão com raiva. Respiro fundo, tentando não me desestabilizar. Já sabia que ele era um lixo. Não tem por que me deixar entristecer ou enfurecer. Só irei jogar esse jogo com ele. Mas dessa vez eu irei dar as cartas. ◆◆◇◆◆