Kilkerny, maio de 1341
– Conde Pembroke... – disse-lhe o criado, enquanto ele se encontrava na tina para o banho.
– Diga, Adam. – Esfregou os ombros com força, sem fitar o criado.
– Há um homem lá embaixo que deseja vê-lo – respondeu, com medo da represália do seu senhor.
– A uma hora dessas? – Estreitou seus olhos frios sobre o criado.
O homem apenas se calou, enquanto ele se erguia da tina de madeira.
– Vamos, me passe a camisola – retrucou entredentes.
– Sim, milorde – assentiu, ao desviar os olhos para o tecido encardido para entregar-lhe.
– O que achou dele?
– Um homem digno – ponderou o criado, com voz baixa.
Aiden Pembroke sorriu.
– Se não estivesse comigo há tanto tempo, diria que o servia. – Os olhos violetas o fitaram intensamente. – Não me olhe assim... Agora, vá até lá e diga que estou indo – retrucou enquanto o criado se preparava para sair. – Espero que seja importante, não se visita ninguém uma hora dessas.
Ele correu um longo caminho até alcançar a escada de pedra e descer ao primeiro andar. As portas foram abertas por alguns guardas, que não o fitavam no rosto, e entrou na atmosfera recém-aquecida pela lareira, analisando seu visitante de costas, com as chamas alaranjadas desenhando suas sombras contra as pedras. A imagem refletida na parede fria era ainda mais alta e sombria do o homem à sua frente: os cabelos castanhos do visitante caíam-lhe na altura do pescoço, sobre a gola do casaco e seu porte era harmonioso com sua altura. Infelizmente, mais nada poderia ser dito de onde o conde o olhava.
– Queria me ver... – deixou a frase sem terminar ao passar pelo visitante e se dirigir à mesa posta.
Um tempo longo que o homem demorou até encará-lo com dois olhos méis, brilhantes.
– Earl Pembroke? – Sorriu-lhe, esfregando as mãos uma na outra. E o conde pode ver o quanto alto e corpulento era o homem, que não passava de seus vinte cinco anos. Ele assentiu ao rapaz curioso. – Sou Joseph Butler – o visitante misterioso se apresentou.
– Butler? – repetiu, tomando a direção da sala de refeições. – Não me lembro de ter conhecido nenhum Butler... – Sentou-se despojadamente na cadeira à cabeceira da mesa de doze lugares, em madeira escura, deixando seu olhar vagar pelo intruso parado sob o portal.
– Não, de fato, não nos conhecemos. – Olhares recobertos de mel e azuis se cruzavam, brilhantes. – Eu apenas ouvi falar de seus feitos...
– E isso o faz bater em minha porta numa hora como essa? – Pegou uma coxa de pato entre os dedos, analisando-a demoradamente. – Ou veio em busca de estadia? És nobre? – Mordeu um pedaço e mastigou, enquanto dirigia um gesto ao intruso, ofertando-lhe comida.
– Não o importunaria por tão pouco, milorde... – murmurou, aproximando-se da mesa, porém sem tocar em nada. - Mas creio que não há uma hora certa para se tratar de negócios.
O conde se serviu de vinho, deixando parte do líquido em uma taça à frente do visitante e, em seguida, saboreando-o em sua própria taça..
– Negócios, você diz... – ele riu. – Que tipo de negócios?
O visitante o fitou, confiante.
– Os do tipo amaldiçoados.
O conde se fixou no homem, aturdido com os olhos dourados que surgiram na sua frente, borrando sua mente com o horror. Seguiu-se um grito antes que desse conta do maxilar fechado contra a carne do seu pescoço e a dor intensa que lhe preencheu o âmago. O vinho esparramado pela mesa, pingando no chão, enquanto o lobo passeava em meio à comida e se alimentava do resto do pato. Ainda faltava muito para o amanhecer...
***
Ele estava em seu quarto, sob as cobertas. Sua cabeça doía enormemente. Talvez fosse efeito do vinho. Sentia a garganta seca e nada que fizesse traria as lembranças da noite anterior. Tudo parecia um tanto confuso. Passeou os dedos entre os cabelos claros e curtos, soltando um esgar. Fixou os olhos azuis nas sombras, vendo os olhos méis lhe fitarem da poltrona, diante da lareira.
– Então, despertou...
– O que faz aqui?
Os dois falaram quase ao mesmo tempo.
– Vim lhe tirar de uma vida enfadonha.
O louro sorriu.
– Não estou numa vida enfadonha...
O outro não retrucou, apenas o encarou severamente.
– O que realmente quer aqui?
– Eu confesso que não esperava que fosse sobrinho dele. Pensei em algo mais próximo... – Ergueu-se prontamente, andando pelo quarto enquanto os olhos azuis o seguiam, preocupados. – Entrementes, eu deveria ter devolvido o favor ao seu tio... – Deixou os olhos saírem pela janela, observando a moça que deixava o castelo pelos fundos, vestida em trajes serviçais. Os cabelos eram castanhos escuros e fugiam pelas beiradas do pano em sua cabeça. E, por segundos, ela fitou a porta que se fechara atrás de si.
“Meath”... O nome voou em seus pensamentos. Não era a primeira vez que acontecia... Abanou a cabeça e quando a fitou de novo, ela já se adiantara para a granja. Em sessenta anos, ela não estaria mais tão jovem, não como ele. Cerrou os punhos. Além do que, ele a havia visto queimar diante de seus olhos.
Queimar...
– Perdeu a fala? – ironizou o louro a suas costas, já devidamente asseado. – Estava tão aplicado em explicar o favor que me devolvera...
Os méis dos olhos do visitante se voltaram para ele, ardendo em brasas.
– Há sessenta anos, seu tio deixou que uma moça inocente fosse queimada na fogueira. – Ele avançava em passos largos até o louro, que recuava assustado até a parede. – Ela foi torturada até arrancarem-lhe a confissão de bruxa!
A raiva brotava de cada poro quando o encurralou na parede de pedra. O braço apertou-lhe o pescoço.
– Eu não sei do que está falando – protestou, quase sem voz, tentando segurar-lhe o braço. – Vim para cá tem poucos meses... Meu tio morreu há quatro anos.
– A última vez que estive aqui, ele ainda gozava de boa saúde. – Soltou-o no chão e ele tossiu. – Devia ter lhe dado o corretivo de uma vida, mas faltou-me a oportunidade certa.
– A jovem era sua esposa?
O brilho nos olhos cor de mel alertavam o conde do perigo de quem entrava num terreno desconhecido.
– Uma namorada?
– Não saia desse castelo hoje á noite – disse seco, tomando a direção da porta, sem dar atenção. – Fique dentro desse quarto. Eu voltarei em breve.
O louro ficou aturdido.
– Por que devo fazer o que diz?
– Porque não vai querer saber o que acontece quando um animal como você fica a solta...
O louro voltou a sorrir.
– Escute, eu entendo sua raiva pelo meu tio, mas eu não sou um executor de mulheres. – Abriu os braços e lançou o olhar a sua volta. – Nem ao menos sei lidar com tudo isso. Castelo, terras... – Sorriu. – Eu me perco em minha própria casa.
– Apenas me obedeça.
A porta se fechou num estrondo seco, deixando o conde olhando o vazio dos nós de madeira.
***
Sentia fome, sede... Suas veias queimavam como brasas. Deitara-se mais cedo. Aliás, trancara-se em seu quarto. Não comera, preocupado com o alerta que aquele homem lhe dera ainda pela manhã. O que aconteceria se menosprezasse seu aviso? Não o conhecia, mas tinha a forte impressão de que se não seguisse suas ordens, algo ruim lhe aconteceria.
Rolou na cama.
Era supersticioso? Um pouco... Talvez muito. No entanto, havia algo naquele estrangeiro que o assustava. Um calafrio inundou-lhe a espinha e invariavelmente, deixou os olhos azuis saírem pela janela. As nuvens cobriam parcialmente o céu e agora ele sentia calor. Sua mente era turvada por pensamentos desconexos, cenas de sua infância, de batalhas longínquas... Tudo tão difuso e disforme. Tão irreal.
Suou.
Sentou-se na cama, respirando rápido. Que sons eram aqueles? As corujas piavam mais alto do que de costume, cachorros latiam e as empregadas. Tapou os ouvidos, diante das trivialidades obscenas que aquelas mulheres comentavam. Como faziam isso àquela hora? E como ele podia ouvi-las?
Ergueu-se da cama, irritado. Podia ouvir o som do riacho ali perto, se permanecesse concentrado. Isso não era uma coisa normal. Então, parou ofegante à janela, inalando o cheiro de mato, de relva molhada de orvalho. E da baia dos cavalos, feno... Excrementos. Fez uma careta. Aquilo estava indo longe demais. O vinho da noite anterior devia ter algum alcaloide. Segurou-se fortemente no beiral da janela. Tinha que haver um modo de parar aquilo ou enlouqueceria!
O luar começou a enfeitar as nuvens em raios contrapostos que corriam as paredes do castelo. Até que a lua cheia surgiu, atirando seu brilho diretamente na janela aberta. O louro recuou até um ponto escuro do quarto, sentindo a pele arder. Levando as unhas que cresciam rapidamente á altura dos olhos, apavorados. Voltando seus olhos azuis à lua brilhante, correndo as unhas pela pele clara, esfacelando-a e urrando de dor. Já não estava em si.
A porta foi aberta, deixando a touca branca á mostra e as palavras:
– Sir, trouxe-lhe a refeição.
O uivo agudo, os olhos voltados à moça que deixara a bandeja cair ao chão, espatifando louças. As patas pretas e felpudas que escorregavam pelo chão em sua direção, os olhos amarelos que invadiam a alma pura, ao ponto de imobilizá-la. Um grito e o lobo castanho que veio por trás dela, atirando-se contra seu corpo, embolando-se com ela pelo chão. Ela tentava entender o que acontecia, antes que o rosnado do lobo castanho a atingisse e ela conseguisse, por fim, deixar o quarto, numa corrida desabalada e aos atropelos.
O ar faltando-lhe nos pulmões conforme corria por entre as árvores atrás do castelo. O olhar escurecendo, assustada, com receio de ser seguida. As mãos que retiravam galhos do caminho, sem se importar com os pequenos cortes espalhados pelas palmas ou o vestido sujo de lama. Queria apenas fugir. E quando deu por si, só havia o silêncio da floresta ao seu redor e os ecos de sua respiração acelerada. Parou no centro da clareira, arfando. As mãos sobre os joelhos, segurando-lhe o corpo aflito.
– Está segura, agora. – O coração pulsava em sua garganta, impedindo-a de se virar e fitá-lo.
– O que era aquilo? – Ela falseou tanto na voz, quanto nos músculos.
– Algo que não devia ter visto.
Ela riu em angústia. O que ele queria dizer com isso? Alguns gravetos partiram-se as suas costas, denunciando sua aproximação.
Ela se afastou.
– Não se aproxime... O que é você?
– Sou algo que não devia existir – ponderou calmo. – Deve esquecer o que viu... Meath. – Ele arriscou o nome.
Os cabelos castanhos sob a brisa.
– Como sabe meu nome?
– Há muitos anos, eu conheci uma mulher com esse sobrenome... Muito parecida com você – segredou com cuidado. Aquela não era realmente Petronella. Nem havia vestígios de magia em seu sangue, ele podia assegurar com todos seus sentidos estando em alerta.
– Dizem que sou parecida com minha tia-avó. – Ela se virou, deixando seu olhar castanho pousar nos encantadores olhos cor de mel dele. Desenhando o rosto do homem alto diante dela, em sua camisa branca rasgada e traços finos. – Ela era uma bruxa... – os lábios tremeram como se proferissem uma maldição.
Os olhos dela baixaram ao chão de folhas secas, aturdida por sua confissão.
– Você acredita nisso? – Era uma voz suave, melodiosa, mas, ainda assim, urgente, que lhe invadia os sentidos. – Acredita em magia?
– Não falamos sobre esse tipo de coisa... – Ela contorceu o tecido entre seus dedos, apertados.
Ele levou a mão ao pescoço e revelou a corrente de couro de onde pendia uma ametista ovalada, retirando-a dali.
– Isso pertenceu a sua tia-avó. – Tomou a mão dela na sua, deixando que a corrente corresse de seus dedos para a palma dela. – É sua por direito. – Fechou os dedos dela delicadamente ao redor da pedra.
– Eu não tenho nenhum dom...
Ele sorriu.
– Sim, eu soube quando a vi – afirmou cauteloso. – Mesmo assim, é com os descendentes dela que a pedra deve ficar... – Suspirou, desviando o olhar para as copas da árvore que vertiam com o vento. –Não comigo.
– Você a conheceu?
Houve um longo assobio entre as folhas, antes que ele a respondesse:
– Acha isso possível? – encarou-a, sério.
– A magia, ás vezes, pula algumas gerações – revelou com cuidado. – Isso não quer dizer que tenha abandonado a família de todo.
– Então houve outros antes dela – determinou com cuidado, preso ao semblante receoso da jovem.
– E haverá outros depois... Como na família de Lady Alice. – Um estanho brilho correu dos olhos de Joseph para os dela. – Se conheceu minha tia, provavelmente a conheceu. Lady Le Kyteler era muito bonita e sempre existiram boatos a seu respeito.
— Que tipo de boatos? – indagou Joseph curioso.
— De que também era uma bruxa... – a jovem declarou, duvidosa. – Uma bruxa incomum, com poderes dados pela Deusa.
—Você acredita nisso? – Os olhos que até aquele momento os evitara, ergueram-se a altura dos dele.
— Na minha família, conta-se que foi por um sonho que minha tia Petronella a procurou.
— Sonhos são problemáticos... Às vezes – ironizou propositalmente. Queria saber mais.
— Lady Alice era uma O’Neil quando jovem – havia determinação em provar a veracidade dos fatos. Pelo menos, para ela mesma. – Sempre teve uma aura mágica a sua volta.
Ela sustentou seu olhar no dele, mas esmoreceu minutos depois. Por algum motivo, sentia-se ligada aquele homem. Sentia pena dele.
— Percebo que, apesar de não possuir dons, acredita na magia.
A jovem hesitou e Joseph prosseguiu, como se não aguardasse mais por respostas:
– Não saberia me dizer o que tenho que fazer para deixar de ser o que sou, não é? – Ele se desarmara perante ela, mas lia em seus olhos que a moça era tão ignorante do assunto quanto ele, apesar de uma ferrenha defensora dos seus. Cedeu-lhe um sorriso amargo de decepção. – Gostaria de acreditar que não esperaria muito por isso – As cenas com Alice invadiram sua mente.
– O espírito de uma bruxa é livre. – Fitou-o com carinho, num minuto de socorro.
– No meu caso... – O vento bateu em seu rosto com força enquanto ele fechava os olhos e prosseguia: – Penso que estarei preso a esse corpo pela eternidade.
– Eu sinto muito...
– Não sinta. – Ele se aproximou e tocou-lhe a face. – Sou agradecido a sua tia por salvar minha vida. Eu não pude retribuir-lhe o gesto.
– Conheço as lendas de homens-lobo, mas achava que eles só surgiam no calor da batalha. Não por feitiço.
– Então, para o seu bem, talvez seja melhor acreditar nelas e esquecer tudo o que viu.
– Mas... – Os olhos castanhos se alargaram diante da resposta dele, atônitos.
– Shiii... – Aproximou-se e pousou o indicador sobre os lábios dela, exigindo silêncio.
As mãos nos cabelos castanhos, tomando-os aos poucos. A boca estreitando a distância entre seus corpos até tocar-lhe suavemente a testa... Até tudo se evanescer por completo e o corpo jovem cair ao solo, adormecido. A lua surgiu no céu brilhante. Ele precisava sair dali, tirar o conde daquela casa ou ele iria atrás da Meath. Ele queria vingança contra aqueles que o fizeram sofrer, mas tudo que conseguiria, caso insistisse nisso, era colocar a família dela em perigo uma vez mais.
Não era ela que o traria de volta.
Com um uivo abafado, ele rasgou a noite com suas patas, sumindo na escuridão da floresta.