A Bruxa

Kilkenny – Irlanda, 1324

Minha senhora... – A moça de intensos olhos azuis prestou uma única reverência à mulher na sua frente, sentada em uma cadeira recoberta de peles diante da lareira. – Não vai se deitar?

A febre cessou? – indagou, sem lhe dirigir o olhar.

Não, senhora. – Abaixou a cabeça, fitando o vestido de lã amassado entre seus dedos. Os cabelos ruivos presos á uma pequena rede, por onde fugiam alguns cachos sobre as orelhas. A pele de sardas sombreada pela luz bruxuleante das chamas.

Não terei sono, então – determinou ao se erguer fracamente da lareira, com a túnica longa de algodão cintada por um fio delicado de ouro ocultando-lhe os passos. Os cabelos pretos e ondulados, desgrenhados sobre os ombros, demonstrando as noites passadas em claro. Os lábios sem cor, na pele clara, ainda mais pálida sobre a luz amarelada do calor das chamas que crepitavam, quebrando eventualmente o silêncio daquela sala.

Lady Kyteler flutuava pelo chão de pedra, sem sons, sem respiração.

Já fizemos todo o possível, milady – a criada sentenciou num murmúrio. – As marcas começaram a surgir por seu corpo. É a peste.

E o que sugere que eu faça? – Os olhos verdes viraram em sua direção, cintilantes. – Quer que eu o abandone?

Os passos rápidos dela agora estalavam no chão enquanto se aproximava da ruiva.

Danem-se os boatos! Ele veio a mim!

Os olhos verdes vidraram nos azuis. As mãos claras fecharam-se nas dela.

Milady...

Precisamos salvá-lo, Meath.

Mas, minha senhora, aquele Bispo, Ledrede, está na cidade – ela ponderou incerta. As imagens do sacerdote em sua mente, a boca amarga envolvendo-lhe em calúnias. – Ele já perguntou tanto pela senhora... Sobre sua vida. Se fizermos isso novamente, talvez não lhe reste escapatória.

Tolice – rasgou o ar num esgar insano. – Não irei deixá-lo morrer!

A criada fitou-a se afastar, num olhar compadecido. Poucas vezes a vira tão desesperada, mesmo com todos os boatos a seu respeito e a Inquisição batendo-lhe às portas.

O que precisaremos? – cortou o silêncio em dois, decidida. – Ainda sabe o que fazer?

Nove galos e nove pavões...

E o sacrifício – completou. – Mas esse deixe por minha conta.

A ruiva respirou profundamente e assentiu.

Então será feito essa madrugada, enquanto a lua ainda está negra.

Como queira, milady. – Curvou-se novamente, em sinal de respeito, deixando-a sozinha.

***

O céu estava escuro, sem lua, quando ela pisou no terreno lamacento da floresta ao redor da casa. Havia deixado as aves próximas ao local escolhido e com a ajuda de um cavalo, arrastara o corpo do enfermo até o local. Não deviam chamar atenção. Por isso, ela tomara cuidado em locomover o material aos poucos, em diversos horários. Agora, escorregava sozinha pela noite, encoberta pela capa escura de lã. Penetrando na floresta até ouvir somente os sons da natureza. Os chamados de todos os seres que respiravam e viviam em harmonia com a terra, o ar, a água e o fogo. O cheiro do orvalho em flor e folhas... Da lama que sujava seus pés.

Com cuidado, se aproximou do corpo ali perto, fazendo os galos eclodirem num cacarejo assustado. Ainda que o homem dentro da camisola não se mexesse, fixou seus olhos azuis sobre o rosto sem cor, suado e belo até mesmo na dor. Os cabelos castanhos curtos, à meia altura do pescoço, espalhados sobre a maca improvisada que o trouxera ali. A vida parecia esvair do corpo talhado primeiramente nos campos e depois nas batalhas, conforme as manchas pretas o cobriam sem que pudesse controlar.

O esforço que ela imprimiu para arrastá-lo até o centro da clareira, desenhando ao redor dele, com um athame, um círculo no sentido anti-horário, começando pelo Norte e dividindo-o em quadrantes depois de feito. Terra preta ao Norte, a vela azul acesa ao Sul e a água na vasilha de barro á Oeste, reluzindo um espelho branco. Por fim, as aves ao Leste: suas penas baniriam a doença daquele corpo. As palavras que ela pronunciou em volta deles, calmamente, enquanto retirava a capa e entrava no círculo, ajoelhando-se próximo ao corpo:

Pelo Poder da Deusa e do Deus, pelos Guardiões dos Quatro Quadrantes, eu traço este Círculo Sagrado. Deste espaço só o Mal que habita esse corpo sairá e nele nenhum Mal poderá entrar...

Ela continuou com cuidado, desfazendo-se do vestido de lã curto, sem botão e branco, unindo-se à natureza. Pedindo com toda a força de sua alma que banisse para longe a Peste, que os livrasse daquele Mal.

Que venham as forças antigas e que a Deusa use sua sabedoria e purifique a carne; que o Deus tenha pena dele e devolva-lhe o sangue de um guerreiro. Bravo como era antes de padecer...

O vento soprou em seu rosto e, então, ela rastejou até as aves. Tomando o athame novamente nos dedos, salpicando a terra de vermelho dezoito vezes... As penas oscilando ao vento. O sopro quente seguido do uivo. Os olhos azuis voltados para as copas das árvores que sibilavam no mesmo ritmo, longo e agonizante. O corpo do homem que tremeu sobre a maca, o som das folhas amassadas por patas.

Volkodlák... – um suspiro escapou de seus lábios róseos. – Volkodlák... Volkodlák!

O olhar dourado em meio à névoa crescente, que tomava o círculo. A respiração rápida dela, a falta de ar, a fraqueza quando a névoa se deslocou até o corpo, fazendo-a tombar por cima dele enquanto desaparecia totalmente. Sem vestígios. A consciência que ela retomou aos poucos, incrédula no que acontecera... Como ela evocara aquilo? O corpo quente abaixo do seu, atirando-a para longe, deixando-a assustada ao descobrir aquele olhar dourado sobre si. Um par de luzes douradas que se abriu para fitá-la do corpo outrora pestilento.

Um corpo não mais maculado ou agonizante... E os olhos dela se alargaram. As mãos que ela levou aos lábios enquanto ele erguia o tronco e perguntava:

O que faço aqui?

O que era ele? Ela se perguntou incapaz de reagir. Nunca fizera algo parecido. Não tinha respostas. Ela puxou rapidamente o vestido contra seu corpo, já que ele parecia querer devorá-lo com os olhos. Escondeu-o sob a lã branca. Branca como um cordeiro a ser abatido por um lobo. Fitou-o mais uma vez.

Volkodlák– ela balbuciou de novo, quase inaudível.

O que disse?

Ela não repetiu, precisava terminar o feitiço e expulsar o lobo dali. Aqueles não eram os olhos do homem que conhecera em vida. Então o corpo dele cobriu-se de pelos castanhos, sem que ela nada pronunciasse. Sua altura alcançou quase dois metros, enquanto urrava como se alguma faca o partisse em pedaços. Ela recuou. Recuou até um ponto seguro, sem quebrar o círculo. Ainda podia salvá-lo, tinha certeza. No entanto, uma mão capturou-a pelo braço. Forçando-a a sair dali. Rompendo o selo.

Bruxa! – a voz do homem sentenciou. – Não negue!

Sua cabeça se voltou ao círculo e os olhos dourados a fitaram uma vez mais, vertendo fumaça pelas narinas naquela noite fria... Só então, o bispo se deu conta da besta. A besta que se preparava para atacá-lo num golpe só de sua pata, conforme ele largava a moça no chão. O golpe, por fim desferido, desmaiou o sacerdote enquanto o lobo se preparava novamente para o ataque. Um ataque fatal.

Não! – Ela se colocou entre os dois. O vestido sujo de lama.

Dourados nos azuis, olhos que se cruzaram, piscando até compreenderem o que ela queria. A cabeça que ele abaixou até que ela pudesse tocá-lo e acariciar seu pelo.

Eu vou devolvê-lo a sua forma original... – sussurrou. – Eu juro.

Ela está por aqui! – gritavam mais vozes ao longe, na borda da floresta.

Vá... Você deve ir agora – ela pediu baixo. – Na próxima lua cheia, eu estarei aqui e desfarei esse feitiço. Você me entende?

Um único movimento de cabeça do lobo.

Obrigada – ela agradeceu, beijando a lista branca em sua testa.

Um uivo longo e doloroso se seguiu e o lobo corria para longe, sumindo na escuridão da floresta.

Achem-na!

As tochas iluminaram a cena do crime e os cães ladravam, irritados. Um pentagrama quebrado e um bispo caído, mas a prova final tinha sido usurpada. Não havia bruxa ou coven no local. Os olhos reluziram frustrados, enquanto os seus homens se espalhavam pela floresta em busca de rastros.

***

A porta foi açoitada pela mão do homem uma, duas... Três vezes seguidas, até que os ferrolhos fossem destravados e a criada ruiva delimitasse uma fresta para poder fitá-lo.

Devo falar com sua senhora – ele rosnou de dentro de sua cota de malha.

Ela não está... – disse, estreitando a distância entre a madeira e o beiral.

Eu não vou ser escorraçado da casa de uma bruxa! – bramiu ao bater com o braço forte contra a madeira, impedindo que a porta se fechasse. Seu olhar de fúria cintilava sobre a moça ao arremessá-la no chão e abrir passagem para a sala. – Diga onde ela está – exigiu, avançando até ela. Erguendo-a do chão frio pelos cabelos acobreados. – Eu só vou perguntar mais uma vez, entendeu?

Entendi – a voz veio detrás de si, fazendo-o se virar para fitar a morena. – Solte-a, Gilbert!

Alice... – sibilou, deixando os cabelos cor de fogo escorregarem entre seus dedos.

Onde está aquele estrangeiro?

Estrangeiro? – Ela sorriu sob o olhar escuro dele.

Robin MacArt – sentenciou irritado.

Não sei do que está falando...

Em duas passadas, ele estava sobre ela, agarrando-a pelos ombros.

Não brinque comigo! – O ar quente batendo contra seu rosto, os verdes nos castanhos enfrentando-os. – O demônio com quem se deitou, sua bruxa!

Não me deitei com demônio algum! – Ele sacolejava-a como se fosse uma boneca de pano, mas a altivez não desaparecia do rosto dela. Isso mexia com os nervos do Conde. Sempre fora assim... Alice sempre mexera com suas entranhas, entrando em sua mente como veneno. Bruxa amaldiçoada! – Me deitei com homens, ricos... Guerreiros... – A boca vermelha sangrava indecências, escorrendo pela pele macia dela. Queria tocá-la, rasgá-la ao meio em sua insanidade. Ela lhe tirava juízo, maldita mulher! – Mas nunca com um tal de Gilbert de Bohun! Este eu nunca quis!

Cale-se! – Ergueu-a do chão com apenas um braço. – Você está em minhas terras!

Você, sim, é um demônio! – rebateu seca, chutando-o com os bicos dos sapatos de couro curtido. – Normando imundo!

Eu mandei calar-se! – Atirou-a contra a parede.

Seu rosto estava em choque quando bateu contra a parede de pedra. O rubro do sangue escorrendo pelo cinza das pedras.

Alice... – Por um momento, ele voltou a ter consciência. Aproximou-se dela, deixando entrar no campo de visão da morena apenas os cabelos encaracolados escuros, emoldurando os olhos castanhos, que a fitavam estreitos... Quase ternos.

Como podiam facilmente mudar de aparência? – ela refletiu.

Saia! – Ferida, chutou-o uma vez mais. – Não me toque!

Alice... – A mão bruta parada a centímetros de seu rosto.

Ele, ao menos, era mais gentil. Sabia como tratar uma mulher... – Os olhos verdes verteram lágrimas. – Me esqueça, Gilbert!

Ao ouvir aquela confissão, os olhos castanhos perderam o brilho gradativamente, retirando de dentro da indumentária, um pergaminho. Entregando o papel a ela.

Essa é uma decisão do Bispo de Ossory. Seus filhos ficarão sob sua custódia enquanto as autoridades verificam a acusação de bruxaria imposta a você.

Meus filhos? – Os olhos verdes oscilaram ao tomar o pergaminho entre os dedos e fitá-lo. – Não podem fazer isso!

Eles já nos revelaram como suas heranças não lhes foram legadas... – Desviou os olhos do belo rosto dela e fixou-os em algum ponto do teto sobre suas cabeças. – E como seu atual marido enlouqueceu... – Voltou então a encará-la, a raiva se intensificando. – Só não souberam dizer nada sobre o paradeiro de Robin MacArt.

Os olhos dela brilhavam quando o rosto dele voltou a se aproximar.

Foi mais cuidadosa dessa vez, bruxa... – Sorriu bestialmente. – Mas eu vou encontrar algo que prove o que é capaz de fazer aos homens... Como os enfeitiça.

Você está louco!

Veremos. – Afastou-se dela. – Por ora, as crianças vão comigo.

Não!

Não quero envolver meus homens nisso, Alice... – Pela primeira vez, naquela sala, ela recuou. – Vejo que sob as palavras certas, você pode ser bastante compreensiva.

Virou-se para a criada ruiva que se erguera do chão há alguns minutos, após ter passado o efeito da pancada.

Traga-os. – Ela não se moveu. – Não me ouviu, mulher?

Silêncio.

Está tudo bem, Meath – consentiu a morena. – Traga-os.

Sim, senhora.

E numa mesura ostensiva, deixou a sala.

Não me surpreenderia se ela estivesse metida nisso com você.

Deixe Petronella fora disso...

Ele riu abertamente.

Não está mais em minhas mãos decidir seu destino, Alice.

As crianças entraram num alarido, acercando-se da mãe.

Escutem-me, vocês irão com Earl Pembroke...

Eles assentiram e ela os beijou a testa, um por um... Sem baixar nenhuma vez seu olhar na frente daquele homem. Quando a sólida porta se cerrou atrás dele, nem mesmo a prestativa Meath foi capaz de suportar o peso do corpo da morena.

Meath... – Agarrou-se ao vestido da ruiva, enterrando seu rosto nas dobras da lã.

Acalme-se, milady. – Afagou-a nos braços. – Os meninos provarão sua inocência...

***

Um homem de cabelos castanhos se aproximou da clareira na primeira lua cheia da estação. Os olhos cor de mel vasculhavam a escuridão, tentando encontrá-la: a bruxa ruiva.

As nuvens cobriam parcialmente a lua e ele ouvia apenas os sons da floresta. Sons que imitavam os seus próprios. Afinal, o que ele se tornara? Escondera-se por um quase um mês, abrigando-se em cavernas e lugares isolados, com medo de si mesmo. Lembrava-se vagamente do que lhe acontecera, da febre no corpo e como procurara Lady Alice. E exatamente ali, instalara-se uma lacuna branca... Ao menos até olhar a ruiva. A bela ruiva nua a sua frente, que não pôde tocar porque se tornara um lobo... E, então, ela lhe dissera que estaria ali, na próxima lua cheia. Desfaria o feitiço.

Um feitiço que o tornara um animal. Assim ele achava, nas roupas esfarrapadas que roubara de um varal qualquer. Desde aquela noite ele era humano. Não houvera transformações, mas queria ter a certeza de que não voltaria a ser lobo... Lembrou-se do receio nos olhos azuis dela e sabia que não queria ter aquela sensação novamente. Ver aquele brilho escuro de medo cada vez que o fitassem. Talvez quisesse apenas vê-la de novo.

A noite já avançara muito quando a lua saiu detrás das nuvens, tornando os olhos mel em dourados. Fazendo o corpo dele se vergar, os cabelos castanhos cobrirem-lhe as feições enquanto soltava um uivo. As unhas cresciam, rasgando-lhe a pele... Transformando-se em pelos. Pelos castanhos que se espalhavam pelo corpo de homem. E ele era lobo uma vez mais. Um lobo com sede e fome.

A corrida empreendida por entre as árvores, veloz como vento que lhe batia nos pelos. Um vento frio contra sua respiração quente. As veias latejando até avistar uma corsa, empinar o corpo e saltar em sua jugular, dilacerando-a. As presas afundando na carne tenra, sorvendo o sangue quase instantaneamente. O prazer que desfrutou ao se alimentar da corsa... Na fome do animal que era.

Volkodlák... Ele lembrou que ela o chamara assim.

Olhos dourados na escuridão e a boca cheia de sangue. Era isso que restara? Ele não podia ser essa fera. Os sentidos alertados pelo cheiro humano, cada músculo seu tensionado para a caça. E nada o seguraria, cada célula sua clamava por aquele cheiro, desejava seu gosto. Na espreita da carroça carregada de lenha, ele atacou no êxtase da batalha que corria sua mente, dominando-a. A força de mil homens destrinchando a carne clara... A sede saciada na última gota rubra que desceu por sua garganta antes do uivo que inundou a floresta.

O uivo do monstro que se tornara.

O monstro que devia aprender a controlar até que conseguisse achar a bruxa.

O lobo que habitava seu corpo a cada lua cheia... Era um amaldiçoado e pagava por suas escolhas erradas, estava claro agora.

***

Vamos, confesse! – ele exigiu em dentes, expondo sua raiva, dentro da roupa preta e branca. A face escura dos cães de Deus, o Inquisidor.

Com as roupas rasgadas, os braços virados para trás e seus pulsos amarrados por uma corda que se estendia até uma roldana com eixo, a mulher via o sangue coagulado marcando-lhe as pernas, resquícios da tortura sofrida anteriormente. A respiração era pesada e a pele que cobria o corpo tinha uma cor arroxeada devido aos hematomas dos mais variados tamanhos, que sucediam uns aos outros, conferindo uma aparência grotesca a ela. Havia gangrena em um dos pés e as mãos deformadas não podiam se agarrar em nada. Os cabelos ruivos haviam sido cortados e estavam colados à cabeça.

E agora, Petronella? – A corda foi puxada violentamente pelo torturador, através deste eixo, arrancando dela um urro de dor. – Não seria melhor confessares?

Um movimento dos lábios ressecados, rachados em veios vivos de sangue. As paredes de pedra que ela cansara de fitar infinitas vezes em busca de absolvição, mas só encontrava mais dor.

Diga alto! – Ele riu, enquanto deslocava os ombros e provocava diversos ferimentos nas costas e braços dela.

O desmaio e a sentença dos lábios odiosos de Ledrede:

Deixem-na aí um pouco mais, talvez quando recobrar a memória queira cooperar conosco.

Eu sou uma bruxa – era um sopro que chegava até seus ouvidos quando ele já cruzava os portões de ferro do calabouço.

Um sorriso em seus lábios de vitória e ele nem se deu ao trabalho de voltar os olhos para ela.

E será queimada amanhã, em praça pública, para absolvição de seus pecados; será a expurgação de Satã de seu corpo e um aviso para aqueles que ainda têm o coração imerso em trevas. Você servirá de exemplo aos que ainda professam essa religião pagã e se intitulam cordeiros quando afugentados pela verdade de Nosso Senhor! És uma herege proclamada e mostrarás sua verdadeira face num auto de fé.

Ela voltou a cerrar os olhos e a fechadura rangeu ao ser lacrada.

A luz será gravada em seu corpo através do fogo e a levará a seu verdadeiro senhor. – Fez o sinal da cruz e a deixou sozinha.

Estaria livre ao amanhecer... Livre de tudo.

Lembrou-se dos olhos de Lady Kyteler ao deixar a Irlanda, ainda altivos, como se a Inquisição nunca a alcançasse. A falta de notícias que invadira a casa em Dublin por meses até que eles bateram nas portas, precedidos por Earl Pembroke e a levaram dali, culpada por se aliar a uma bruxa. Então, na primeira tortura, quando o rastelo açoitou sua carne, viu os olhos dourados invadirem sua alma, unidos aos pelos castanhos de lobo. O homem que ela transformara em lobo, que não pudera salvar... Ela era uma bruxa.

Bruxa.

Pediu desculpas por sua falha com ele, por não ter sido tão boa representante da Deusa. Achava que aquela era sua missão, mas por algum motivo, fora abandonada. Pediu desculpas à Deusa por se desviar de seu caminho e, quando abriu os olhos, havia o povo que gritava ao seu redor. Havia o cheiro de enxofre na camisola que vestia, mas não havia medo em seus olhos. Os gritos de “queimem!” eram distantes. Os rostos claros sucediam uns aos outros na sua visão, não havia ninguém conhecido até o capuz dele ser baixado e os olhos méis pousarem nela intensamente. Os lábios que se moveram vagarosamente... E nada mais importava:

Eu a abençoo.

Ela sorriu sem se importar com as chamas que começavam a crepitar abaixo de si. Estava em paz antes dela tocar em seu corpo frágil. Os olhos méis se desviaram da imagem dantesca quando viu a cabeça dela pender para o lado, sem vida. Não havia mais nada ali para ele... Não ao menos, por ora. Não sabia nem mesmo onde Alice estava.

Um dia ele iria amaldiçoá-lo como haviam feito a eles. Ele jurou diante dela, quando o crepúsculo banhava a praça e ninguém mais o via. Os raios pálidos revelando um brilho arroxeado entre as cinzas, que vieram até seu campo de visão em forma de pedra: havia uma ametista ali. Os dedos se fecharam ao redor da pedra, esbranquiçando os nós.

Um uivo cortou o ar, conforme o lobo corria para longe, na direção da floresta.

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