Capítulo 6

Nós acabamos de comer em completo silêncio. Eu me obriguei a engolir a sopa, tinha perdido o apetite. 

-Você não vai tirar os meus pontos.

-Por que não? - Afasta a tigela vazia.

-Posso fazer isso sozinha.

-Eu tenho certeza que sim, mas eu posso te ajudar. - Ele cruza os braços, me encarando - Compensar o que fez por mim.

-Eu não fiz nada de mais.

-Você cuidou de mim.

-Você cuidou de mim primeiro.

-Eu não vou forçar você, mas seria mais prudente que outra pessoa fizesse isso. Você pode acabar se ferindo de novo.

Matteo respira fundo, se levantando e eu desvio o olhar do seu, observando minhas mãos cheias de cicatrizes e calos. Eu com certeza estou sendo imatura, e ele está certo, mas a ideia de ter outra pessoa observando uma vulnerabilidade minha ainda me apavora. Eu também me levanto, pegando nossas tigelas.

-Não se preocupe com isso, você também precisa descansar. 

O homem tira, cuidadosamente, os utensílios da minha mão, levando-os até a pia. 

Eu sigo para o banheiro, evito os espelhos e entro na banheira. Puxo os joelhos para o peito e os abraço, deixando que a água me cubra. Fecho os olhos enquanto deixo minha cabeça tombar para a frente. 

O buraco no meu peito ameaça me engolir e eu tento lutar contra ele buscando a minha única lembrança boa e me agarrando a ela. Deixo que a voz doce da minha mãe ecoe em meus ouvidos uma vez mais. Ela me tranquiliza e o buraco volta a se esconder. Permaneço na mesma posição por mais alguns momentos antes de me lavar. 

Desço para a sala alguns minutos depois, encontrando Matteo limpando suas facas, a lareira está acesa e eu me aconchego na poltrona mais perto.

-Sabe... - Ele começa - Você roubou a minha adaga favorita.

-Qual? - Sorrio - Está falando dessa adaga?

Tiro a faca do cós da calça e a giro entre meus dedos. O macho para o que estava fazendo e observa atentamente o movimento da minha mão, depois olha meu rosto com um sorrisinho de lado. Mais uma vez apelo para todo o treinamento passado para evitar que meu rosto core.

-Exatamente.

-Eu perdi as minhas e essa parece ser capaz de me servir bem. - Jogo-a para cima e a pego sem qualquer corte ou arranhão - Eu gosto dela.

-Então acho que posso ficar com essas.

Ele levanta a faca que estava limpando e faz sinal para as outras na mesa, só então eu reconheço como as minhas facas. Estão em menor quantidade do que antes, mas ainda sim são elas. O mestre das sombras volta a se concentrar nas adagas.

-Onde você as encontrou?

-Foi você quem trouxe. Atravessou com duas nas mãos, as outras estavam presas na sua perna.

-Eu as quero de volta, mas vou ficar com essa. - Volto a brincar com a adaga dele.

-Está sendo egoísta. - Sorri de lado.

-Não acho que...

As palavras morrem na minha boca ao mesmo tempo em que eu escuto um rugido alto e consideravelmente próximo. Os olhos de Matteo encontram os meus, seu sorriso some e nós nos levantamos rapidamente. Ele pega minhas adagas enquanto as sombras cochicham em seus ouvidos. Seguro o cabo da adaga com força.

-Eu te disse, não tem como fugir. - Ando em direção a porta.

-Onde você vai?

-Elas vieram aqui por mim, eu estou pronta pra elas.

-Não vai enfrentar essas coisas sozinha. - Vem rapidamente até mim.

-Eu estive enfrentando essas coisas sozinha há muito tempo.

-Não mais.

Os olhos amêndoas de Matteo estão cheios de sinceridade e algo mais que não sou capaz de classificar. Sinto um caroço diferente começar a crescer em meu peito, algo que eu não havia sentido antes. Eu apenas assinto antes de abrir a porta e sair para a neve. 

Quatro. Eu as conto vindo em nossa direção, na minha direção. O frio me faz tremer a cada passo que eu dou, cerro o punho livre deixando que meu poder saia. Agradeço mentalmente quando sinto a eletricidade familiar entre meus dedos. Me preparo antes de olhar para o homem ao meu lado.

-Cuidado com as garras, elas estão cheias de veneno. É certo também que não são só essas, mais devem estar escondidas esperando para atacar.

Ele assente. É quase impossível vê-lo entre as sombras, mas eu me surpreendo quando encontro seu rosto. Seus olhos têm um brilho fatal, é como se eu estivesse encarando um predador, como se as bestas do outro lado não passassem de presas, suas presas. Poderia ser uma visão assustadora, mas eu gostei bastante daquilo, é de certa forma... Atraente. Sorrio rapidamente antes de atravessar. 

O primeiro monstro grunhe de dor quando minha mão encontra sua pele, cheiro de queimado invade minhas narinas ao mesmo tempo em que eu giro a adaga e corto a pata antes que possa sequer se aproximar de mim, giro mais uma vez e a cabeça é lançada para longe do corpo. Ao meu lado sombras escondem Matteo e a segunda besta. Atravesso para a terceira. Dessa vez permito que meu poder cubra toda a criatura, que ruge, eu cravo e desço a faca em seu estômago, sangue cai sobre mim, eu desvio para que o corpo do bicho encontre o chão.

-Tem alguém aqui. - Matteo diz ao meu lado, há sangue negro por todo o seu corpo e rosto - Eu o senti através das sombras.

Aquela informação me deixou em choque. Nada nem ninguém de Maghdon, além das bestas, havia se aproximado de mim. Minha mão livre começa a tremer ainda mais e eu sinto o buraco voltar a crescer. Puxo o ar com força e certo o punho.

-O quão perto? - Não consigo terminar.

-Consideravelmente perto. Há mais três desses bichos.

Começo a procurar entre a neve e as árvores distantes, mas nem mesmo a visão feérica é capaz de me ajudar agora. Um toque rápido e lento chama a minha atenção, olho para a mão de Matteo há poucos centímetros da minha. Ele toca meus dedos rapidamente mais uma vez e então entrelaça nossas mãos. Eu volto a olhar em seus olhos, sentindo o buraco diminuir.

-Eu posso encontrá-lo. Não vou deixar que quem quer que seja chegue perto de você. Mas eu preciso ir até ele. Acha que consegue lidar com as outras bestas?

-Eu consigo.

-Eu tinha certeza que sim.

Rugidos fortes atraem a minha atenção, mais três saem da floresta e vem correndo. O macho ao meu lado aperta de leve meus dedos.

-Você consegue. - Ele me solta, coloca mais uma adaga na minha mão e atravessa.

Dessa vez espero que elas se aproximem. Ataco a costela da primeira e atravesso para atacar as costas da segunda. A terceira cai rapidamente com um único golpe da adaga de Matteo. Atravesso e volto para a primeira, atingindo seu ferimento com o meu poder, ela cai se debatendo no chão. Eu me preparo para atravessar quando um grito de dor sai da floresta. Não é do homem das sombras mas reconhecer isso me custou a concentração, um chute forte acerta minhas costelas e eu sou arremessada para longe. Não me permito sentir a dor e levanto rapidamente, pronta para interceptar o golpe da última besta. Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, meu poder a atinge e ela cai. 

Me certifico de que todas estão mortas acabando de cortar suas cabeças. Mancando, eu vou até a porta do chalé, esperando por Matteo, que aparece pouco tempo depois voando com um homem inconsciente nos braços. Ele o joga no chão e para ao meu lado. Eu arregalo os olhos quando reconheço o homem, viro o rosto rapidamente.

-Você conhece?

Eu quase não o escuto quando milhares de lembranças voltam a minha mente. Meu cabelo sendo puxado com força, meu pescoço, punhos e tornozelos sendo perfurados, o barulho de um chicote, uma focinheira...

-Infelizmente. Ele é um dos capangas do rei. - Olho mais uma vez para o monstro jogado aos meus pés - Não está morto?

-Não. Pensei que seria melhor se eu interroga-lo.

-Ótimo. - Engulo em seco - Eu vou participar.

-Nós temos uma sauna do lado de fora do chalé. Eu o levo até lá e o amarro antes de começarmos.

Assinto, incapaz de sequer formular uma frase. Esse homem significava fraqueza para mim, me humilhou e torturou mais vezes do que eu posso contar. Mas ele se recusava a me acompanhar nas missões porque sabia que quando eu o encontrasse sem o efeito do veneno que continha meus poderes, ele não teria chance. 

Matteo e eu o amarramos em uma cadeira no centro do local onde era a sauna. Encarei mais uma vez os cabelos louros ensebados do homem e seu rosto odioso e senti nojo. 

Saio rapidamente para o vento frio, não dou dois passos antes de cair de joelhos e vomitar. Eu me assustei quando mãos seguraram os meu cabelos, impedindo que eu os sujasse. Coloco tudo para fora, até sentir que meu estômago sairia junto. O macho me ajudou a ficar de pé quando minhas pernas falharam e nos cobriu com suas asas quando eu tremi. 

-Você quer falar? - Perguntou ainda me segurando.

-Aquele homem... - Respiro fundo, me controlando - Ele era meu carcereiro quando eu estava em Maghdon. Era responsável pelas refeições, pelas doses de veneno que eu recebia e pelas punições. Eu era seu bichinho. Ele me espancava quando e quanto queria, ele era meu torturador... - Estremeço mais uma vez e suas asas se fecham ainda mais ao nosso redor.

-Não precisa entrar se não quiser. Não precisa ver esse homem nunca mais se não quiser.

-Eu quero. Eu... Eu preciso fazer isso.

-Uma palavra sua e ele estará morto.

Assinto. Lentamente, as asas dele voltam a se encolher e ele me solta quando tem certeza de eu consigo ficar de pé sozinha. Eu respiro fundo algumas vezes antes de entrar atrás dele e trancar a porta atrás de mim.

-Tudo bem se eu usar a adaga agora? 

-Claro. 

Passo a faca para ele e me coloco atrás do homem inconsciente, procurando um lugar que eu não possa ser vista. Matteo permite que suas sombras se espalhem pelo local e se concentrem em mim, me escondendo.

-Vocês vão ser apresentadas formalmente agora. - Ele olha para a adaga atentamente, ódio gelado estampado em seu rosto - Essa é a Fatiadora.

O macho alado desce a adaga sobre a coxa do meu torturador, que acorda na mesma hora, se debatendo e gritando de dor. 

-O que quer aqui? - Sua voz era calma e fria. 

O homem permanece gritando de dor, ele se aproximou vagarosamente, girando a faca.

-Não! Para, por favor!

-O que veio fazer aqui?

-Nós... Nós estamos procurando alguém... A rastreamos até aqui.

-Quem?

-Uma prisioneira... Ela pertence a Maghdon, é uma fugitiva.

-Ela não pertence a ninguém! - Ele puxa a adaga da coxa do homem, que grita mais uma vez - Como a rastrearam? - Nenhuma resposta. A adaga perfura a outra coxa. - Como a rastrearam?

-Feitiço... Feitiço! Ela está enfeitiçada!

Meu coração dispara. Meses fugindo e eles me encontrando. Se eu estou enfeitiçada, não tem como fugir. Fecho os olhos tentando controlar o ódio que passa pelo meu corpo.

-Como quebramos o feitiço?

-Eu não sei. 

Mais um grito de dor quando a adaga sai da outra coxa do prisioneiro. As feições do homem das sombras pareciam calmas, mas seus olhos estavam cheios de ódio.

-Como quebramos o feitiço?

-Eu não sei! Eu juro! Eu não sei!

-O que vocês querem com ela? - Ele gira a faca nas mãos e antes que o homem possa falar, a carava em seu ombro. - Porque querem matá-la?

-Nós não... Nós não recebemos ordens para matar... Temos que levar ela de volta!

Meu corpo todo treme. Eles me querem de volta. Lembranças da minha existência infernal vêm a tona e eu começo a ficar sem ar. Desespero ameaça me engolir mas não me permito sentir. Eu jurei que não voltaria. Eu não vou voltar. A faca sai e perfura o outro ombro.

-Quem enviou você? - A faca gira. - Quem está enviando as bestas?

-A rainha! A rainha! - Ele grita. - O rei era quem tinha dado a ordem e depois que ele morreu, ela manteve...

Decido que é hora de aparecer. Os olhos de Matteo encontram os meus e eu assinto. Escondo o medo, respiro fundo, levanto a cabeça e endireito os ombros antes de caminhar lentamente e me colocar ao lado dele. 

O desespero nos olhos do meu ex torturador me agrada, sorrio ironicamente para ele e meu sorriso só alarga quando uma mancha escura aparece em sua calça.

-Sentiu minha falta, Don? - prrgunto com divertimento - Pelo visto você se lembra da promessa que eu te fiz, não se lembra?

Seu corpo todo treme e ele não responde. Me aproximo lentamente, removendo a adaga e colocando o dedo na ferida, soltando um pouquinho do meu poder. Ele grita.

-Oh... Não me diga que esqueceu do que eu te prometi. - Solto mais um pouco - "Não importa o quanto demore, mas quando eu sair daqui, e eu vou sair, vou garantir que você implore para que eu te mate."

Recito minhas próprias palavras, me lembrando exatamente da dor do chicote contra as minhas costas nuas, da focinheira machucando meu rosto, da coleira apertando e furando meu pescoço e do ódio que corria pelas minhas veias. Meu sorriso de torna feroz.

-Não... Por favor! - Ele chora.

-Já está chorando? Mas nós acabamos de começar. - Com a ponta do indicador eu traço o pescoço dele, liberando poder apenas o suficiente para machucar. - Lembra da coleira que você me deu? Era bem aqui que ela ficava, não é?

-Por favor! Eu não...

-E da focinheira? - Traço a forma do objeto sobre o seu rosto. 

Ele treme, grita e chora, seu rosto e pescoço agora na carne viva, assim como os meus já foram um dia. Eu o rodeio como um animal, me permitindo aproveitar aquele momento como ele uma vez também aproveitou. Ajoelho para ficar cara a cara com ele, coloco minha mão sobre seu ombro machucado, ele se debate quando a energia encontra seu corpo.

-Lembra o que me dizia sobre a minha mãe? - Seus olhos se arregalam com o medo. - "Eu adoraria poder ter feito sua mãe gritar mais, acho que ela morreu muito rápido." - Me levanto sem tirar a mão dele, passando por seu peito, braços e costas.

-Por favor! - Ele grita. - Por favor!

-O que você quer? - Falsa calma saindo da minha voz.

-Por favor! - É com Matteo ele fala agora. - Para ela! Por favor! Me... Me mata!

Eu encaro o homem escondido nas sombras, ele não responde, não me manda parar. Apenas me encara de volta, de olho em cada passo e movimento meu. Volto minha atenção para o homem na cadeira.

-Por favor, Lucille! Eu estou implorando! Acaba logo com isso, me mata!

Levo minha mão esquerda ao seu pescoço e solto a carga suficiente para matá-lo. Sua cabeça tomba e eu permaneço de frente para ele, sem saber como reagir. 

Não sei quanto tempo se passou quando eu me viro para encarar Matteo. Ao contrário do que eu pensei, não há julgamento em seus olhos, apenas compreensão. Ele vem até mim calmamente, estica sua mão direita e toca suavemente as cicatrizes no meu pescoço. Fecho os olhos, sentindo meu corpo todo acalmar, aproveitando o carinho que há muito tempo eu não tinha.

-Está tudo bem. - Ele sussurra. - Sei de alguém que pode quebrar o feitiço. - Abro os olhos e o encaro. - Nós vamos para a Cidade Estrelada.

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