Na manhã seguinte, Sophie acordou com a luz suave filtrando pelas cortinas de linho. Por um momento, não se lembrou exatamente onde estava — até ouvir o som distante de um barco passando pelo canal e sentir o aroma úmido e salgado que vinha da janela entreaberta.
Tomou um café rápido no salão do hotel, observando turistas ainda sonolentos e alguns moradores apressados. Enquanto bebia o último gole, viu Matteo passar pela porta, conversando com um homem mais velho e carregando um rolo de tecido cuidadosamente embrulhado. Ele não a viu, e Sophie hesitou entre chamá-lo ou deixá-lo seguir. No fim, apenas observou enquanto ele desaparecia pela rua estreita. O evento ocupava o grande Palazzo Rossi, um prédio imponente com paredes de mármore branco e colunas elegantes. Quando Sophie chegou, já havia uma movimentação intensa: técnicos instalando luzes, floristas posicionando arranjos exuberantes, garçons ensaiando a postura impecável. Ela montou seu equipamento num canto e começou a registrar os bastidores — mãos ajustando cristais, detalhes de bordados, a luz atravessando vitrais centenários. — Preciso que capture cada detalhe — disse a coordenadora da festa, uma mulher de vestido vermelho e olhar calculista. — Mas, acima de tudo… quero que capture a essência. Sophie assentiu, escondendo um leve sorriso. Era justamente o que ela mais sabia fazer. No meio da correria, reconheceu uma voz familiar. Virou-se e viu Matteo, conversando com um dos decoradores e examinando um painel dourado. Havia algo diferente nele — a expressão mais séria, concentrada. — Você? — disse ela, aproximando-se com curiosidade. Matteo ergueu o olhar, surpreso, mas sorrindo. — Achei que só nos veríamos por acaso de novo. Mas parece que Veneza gosta de repetir encontros. Ela riu. — O que está fazendo aqui? — Trabalho. — Ele tocou levemente o painel. — Esta peça foi danificada há anos, e hoje ficará exposta pela primeira vez desde a restauração. Sophie olhou para o dourado delicado e, de repente, sentiu que aquela noite poderia guardar mais do que apenas um evento glamoroso. .... À noite, o Palazzo Rossi parecia outra realidade. Os vitrais iluminados projetavam manchas coloridas nas paredes de mármore, e um lustre monumental espalhava uma luz dourada sobre o salão principal. O ar estava impregnado de perfume caro e conversas em vários idiomas. Sophie circulava com a câmera, capturando sorrisos, gestos discretos, copos tilintando. Tudo parecia perfeito… até que notou Matteo, a alguns metros, perto da peça que ele havia restaurado. Estava diferente de mais cedo — não sorria, e seus olhos seguiam discretamente um homem alto, de terno cinza, que parecia evitar cruzar seu olhar. Ela fotografou de longe, mais por instinto do que por escolha. Quando aproximou a lente para focar na obra dourada, percebeu algo estranho: um detalhe na superfície, quase imperceptível, que não estava lá de manhã. Uma marca fina, como um risco novo. Matteo percebeu que ela olhava e se aproximou, mantendo a voz baixa: — Você reparou? Sophie assentiu, confusa. — Sim… mas o que significa? Ele olhou rapidamente ao redor, como quem mede o risco de falar. — Significa que alguém tocou na peça. E que isso não é nada bom. Antes que ela pudesse perguntar mais, o homem de terno cinza passou por eles, e Matteo interrompeu a conversa, endireitando o corpo e voltando ao tom cordial de anfitrião casual. — Continue fotografando, Sophie — disse ele, quase como um pedido, mas com uma intensidade que ela não esperava. — Registre tudo. Pode ser mais importante do que parece. Ela o observou se afastar, desaparecendo na multidão, e sentiu que, de repente, a noite tinha ganhado um peso diferente. O evento seguia com risos, música suave e um desfile de taças cintilantes. Sophie continuava fotografando, mas agora seus olhos buscavam mais do que ângulos bonitos — procuravam padrões, olhares, movimentos que não se encaixavam na coreografia perfeita da festa. Quando o mestre de cerimônias anunciou a apresentação oficial da peça restaurada, todos se reuniram em torno dela. O painel dourado, iluminado por refletores, parecia irradiar uma luz quase viva. Matteo se posicionou ao lado, pronto para contar sua história. — Esta obra — começou ele, a voz clara e firme — pertence à memória de Veneza. Mas, antes que pudesse continuar, um estalo seco ecoou pelo salão. As luzes piscaram, e um ruído metálico soou perto da peça. Um grito curto atravessou o burburinho: o painel tinha caído parcialmente do suporte, inclinando-se perigosamente. Houve um movimento instintivo da multidão para recuar, mas Matteo avançou, segurando a estrutura com as próprias mãos antes que ela despencasse. Sophie, sem pensar, levantou a câmera e registrou o momento — o esforço dele, o brilho tenso nos olhos, a sombra rápida do homem de terno cinza se afastando discretamente pela lateral do salão. Dois seguranças correram para ajudar, recolocando a obra no lugar. O mestre de cerimônias improvisou algumas palavras para acalmar o público, e a música voltou, mas o clima já não era o mesmo. Matteo, respirando fundo, aproximou-se de Sophie. — Viu quem estava ali? — perguntou em voz baixa. — Vi… e acho que você também — respondeu ela, guardando a câmera como se estivesse escondendo algo precioso. Ele assentiu, sério. — Vamos conversar depois. Não aqui. Enquanto a festa tentava recuperar o brilho, Sophie percebeu que agora estava no centro de algo que não tinha nada a ver apenas com arte. A festa ainda fervilhava no salão principal, mas Matteo conduziu Sophie por um corredor lateral, silencioso e pouco iluminado. Passaram por portas fechadas, até chegarem a um pequeno pátio interno, onde o som distante da música se misturava ao murmúrio de uma fonte antiga. Ele se apoiou na balaustrada de pedra, respirando fundo antes de falar. — Aquela peça… não é só arte. É um fragmento de um afresco perdido do século XV. Há anos, especialistas acreditavam que tinha sido destruído. Mas eu sabia que estava escondido — e, pior, em mãos erradas. Sophie franziu o cenho. — E o homem de terno cinza? Matteo olhou para o lado, como se temesse que até as paredes pudessem ouvir. — O nome dele é Lorenzo Vieri. Comerciante de arte, oficialmente. Mas, na verdade, é conhecido no mercado negro. Ele tentou comprar essa peça antes da restauração… e eu recusei. Desde então, tem me seguido. Sophie sentiu um arrepio. — Você acha que ele tentou danificá-la hoje? Matteo hesitou, mas assentiu. — Não seria a primeira vez. E não será a última. Ele se aproximou um pouco mais, a voz baixa, quase um sussurro. — Preciso de alguém que veja o que os outros não veem. Alguém que capture provas, detalhes… algo que a polícia possa usar se as coisas saírem do controle. Sophie sentiu o peso da proposta, mas também um estranho impulso de dizer sim. — E se eu aceitar… o que exatamente eu vou fotografar? Matteo a encarou, sério. — Tudo. Pessoas, gestos, sombras. Cada detalhe pode ser a diferença entre salvar a peça… ou perdê-la para sempre. O som distante de passos ecoou pelo corredor, fazendo-os trocarem um olhar rápido. Matteo se endireitou. — É melhor voltarmos. Mas, Sophie… a partir de agora, não é mais só um trabalho. Ela sabia disso.