Capítulo 2

Na manhã seguinte, antes de amanhecer, Kira saíra da cabine do capitão e caminhou até a proa, observando o mar. Não dormira, passara a noite sentada sobre a cadeira, encarando o mar, entre curtos cochilos e longos suspiros, pressentia vibrações ruins e o Pesadelo Marinho estava inquieto, o que a irritava muito.

Logo, Sr. Willians aparece ao seu lado, ainda sonolento.

— Não conseguiu dormir, capitã? — questionou entre bocejos.

— E pelo visto nem você...

Estava tudo calmo, ela se encheu de preocupação, àquela hora, deveriam ter alguns barcos atracando no porto, ou pelo menos Gibbs já estaria se preparando para vender suas mercadorias.

— Está um clima estranho. — comentou — Até para os padrões de Turturem.

— Sim, mas creio que logo estaremos a par de tudo. — Sr. Willians se move até o mastro principal, onde Oscar estava parado.

Kira se dirigiu aos degraus que levam ao convéns inferior, se deparando com uma Pria sonolenta, subindo os mesmos.

— Já está muito tarde? — questionou.

— Não, ainda falta bastante tempo para amanhecer, creio que não tenha passado mais do que três ou quatro horas. — respondeu — Onde está Rubi?

— Dormindo.

A capitã arqueou as sobrancelhas e desceu, encontrando duas portas, uma de cada lado, um grande espaço mais a frente e as celas ao fundo. Entrou a direita, encontrando Rubi ainda adormecida, nos braços de Ellenne que passava as mãos pelos cabelos da menina.

Ao perceber que Kira estava presente, levantou levemente, o corpo.

— Ela está queimando em febre. — sussurrou.

Kira se aproximou, agachando, pôs a mão sobre a testa da criança, que estava extremamente quente, e cheia de suor.

— Talvez seja pelas roupas molhadas. 

— Não é a primeira vez que Rubi adormece nessas condições, deve ser outra coisa. — Kira diz se levantando.

Ergueu Rubi nos braços e caminhou com ela para fora, rumo a sua cabine. Seguiu até o fundo, onde havia o quarto, com uma cama, um baú e a pequena claraboia.

Deitou a menina, retirando suas botas e roupas molhadas.

Dentro baú ainda estavam as roupas da pequena Alicia, envoltas por um lençol velho, que acabou por protegê-las da poeira.

Pegou um vestido, o menor que achou, e vestiu a menina, ficara um pouco folgado, visto que Rubi era mais magra que Alicia quando criança, lhe pôs meias aos pés e embrulhou-a com os lençóis da cama. 

— Fique aqui com ela, vou verificar se Gibbs está em Turturem. — disse a Ellene que a seguira.

Saiu da cabine direto ao convés, onde Sr. Willians verificava as cordas e as caixas velhas do navio, com Oscar em seu encalço, recolhendo aquilo que não era útil. Pria estava próxima ao timão, quando caiu ao chão gemendo de dor.

A capitã se dirigiu até ela, percebendo que também estava queimando em febre, mas com pequenos espasmos e a pele molhada de suor.

— Sr. Willians! — berrou.

O velho marujo se aproximou o mais rápido que pôde. 

— Rubi está com febre, agora Pria apresenta sintomas parecidos. — informou o encarando.

Estava agachada ao lado da garota que chorava se contorcendo de dor.

— Isso não é bom, capitã. — diz fracamente.

Ela se levanta calmamente e coloca a mão sobre a testa do Sr. Willians, que estava um pouco quente.

— Também está apresentando sintomas, Sr. Willians. — resmunga — Oscar?

— Estou bem, capitã. — respondeu.

Observando-o, percebeu que era o único entre os três, que estava aparentemente bem.

— Leve Pria para minha cabine, a coloque junto com Rubi. — ordena — E você vá descansar, mandarei Oscar lhe monitorar, por precaução. 

Sr. Willians saiu caminhando devagar, a respiração estava pesada, sentia um pouco de dor de cabeça, mas a febre ainda era baixa e não teve nenhum espasmo ou suor.

Com as mãos na cintura, tentou entender o que estava acontecendo. Não haviam feito nada de diferente até aquele momento e o Pesadelo Marinho não era capaz de causas esse tipo de sintoma, mesmo sendo um velho navio amaldiçoado.

— Talvez seja a carne de porco. — escutou Ellenne comentando.

Ao virar, encontrou a garota apoiada ao timão.

— Pria e Rubi comeram bastante, Sr. Willians ingeriu uma certa quantidade também, menos você, Oscar ou eu. — continuou.

— Talvez... 

Os primeiros raios de sol apareciam por entre as nuvens, ao longe, mas nenhum sinal de Gibbs ou qualquer mercador.

— Eu não sei bem o motivo, mas demora um pouco até alguém aparecer pela manhã. — comentou olhando para o porto — Já tem bastante tempo isso...

— Capitã, irei até o bordel, talvez tenha acontecido o mesmo com os marujos. — Oscar informa.

Ela apenas assente com a cabeça, estava pensativa.

— Acho que eu deveria ter aprendido algum feitiço de cura, ou algo assim... — resmungou.

— Eu sei um pouco de magia, não o suficiente para controlar um monstro marinho, como você, mas é útil. — diz um pouco envergonhada — Fiz o que pude, a febre de Rubi diminuiu um pouco e consegui aliviar os espasmos de Pria, apenas.

— Se não consegue fazer mais do que isso, usando magia, não deve ser a carne que causou os sintomas. 

Ellenne deus de ombros.

— Quando Oscar retornar, tomarei uma atitude, até lá, temos uma conversa importante, não é? — Kira se coloca a frente dela.

— Bem, a repercussão sobre a Capitã Kira ter sido sequestrada, ainda bebê, pelo capitão Julius fora tão grande, que chegou aos ouvidos de minha mãe. Ao saber, teve plena certeza que se tratava de minha irmã mais velha, Eilleen, a qual eu nunca cheguei a conhecer. — começa — Me ofereci para te procurar, a única coisa que me prendia era a doença do meu pai, não queria que ele partisse enquanto eu estivesse fora, então quando faleceu, parti a sua procura.

A capitã permaneceu em silencio.

— Tive algumas dúvidas no começo, já que você tem uma personalidade que não condiz com a nossa família, mas dada a fama do seu pai, não era de se esperar, e quando te vi ontem à noite, foi impossível negar. — continuou — Mamãe passou os últimos anos se culpando, mesmo sabendo que você não pertence a nossa família.

— O que quer dizer com isso? — Questionou — Somos filhas de pais diferentes?

— Sim, somos, seu pai é o capitão Petrus Bezalel, era um homem cruel, pior que Darkson, mas desapareceu antes do seu nascimento, caso contrário, teria sido levada por ele, ou morta...

— Morta?

— Ele deixou bem claro que deveria ser um menino, caso fosse menina, deveria ser morta por causa de uma certa maldição ou algo parecido, não deu muitos detalhes. — respondeu — O caso é, com o desaparecimento do seu pai, mamãe decidiu te manter viva, mesmo que Petrus pudesse matar as duas.

— O capitão Petrus Bezalel desapareceu enquanto procurava pelo Oceano Infernal. — Kira estava atônita, era muita informação.

Suspirou tentando organizar todos os pensamentos e as novas perguntas que surgiam.

— Pois é... sobre isso... — Ellenne estava receosa.

— O que tem?

— Ouvi rumores, quando cheguei, sobre um navio fantasma, rondando Turturem. — respondeu — Disseram que os marujos estavam a sua procura.

Era coisa demais para sua cabeça, a irmã e uma mãe, seu passado não tão conveniente quanto gostaria e um suposto pai a sua procura, provavelmente com intenção de matá-la ou coisa pior.

— Há mais alguma coisa que eu precise saber? 

— Realmente acredita em mim? — questionou com um enorme sorriso — Tive tanto medo de que me desacreditasse ou me jogasse aos tubarões.

— Sentimento normal. 

— Não para mim, vivo uma vida completamente diferente da sua. — rebateu — Mas, mamãe quer te conhecer, passou tanto tempo esperando sua volta, vem comigo, por favor.

Kira cruzou os braços em meio a suspiros descontentes.

— Ellenne, eu acredito e aceito tudo o que disse, mas não quero ter um envolvimento familiar agora, além do mais, estou com problemas que preciso resolver.

— Desculpe...

— Pode ficar o quanto quiser, desde que não interfira. — informou.

Desceu pelo convés inferior. Caso Ellene ficasse, Kira iria organizar seus pensamentos e elaborar algumas perguntas importantes, talvez tivesse respostas satisfatórias.

O dia estava quase totalmente claro, e ao longe, pelo porto, observou Oscar vindo rapidamente, com expressão nada agradável. Alguns comerciantes estavam finalmente aparecendo, pelo mar via navios velejando lentamente, mas nada de Gibbs ou sua tripulação, já que Louhin, a velha bruxa, estava morta, teria que esperar.

— Capitã, não tenho boas notícias. — disse ofegante.

— Diga logo.

— Perdemos toda a tripulação e ouvi certos rumores, parece que está havendo uma maldição, não apenas aqui, mas em todos os três reinos, incluindo as ilhas piratas. — informou atônito — E essa não é a pior parte, estão dizendo que os mortos voltaram a vida e vagam pela noite, por isso Turturem está tão vazia.

Se realmente uma maldição caíra sobre o velho mundo, Kira teria que repensar seus planos e a ideia maluca de Ellenne sobre o navio fantasma não parecia tão louca assim.

— Irei desembarcar com Ellenne, enquanto isso fique de guarda e desancore o navio, deixe-o à deriva. — ordenou.

— Mas por que, capitã?

— Precauções. 

Ela desceu pela rampa enquanto gritava para sua irmã lhe acompanhar.

— Aonde vamos? — questionou.

— Procurar aquele imprestável do Gibbs.

Caminharam por entres os mercadores, prostituas e corsários. Poucos estavam no local, parecia até uma ilha diferente, se não fosse pelo cenário decadente.

Estava se sentindo desconfortável a cada passo, as botas ainda úmidas, o cabelo cheirava mal, a roupa também não secara totalmente e desejava imensamente um banho, roupas secas e um descanso.

O encontrou, Gibbs, sentado sobre uma grande caixa, sem seus habituais brutamontes de guarda. Parecia mais velho e cansado, desde a última vez em que o vira.

— Gibbs. — disse se aproximando lentamente.

O homem levantou a cabeça se assustando e levantou bruscamente, quase como em um pulo.

— Capitã Kira?

Diferente do que estava acostumada, ele não mantinha a soberba, na verdade, apresentava certa demência.

— Quem mais poderia ser? — questionou.

— Pensei que fosse um deles...

— Deles quem?

— Os mortos... não soube?

Realmente Kira tinha que admitir, estava mais pálida que o normal, olheiras escuras e profundas, bem mal alimentada e de aparência esgotada.

— Exatamente sobre isso que preciso de informações, mas primeiro, — cruzou os braços — preciso saber se tem havido sintomas de pessoas adoecendo sem explicações.

Ele levantou o olhar para ela.

— Sim, perdi mais da metade dos homens dessa forma, no início achávamos ser apenas um mal súbito, porém, continuou... 

— Há uma cura? Quais as causas?

O velho suspirou, enquanto pousava as mãos ao lado.

— São os mortos que estão causando isso, o contato com eles nos adoecem. — respondeu — Só tem uma cura...

— E qual é? 

— Lágrimas de felicidade uma sereia, misturada ao sangue de uma bruxa com veneno da serpente de fogo negro. — esfregou os ralos cabelos grisalhos — As sereias sumiram, caso queira saber e não é fácil capturar uma serpente de fogo negro.

Ela possuía uma serpente de fogo negro, o sangue de bruxa também não era difícil, porém, teria que passar por cima de seu orgulho e invocar as sereias. Acabaria devendo um favor a elas, finalmente, como Calysto queria.

— Quanto tempo leva para a pessoa morrer? — questionou suspirando.

— Depende do tempo de contato. 

— Sr. Willians está com sintomas mais leves até agora, mas Pria teve espasmos. 

— O velho marujo ainda tem um tempo, mas a garota deve ter no máximo um ou dois dias. — informou — Tem que força-los a ingerir o sumo de algas amargas com gotas da seiva da Lignumig, a árvore de fogo.

— E onde eu encontro a seiva nessa época do ano? — resmungou.

— Por sorte, eu tenho alguns frascos sobrando. — disse sorrindo, enquanto uma tosse violenta lhe atacou — Se quiser, faço um preço especial, para velhos amigos.

Ela revirou os olhos, ainda era o mesmo velho comerciante trapaceiro de sempre.

Gibbs pegou dois frascos, um pouco maiores do que a palma de sua mão, e os balançou a frente do rosto dela, com certo entusiasmo. A seiva em tom avermelhados, tinha um gosto ainda pior que o sumo das algas amargas, seria difícil forçar Rubi a beber.

— Um copo de sumo com quatro gotas de seiva, há cada duas horas. — comenta — Um frasco para cada um dos seus doentes.

— Na verdade, são três. — Ellenne intervêm.

— Ora, a suposta irmã de Kira. — gargalhou levemente — Tudo bem, três frascos.

Pegou outro, dentro da caixa.

— São cinquenta moedas de ouro. — informou — Cada frasco.

— Está brincando? — Kira se enfureceu — O preço é absurdo, até para você. 

— Eu estou morrendo mesmo, e já que os negócios vão de mal a pior, não tenho nada a perder. — respondeu confiante.

Ela não tinha pego tanto ouro ao sair do navio, tinha o suficiente para dois, apenas.

— Se eu prometer trazer a cura, fechamos em trinta moedas, cada? 

— Nem você vai ser capaz de cruzar o mar atrás das sereias. — comentou em tom sombrio — Magicae está fora de alcance, capitã, o Oceano Ilusório não é mais uma opção para se navegar.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Está para nascer alguém que me impedirá de navegar. — resmungou — Há dois anos eu teria pensado bem, mas nesse momento, posso enfrentar qualquer coisa.

Gibbs apenas gargalhou alto.

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