Capítulo 3

— Foi no ano novo, há dois anos, poucas semanas após você sumir. — Gibbs coça a barba — No começo, apareciam poucos, mas depois as coisas pioraram e fomos obrigados a mudar nossos hábitos, nem sequer podemos navegar a noite.

— Não sabe o que pode ter causado? — Kira estava mais interessada no assunto.

— Dizem que há um capitão amaldiçoado, rondando pelas ilhas piratas, durante a noite. — respondeu — Petrus Bezalel.

Ellenne encarou a irmã, então engoliu em seco, temerosa.

— Os rumores são de que ele foi aprisionado, não sabemos onde e nem porque, mas o certo é que quando retornou, estava muito mais cruel e sádico, porém, não costuma atacar, simplesmente soltou a maldição dos mortos, trazendo-os a vida. — sua voz era de tom amedrontado — Magicae praticamente não existe mais, os poucos sobreviventes se refugiaram em ilhas longe do reino e agora Bellum está degradando. 

— Quanto a Cristallum? 

— É o único reino que se mantém ainda estável, o rei tomou medidas provisórias ainda o início, quando as mortes começaram por causa dos mortos. — respondeu — Há uma enorme barreira, ninguém entra, ninguém sai, sem consentimento, é claro.

Mesmo que tentasse negar sua preocupação, não podia mentir para si mesma, temia por Amélia e Daniel, não guardava rancor de ninguém, nem poderia. Suspirou antes de entregar a bolsa de pano, repleta de ouro, para Gibbs e recolher os três frascos com a seiva.

— Mais uma pergunta. — disse enquanto os entregava a Ellenne — Há a possibilidade de adoecer estando próximo a alguém já doente? 

— Talvez, não tive relatos ainda... 

Revirou os olhos impaciente e virou de costas já caminhando.

Parou abruptamente, fazendo com que Ellenne quase esbarrasse nela. A sua frente estava Daniel, com um leve sorriso nos lábios e os olhos brilhando. Sua atenção logo foi desviada para a irmã de Kira, que o encarava com certa curiosidade.

— Duas? — questionou arqueando as sobrancelhas.

— Minha beleza é tremenda que apenas uma de mim não é suficiente. — respondeu.

— Eu sou Ellenne. — ela disse se aproximando com um sorriso abobado.

— Muito prazer. — disse pegando os frascos das mãos dela — Deixa eu te ajudar.

Kira queria se manifestar, pedir para que se afastasse de Ellenne, mas isso poderia ser interpretado de forma errada.

— Se não se importa, estamos com um problema para resolver. — puxa os frascos voltando a caminhar.

Daniel apenas ri levemente, antes de segui-la.

— A mesma Kira de sempre. 

A segurou pelo braço, forçando-a a parar.

— Não precisa de pressa, que eu saiba, o Sombra do Oceano nem está ancorado aqui. 

— Bastou se tornar rei para virar um típico nobre abusado. — resmungou.

— Ele é um rei? — Ellene questiona confusa.

Daniel usava roupas comuns, pouco chamativa, mas estava bem acompanhado, de alguns guardas.

— Bom, quando conheci Kira, era apenas um fugitivo. — respondeu — Se não fosse por ela, não estaria aqui.

— De certa forma...

— Tenho algo importante para conversar. — disse.

— Pode falar, majestade!

Ele se aproximou enquanto ela se afastava.

— Vamos ao meu navio, é mais confortável e vocês parecem cansadas. 

— Não podemos, Pria, Rubi e Sr. Willians estão doentes, precisamos preparar a seiva com algas amargas. — informou.

— Kira, se eles estão doentes, vocês também devem estar.

— Eu não saí do porto, nem tive contato com algum morto. — resmungou.

— Reforço o pedido, venham ao meu navio, eles serão bem cuidados e você poderá descansar. 

— Ou será que apenas deseja se deitar comigo de novo? — questionou.

Ele passou as mãos pelos cabelos, a situação lhe parecia engraçada, porém, não tinham tempo para joguinhos, mesmo ele adorando a situação.

— Manterei distancia, prometo. — levantou as mãos — Além do mais, não aconteceu nada entre nós... ainda.

Ela voltou a caminhar, sem responder a ele. 

Se posicionou no final do porto, chamando o Pesadelo Marinho de volta, o navio voltara sem reclamações dessa vez veloz e imponente.

— Oscar, traga Pria. — disse subindo a rampa que ele descera.

Sr. Willians estava sentado sobre uma caixa, ainda sonolento, mas melhor do que mais cedo.

Ela rumou para a cabine, enquanto Oscar erguia Pria, a capitã pegou Rubi no colo e caminhou lentamente para fora. As duas dormiam ainda, a febre havia abaixado.

— Ellenne, ajude o Sr. Willians.

Desceu a rampa, onde Daniel esperava com os braços erguidos, pronto para amparar Kira. Pegou Rubi dos braços dela e seguiram para o navio do rei, onde realmente seria melhor para os doentes e o Pesadelo não tinha mais marujos.

Logo, o navio zarpou em alta velocidade, de volta a gruta.

A embarcação real era mais organizada, limpa, do que um navio pirata, com várias portas, muitos quartos, prontos para abrigar os nobres com conforto.

Colocaram Pria e Rubi no mesmo quarto, sobre a cama, cobrindo-as e Sr. Willians no cômodo ao lado. Daniel ordenou que providenciassem a bebida logo, a fim de garantir que permanecessem vivos por tempo suficiente.

— Pode ficar à vontade, Ellenne, há muitos quartos sobrando e se precisar de roupas, não será problema. — o rei disse prestativo.

— Obrigada... — as bochechas avermelharam.

— Kira, podemos conversar agora? — questionou — Em particular.

Ela cruzou os braços, já sentindo os sintomas do cansaço excessivo e a fome que seguia.

— Oscar, descanse, preciso que você esteja bem. — ordenou — E se alimente bastante, ainda precisamos encontrar as sereias.

Seguiu para fora do quarto, acompanhada por Daniel, subindo ao convés superior.

— Seja rápido, já que está tão prestativo, irei aproveitar para tomar um bom banho e comer algo. 

— Coma primeiro, a conversa será longa. — disse se aproximando — Muita coisa aconteceu desde que você desapareceu... cheguei a pensar que estava morta.

Ela passou as mãos sobre o rosto.

— Como está o seu filho? 

— Meu filho? — arqueou a sobrancelha.

— Com Léia...

— Está bem, no palácio, sobre os cuidados da mãe dele. 

— Presumo que sim. — sorriu levemente.

Um silencio constrangedor pairou entre eles, tudo o que Daniel queria era dizer a ela o quanto sentira falta de sua presença, que passara os últimos dois anos a procurando, desesperado, temendo nunca mais poder vê-la.

— Pode usar o quarto da minha cabine, há uma enorme banheira. — disse fracamente — Irei provisionar algo para comer.

Kira apenas deu de ombros antes de seguir para a cabine.

Era bem grande e espaçosa, o quarto extremamente confortável, uma cama com lençóis fofos e macios, e a banheira, enorme ao canto. Abriu a torneira, para enchê-la, enquanto retirava suas roupas e desamarrava os cabelos sujos, após estar completamente nua, adentrou, sentindo a água fria em sua pele, despejou sais na água e em seguida esfregou os longos fios negros. 

Mergulhou a cabeça, quando emergiu, Daniel estava parado na porta, com uma bandeja em mãos.

Constrangida, usou os cabelos para tentar esconder o corpo dos olhos atentos de Daniel, que observavam sem pudor. As bochechas dela avermelharam, nunca ficara de fato totalmente nua na frente de homem algum, não era uma sensação que a agradava, sentiu-se indefesa.

— Desculpe... — Daniel abaixou a cabeça, ao perceber seu desconforto.

Colocou a bandeja sobre a cama e caminhou até um baú, de onde tirou uma toalha felpuda. 

— Se não gostar das roupas, posso providenciar outras. — colocou a toalha próximo a bandeja antes de sair rapidamente.

O coração de Kira estava acelerado, não tinha medo de Daniel, apenas não confiava totalmente em homem algum.

Balançou a cabeça fortemente, tentando espantar o constrangimento, e esfregou sua pele com rispidez, deixando marcas vermelhas. Mergulhou os cabelos na água, sentindo o frescor em sua cabeça.

Levantou pegando a toalha e se enrolado. Enxugou o corpo levemente e torceu os cabelos, para retirar o excesso de água, ajoelhando-se em frente ao baú, percebeu muitas roupas femininas, como as que costumava usar, blusas cigana, calças justas, corpete apertado e botas de cano longo. Vestiu-se rapidamente, mas percebeu que ficaram um pouco folgadas, o que não era de se espantar, perdera muito peso nos últimos dois anos.

Penteou os cabelos em frente ao espelho grudado na parede e observava o quanto haviam crescido, passavam da cintura agora, quase na altura das coxas.

Saiu do quarto e viu Daniel sentado sobre a cadeira do outro lado da cabine. Sentou-se à frente dele, o encarando.

— Me desculpe, de novo, acho que perdi o controle. 

— Podemos simplesmente esquecer... — disse em tom baixo.

— Há coisa que não se pode esquecer, Kira. 

Ela se direcionou aos olhos dele, com certa irritação.

— Entendo que esteja acostumado a ter quantas mulheres desejar, majestade, mas saiba que não aceito desrespeito. — comunicou ríspida — Lembre-se de que eu não preciso de muitos motivos para matar alguém.

— Está no seu direito de se irritar.

— Diga logo o que quer.

Ele suspirou, estava se sentindo um completo imbecil por suas atitudes.

— Já deve estar um pouco a par dos acontecimentos... — iniciou cauteloso — Enfim, Louhin apareceu durante o ano novo, há dois anos, falando sobre um possível Darsmorsem, alguma maldição foi liberada, quando você partiu, e meses depois, percebemos que não era brincadeira, Cristallum está bem preparada, mas por quanto tempo? 

Fez uma breve pausa.

— Em pouco tempo os alimentos começarão a faltar, já está havendo escassez, e todos os reinos irão sucumbir. — continuou — Há duas criaturas a sua procura, Kira, um homem que não parece humano e uma besta marinha, com forma humanoide, que ataca ao anoitecer, sem dó nem piedade.

— E como sabe de tanto? 

— Uma parte foi Louhin, mas a outra eu tive o desprazer de testemunhar... Não é algo que queira ver de novo. 

— Está sendo dramático, apenas...

— Kira, eu tenho me dedicado a sua procura, estou preocupado pela sua vida e pelo visto, você não está. — resmungou — O caso é que não diz respeito apenas a te encontrarem ou não, e sim o que pode acontecer depois. Quantas pessoas mais irão sucumbir?

A capitã apoiou os braços sobre a mesa, muito pensativa, pois ele tinha razão, se tudo fosse por causa dela, teria que dar um jeito de concertar as coisas, mesmo sem saber por onde ou como começar. Precisava de repostas, muitas, as quais seriam bem difíceis conseguir naquele momento.

— Primeiro, preciso descansar, então pensarei em algo.

Ele assentiu concordando, após, levantou seguindo ao lado dela e lhe estendendo a mão, que, receosamente, aceitara. A ergueu com um leve puxão, percebia o quanto os dois anos passados tinham sido ruins para ela, estava sem o brilho ou a determinação de sempre, apenas uma sombra.

— Minha cama está a sua disposição... — disse, mas só então percebeu o erro que cometera.

— Deve ser bom ter um filho e negar a responsabilidade, porém, poder dizer que é o pai. — comentou — Como sempre, as mulheres recebem todo o fardo pesado.

Se desvencilhou indo rumo ao quarto, fechando a porta atrás de si, e dessa vez, lembrou de trancar.

Daniel proferia palavrões a si mesmo, em sua cabeça, desejando ter sido mais cauteloso com suas palavras, queria estar com ela, poder ao menos dar-lhe um simples beijo, sentir que poderia continuar alimentando suas esperanças.

Entretanto, sabia que Kira estava certa, não tinha sido um pai muito presente, estava sempre no mar, fingindo não ter responsabilidades. Devia retornar logo e tentar amenizar seus erros, o pequeno Derick não tinha culpa da família conturbada que o rodeava.

Saiu da cabine, ainda transtornado, ordenou que zarpassem do porto, queria estar em Porto Dourado antes do anoitecer.

— Daniel... — escuta uma voz baixa o chamar.

Era Ellenne, usando um vestido lilás de corpete enfeitado e os cabelos presos, com alguns fios caídos. 

— Acho que você está muito tenso. — se aproximou cautelosa — Talvez precise de uma massagem.

Ele arqueou as sobrancelhas, com certa curiosidade.

— E quem faria essa massagem?

— Posso me oferecer. — respondeu.

As bochechas dela coraram e abaixou a cabeça rapidamente.

— Terei que dispensar, desculpe.

— Aceitaria, se fosse Eilleen? — questionou.

— Quem é Eilleen? 

— Kira. — respondeu — Foi esse o nome que nossa mãe deu a ela quando nasceu.

Se aproximou ficando de frente a ele.

— Ainda estamos nos conhecendo, mas sei que ela é uma pessoa independente, que gosta de tomar as próprias decisões. — comenta — Somos bem diferentes, eu não teria passado por metade do que ela viveu.

Daniel permanecia em silencio.

— Ela te rejeitou, de novo, pelo que pude perceber. — sua voz era mais suave — Se fosse eu, no lugar de Kira, teria aceitado com prazer, dividir a sua cama.

Ele se abaixou, o suficiente para estar próximo ao ouvido dela.

— Agradeço a oferta, mas acho que é falta de educação escutar a conversa alheia.

Ellenne se arrepiou inteira, com a voz sussurrada de Daniel.

— Caso mude de ideia, estarei aqui. — disse antes de virar o rosto e depositar um beijo sobre os lábios de Daniel.

Ele se afastou bruscamente, encarando ao redor. 

— Não se preocupe, Kira não precisa saber... — piscou, retirando-se em seguida.

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