O lago agora estava silencioso. As figuras encapuzadas cercavam Aurora como sombras vivas, imóveis como estátuas de pedra. O frio aumentou, mas não era um frio natural. Era um arrepio que vinha de dentro, como se o ar ao redor tivesse sido arrancado do tempo.Aurora apertou o casaco contra o corpo, protegendo mais do que sua pele. Protegendo o segredo que pulsava sob suas costelas — seu filho. Ou filha. Ou o que quer que fosse essa nova vida que ela mal conseguia entender. Mas já amava.Um dos encapuzados deu um passo à frente. A voz soou rouca, mas carregada de autoridade.— A Lua enfim trouxe você. A filha perdida. A marca viva da linhagem esquecida.Aurora não respondeu. Sentia o gosto do medo na boca, mas manteve o queixo erguido. Eles a chamavam de filha, princesa, como se já soubessem quem ela era. Mas ela mesma ainda não sabia. E não confiaria cegamente em ninguém.— Não sei quem vocês são — disse, firme. — Nem por que me chamam assim.O homem — se é que era um homem sob aquele
Darius vasculhava a floresta como um animal ferido, cada respiração um grunhido sufocado de raiva e desespero.A carta ainda estava em sua mão, amassada, suada, marcada por suas garras. As palavras dela ecoavam em sua mente como uma maldição suave: "Eu te amo infinitamente. Mas por isso mesmo, preciso partir. Preciso descobrir quem sou, antes que machuque quem mais amo."Ela não pediu permissão. Não explicou tudo. Só... se foi.E Darius se sentia como se tivessem arrancado parte de sua alma com uma unha suja e cruel.— Onde você está, Aurora? — murmurou, os olhos dourados fitando o nada entre as árvores.Elias se aproximou em silêncio, mas o alfa sentiu sua presença de longe.— Não há rastros dela — disse o beta. — Nem cheiro. Nem pegadas. Nada.— Isso é impossível — Darius rosnou. — Ela não saberia como apagar o cheiro. Não sozinha.— A não ser que tenha recebido ajuda.Darius o encarou.— Você está dizendo que ela foi levada?— Ou... guiada. Por algo que queríamos ignorar.O silênci
A floresta onde Aurora acordava todas as manhãs não era mais a mesma. As árvores tinham troncos escuros como carvão e folhas que sussurravam em línguas esquecidas. O céu por cima era cinzento mesmo sob o sol, e o chão tremia com os passos daqueles que a observavam em silêncio.A Matilha da Lua Negra.Eram sombras com olhos. Guerreiros que não pareciam respirar, mas se moviam como predadores antigos. Ela não via seus rostos — nunca. Sempre encapuzados, sempre em silêncio. Mas ela sentia o respeito... e o medo. Não o medo deles por ela, ainda não. O medo de que ela nunca se tornasse o que deveria ser.O medo de que falhasse.Na primeira semana, pensou que morreria. No fim da segunda, desejou morrer.Agora, ela apenas resistia.— De novo. — a voz rouca do treinador ecoou pela clareira.Aurora estava de joelhos, os braços tremendo, coberta de suor e sangue seco. À sua frente, uma criatura invocada por magia da Lua — parte lobo, parte fumaça, parte pesadelo — rugia em círculos.Ela tentou
Aurora acordou antes dos primeiros uivos da madrugada.Não por insônia, mas porque, enfim, o corpo e a alma estavam alinhados.A floresta da Lua Negra já não a assustava como antes. Os galhos retorcidos pareciam inclinar-se quando ela passava. Os olhos entre as árvores a seguiam — não com dúvida, mas com algo próximo de temor silencioso.Naquela manhã, ela não hesitou ao vestir a túnica preta de guerreira. Já não sentia o peso da coroa invisível sobre sua cabeça — ela começava a vesti-la por vontade própria.No centro da clareira, a Matilha a esperava. Sem um som, como fantasmas de carne. Ninguém dizia seu nome. Mas todos sabiam: a herdeira havia despertado.Velho Sangue a observava com atenção. O olhar dele já não era de reprovação, mas de análise — como se estudasse a lâmina que ele mesmo forjou.— O que vê em si, agora? — ele perguntou, pela primeira vez quebrando o silêncio antes do combate.Aurora respondeu com os olhos firmes:— Vejo o que sempre fui. Só que agora... eu aceito.
A noite caía sobre a floresta como um véu espesso. Nenhuma estrela ousava brilhar sob a influência da Lua Negra, agora quase plena. A claridade gélida tocava as folhas com dedos invisíveis, e no centro da clareira sagrada, Aurora reinava.Ela estava de pé sobre a pedra ritual, os olhos brilhando como prata líquida. A túnica negra esvoaçava com o vento encantado. E diante dela, dez guerreiros ajoelhados, testas coladas ao chão, esperando uma ordem. Qualquer ordem.— Ele traiu nossa confiança — ela dizia, com a voz baixa e calma demais para o teor da conversa. — Sabia de minha identidade. E mesmo assim mentiu.O traidor em questão era um dos caçadores da fronteira. Ele não havia traído de fato — apenas hesitado em seguir Aurora numa de suas decisões mais brutais: aniquilar um vilarejo que abrigava inimigos antigos da matilha.— Não desafiou você, minha rainha — sussurrou Nevena, ajoelhada ao lado. — Apenas teve medo.Aurora inclinou a cabeça. Por dentro, uma voz murmurava: “Medo é fraqu
Os ventos do Norte sopravam gélidos, e mesmo com o corpo coberto de suor, Darius tremia. Mas não de frio.Era madrugada quando ele acordou, arfando como se tivesse lutado contra mil inimigos. O peito subia e descia rápido, os olhos dourados arregalados encarando o teto da caverna como se pudessem rasgá-lo e atravessar céus e terras até encontrar ela.— Aurora…O nome saiu como um lamento, um sussurro amaldiçoado. E com ele veio a dor.Um aperto no coração. Não físico, mas ancestral. Um vazio que se abria como um buraco negro. E então… as visões.Ele caiu de joelhos, as mãos pressionando a cabeça quando o mundo à sua volta foi engolido por flashes:Aurora cercada por sombras, erguendo a mão com o olhar impiedoso. Aurora sorrindo… mas não era um sorriso dela. Era algo mais cruel. Mais frio. Aurora olhando para si mesma num espelho d’água e não reconhecendo o reflexo. E depois… o sangue. O poder. O trono.Darius gritou. Mas não era dor comum. Era o laço.O laço que os ligava.— Ela está.
A floresta estava viva. Galhos se retorciam como serpentes antigas, e a névoa dançava entre as árvores feito véus de um ritual proibido. Darius, agora em forma humana, avançava com dificuldade. Cada passo doía como se a terra o testasse.Mas ele sentia. Sentia ela.O cheiro de Aurora estava por toda parte — um aroma agridoce, mistura de flor e sangue. O sangue que ele conhecia melhor que o próprio.Ele emergiu na clareira e... parou.Aurora estava ali. No trono de raízes, cercada pelos membros da Matilha da Lua Negra. Ela usava um manto prateado que reluzia sob a luz da lua, os cabelos soltos como uma cascata negra. Os olhos, antes cheios de brilho e calor, agora eram intensos, duros. Quase frios.Mas o coração dele soube: a alma dela ainda gritava por ele.— Aurora... — ele chamou, a voz rouca de emoção e cansaço.Os guerreiros da Lua Negra se ergueram, mas não avançaram. Um deles — Velho Sangue — fez apenas um gesto com a mão, sinalizando que o laço era intocável.Aurora se levantou
A floresta parecia dormir, mas Aurora não. Havia dias que sua alma oscilava entre a sombra e a luz, entre o que lembrava ser e o que estava se tornando. O treinamento da Matilha da Lua Negra a forjava como ferro sob fogo. A dor era constante, os limites, testados a cada passo. Mas nada era pior do que o vazio que crescia dentro de si.Não o vazio da ausência.Era... poder.Poder que pulsava, se retorcia por baixo da pele. E que, naquele instante, ameaçava escapar.Aurora andava em círculos entre as árvores antigas, sentindo o peso do mundo nos ombros. O frio da noite colava-se à pele úmida de suor, os olhos marejados, o peito em guerra.Ela parou, pressionando o ventre.Um leve calor subiu por dentro, como uma carícia... mas logo se tornou uma pressão brutal. Como se algo dentro dela se recusasse a ficar em silêncio.— O que você está fazendo...? — sussurrou, os olhos arregalados.E então veio o grito.Não o dela.Mas do bebê.Um rugido mudo, um eco ancestral, atravessou o corpo de Aur