Capítulo 2

Estava protelando, já fazia algum tempo, o destino que daríamos à casa de papai. Evitava o assunto com meu irmão e cunhada, entretanto, tinha que ser pragmática. Era o que o velho queria de nós. Eles se foram. Mas a casa continuava lá, cheia de lembranças, porém, esperando por uma nova família que lhe devolvesse a vida.

Vendê-la seria doloroso. Alugá-la, estava fora de cogitação. Morar lá, uma possibilidade. Mas qual de nós dois voltaria a viver naquele lugar, sendo que ambos tínhamos nossas próprias casas? Aquilo tudo era pura recordação. Cada canto daquela casa lembrava algo. A primeira boneca, o primeiro joelho ralado, a descoberta do sangue e do antisséptico, o amor incondicional da mãe curando nossas feridas, e tantas outras coisas. Na cozinha, ainda conseguia vê-la.

Parece que ficara ali para sempre, em pé, ora no fogão, ora na pia, mas sempre ali. Doce e calma. As rugas se formando conforme seus cabelos embranqueciam. O cheiro do bolo, dos doces e o aroma da carne assando naquele velho fogão, impregnaram-se nas paredes de azulejos quadradinhos. Como um lugar pode guardar tanto a nossa impressão, como se fossemos apenas digitais? Tudo o que somos ou fazemos, no fundo, tornam-se apenas lembranças. Quando entrava na casa para ver meu pai, já doente e cansado, apenas esperando se juntar à mamãe, tinha a impressão de que ela viria pelo corredor, enxugando as mãos no avental, somente para ralhar comigo por não ter ido primeiro à cozinha dar-lhe um beijo.

Talvez fosse melhor se livrar da casa e apagar de uma vez as lembranças que nos fazem sofrer. Mas será que a casa é culpada? Será que a casa não é nosso próprio túmulo? Uma vez que tudo ali nos pertence, então não pertencemos nós à casa? Será que a morte não é continuar fazendo as mesmas coisas que fazíamos, sem ter a noção de que não precisamos mais fazer? Eu sei. Estou divagando. Mas é como me sinto em relação ao lugar onde vivi até me casar. Agora é a vez de sentir meu pai naqueles cômodos. Cada vez que me encontrar na sala de visitas e me sentar no sofá velho e puído, terei a impressão de vê-lo sentado naquela cadeira, atrás da sua escrivaninha, através da porta aberta do escritório.

Quase sempre estava lá, durante a noite e nos fins de semana, e creio que continuará assim. Não acredito nem em céu e nem em inferno. Acho que o inferno está aqui na terra e, de certa forma, o céu também. Nosso lar é o céu, para onde vamos quando nos desprendemos do corpo que nos sustenta. Basta alguém abrir a porta e lá estamos nós, permeados nas lembranças dos que nos amam. Talvez assim, o amor nunca nos deixe partir realmente.

Devo dizer que todo esse devaneio surgiu por causa do sonho. Embora quisesse ir, ainda naquele dia, procurar o que acreditava que ele havia deixado para mim, não consegui fazê-lo. O telefone começou a tocar e os problemas começaram a aparecer, exigindo minha presença no escritório. Durante o almoço, já nem lembrava direito de haver sonhado na noite anterior.

— Pai! — Chamou meu filho do meio, à mesa, durante o almoço.

— Hein?

— Dá pra emprestar o carro esse fim de semana?

— Para quê? — Perguntou, enquanto tomava o suco de morango, já desconfiado.

— Eu e os caras — se referia aos amigos da faculdade — tamo a fim de descer pro litoral.

— Litoral? – Quis saber, ressabiada, fazendo-o me lançar aquele olhar enviesado.

— É. Pode ser? — Respondeu com aquela expressão azeda, característica de todo adolescente.

— Mal voltou para a casa das férias e já vai viajar? Vai com quem? — Insisti, desafiadoramente.

— Já falei. Vai o Gui, o Pedro, o Murilo...

— E as namoradas?

— Não. Sem mulher para encher o saco. Só os caras.

— Sei — Respondi, contraindo os lábios, desconfiada.

— E aí, pai. Empresta o carro?

Pra onde vocês vão? — Indagou meu marido, impaciente.

Pra Ilha Comprida.

— Ilha Comprida? — perguntei surpresa — Adoro! Estivemos lá umas quatro vezes, antes de vocês nascerem; ainda quando, para se chegar a ela, tínhamos que atravessar um braço do mar de balsa.

— Sério? É legal lá? — Perguntou curioso.

— Eu adorava quando era meio inóspita. Agora parece que cresceu muito nesses últimos vinte anos.

— É. Os caras falaram que manero.

— Você sabe chegar lá? — Perguntou meu marido, olhando o menino meio ressabiado.

— Não! Mas com GPS...

— É, mas tem que prestar muita atenção àquela Serra de Paranapiacaba. Tem muitas curvas.

— É uma serra maravilhosa. Cheia de pés de manacás roxinhos e brancos – suspirei, saudosista.

— E então, pai? Vai emprestar ou não?

— Vou pensar. — Disse meu marido, encerrando o assunto.

Depois que ele saiu para o trabalho, Lucas começou a me atormentar:

mãe. Fala com ele. Não tem perigo. Eu sou cuidadoso, e os caras também.

— Ah, não sei não. O seguro tá só no nome dele e se você bater o carro, Deus me livre!

— Não vou bater, mãe. É só um fim de semana...

— Vocês vão ficar em que lugar da Ilha?

— Na verdade, os caras tão querendo ficar na cidade de Paranapiacaba.

— Na cidade? Nem sabia que tinha cidade. Pensei que fosse só a serra.

— Não, mãe. É uma cidade histórica. Cheia de mistérios.

— Huum. Não gosto disso. — Respondi sentindo um leve temor, como se uma mão tocasse meu coração.

— Ah, mãe. Nada a ver.

— Não sei não! Depois eu falo com ele. Agora me deixe em paz que eu tenho que trabalhar. — Encerrei o assunto categoricamente.

Uma sensação estranha me acometeu quando ele falou na cidade. Talvez tenha sido o jeito como se referiu a ela. Como se quisesse ir de qualquer jeito, não importando se proibiríamos ou não.

Mais uma vez, o telefone tocou e acabei voltando a atenção ao trabalho, esquecendo-me da casa de papai e da viagem do meu filho. Mal sabia que iria ouvir falar nessa cidadezinha novamente, em bem pouco tempo.

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