A noção de loucura em atacar os guardas de Syafer se tornou em excitação quando o duelo mostrou sua face mais desafiadora: três contra um, exigindo triplicar sua atenção no que antes se acostumara a ter um único oponente. O primeiro foi surpreendido com o peso do seu golpe, segurando o cabo de forma displicente, por pouco a arma não escapou de suas mãos. Ao tentar retomar o controle, entretanto, já era tarde, Millena atacou pela segunda vez, desarmando-o, botando-o para dormir ao acertar sua cabeça com a parte plana da espada.
Os outros dois adversários não foram cavalheiros, nem ela terminava de abater aquele que a subestimara, atacavam com sangue nos olhos. Sua cabeça teria sido cortada ou seu peito, perfurado, se não se esquivasse do da direita e bolasse pelo chão durante a estocada do que vinha pela esquerda. Este permaneceu investindo com ânimo e dedicação crescente, como se derrotar uma garota fosse seu maior sonho de espadachim. Seu companheiro esperava sempre o momento
— Acorde e diga quem é— uma voz baixa a acordou, tão mansa que soube que não foi o único modo de despertá-la, viu que estava certa ao sentir sua cabeça contra uma pedra desconfortável e não mais Bervis.Um pequeno candeeiro era posto próximo ao seu rosto, tornando a visão de Millena inútil para identificar a imagem daquele que a chamava. A ackamitzarin se sentou, sua mão buscando a espada de forma tola. A silhueta de Bervis surgiu de pé a uma certa distância, observando a situação. Acalmou-se, sabia que ele agiria se a montadora fosse atacada.O ar gélido da madrugada a fez encolher e se envolver nos próprios braços, o pensamento de estar sozinha e indefesa tentou fazê-la companhia de igual modo ao frio, mas ela resistiu e o expulsou. Ignorou seus batimentos ao lembrar de Nerissia, Argus e Sirius. Teria que manter o foco na atual situação. Se seu coração fosse bater como os tambores da Cerimônia de Ascenção, seria devido ao presente. O candeeiro se afastou e ela pôde dis
O ackaminoum não se encontrava no mesmo local. Millena olhou para cima, poucos touros alados sobrevoavam baixo a cidade, mas nenhum deles era marrom como o seu amigo. Seu assobio agudo fez eco por Werimiton, tinha esperança de que ele escutasse, porém nenhum ruflar veio ao seu chamado. Viu-se obrigada a segurar as lágrimas, não podia dobrar os joelhos e esmurrar a areia, não queria se mostrar vulnerável.— Lá— disse a voz do taverneiro.Millena seguiu com o olhar para onde ele apontava. Centenas de metros à frente, uma confusão se iniciava. Pessoas corriam e gritavam ao mesmo tempo que asas imensas derrubavam caixas e carroças, assustando cavalos que partiam em galope pelas ruas laterais, causando mais alvoroço. Bervis pulava e fazia círculos, tentando escapar de seu raptor, que era ocultado na poeira que subia. A ackamitzarin assobiou de novo e correu em direção a gritaria desesperada.Esbarrando em pessoas e tropeçando em destroços de madeira, ela chegou àquela c
Cedo na manhã do dia seguinte, eles atravessaram Thur Iniestre, deixando para trás as terras de Wendevel sem saber o dia em que as veriam de novo. Foi com esforço que Bervis conseguiu dar o impulso necessário com suas pernas, mas sobrevoaram tranquilos a paisagem à frente quando o vento soprou convidativo e amigável a presença deles no céu. Às suas costas, o Longo Rio das Raças se tornava apenas uma linha prateada de um horizonte ao outro, uma serpente imensa alimentando vidas por milhares de quilômetros.Adiante, os contornos sombrios da Floresta Áverimr se solidificavam no terreno ondulado, expressando a força que seus domínios possuía, indagava terna e silenciosamente se teriam coragem de se aproximar das suas copas, erguidas por troncos imponentes, alimentadas por raízes fixas e profundas. Ainda mais distantes, as Montanhas Farynan exibiam suas primeiras silhuetas, acenos indiferentes sinalizando que entravam em terras novas. Terras que talvez não os quisessem.Em do
Millena gritou de novo antes de cair, vários gritinhos seguiram o seu, vindos da porta metálica que ela não sabia que existia até o momento.— O que seria isso?— “O que seria?”— caçoou a voz.— Isso é. Estamos presos, garota. Se não tem peito para abrir essa porta, dá logo as chaves aqui!— Ah, Nico...— alguém suspirou lá dentro.— Saia daí, você não...— Vocês são ladrões— Millena ergueu-se, recolhendo as chaves.— Vou devolver esse molho assim que encontrar as autoridades.— Que molho? Está vendo alguma sopa? Passa as chaves, doida.— Não me chame de doida— ela começava a se irritar.— Nico, saia daí.A mão sumiu abertura adentro e uma confusão de vozes se iniciou. O peito de Millena ardeu ao perceber o que vinha, os seus perseguidores se aproximavam por ambos os lados do beco.— Fique quieta, docinho— um deles sorria, os cabelos como uma nuvem negra de algodão.— Faremos você gritar pela última vez.— Não, não— el
O crepúsculo morreu aos poucos em suas cores vermelhas. Pôs-se o sol novamente, escondendo-se em um horizonte invisível após o mar. Erensiel, com suas grandes asas deslizando pelo céu noturno, sobrevoava um manto de ondas escuras e pacíficas, que logo foram deixadas para trás ao atravessarem a paisagem de uma praia deserta de areias brancas. Eram as terras de um continente marcado, suas cicatrizes pareciam ganhar forma à medida que avançavam. Os rochedos e depressões que surgiam simbolizavam sua força, pequenos riachos lembravam o sangue que foi e ainda é derramado. O céu repleto de estrelas, adornado com o sorriso de uma lua minguante, era o reflexo de que ainda havia esperança sobre aquele mundo.O vento gélido castigava o rosto cansado de Morgan, um ardor crescia em seus olhos. Seus cabelos negros esvoaçavam com força, sentia um frio incôm
Dez anos depois.Reino de Ertiron.A tranquilidade sempre se faz no caminho. Chega com delicadeza, despercebida. As ondas agitadas do mar de pensamentos se transformam na calma corrente de um rio. Por um breve instante ou um longo período. Às vezes, como dizem, é a calmaria antes da tempestade. Em qualquer caso, Endrick geralmente faz o mesmo, aquilo que precisou viajar longe para aprender a apreciar. Ele relaxa, pois nunca sabe quando ou se haverá outro.Existia uma noite até pouco. Ela se foi sem despedida, deixando seu frio e trazendo uma névoa fina. Não era um novo dia, o sol ainda não viera ver sua face. Porém havia uma leve claridade na madrugada, anunciando que estava próximo. O alívio de sair da cidade de Cinstrice estava explícito, algo que não era raro. Não existia uma boa alma viva que queria permanecer em uma Nider.Endrick guiava a carroça sem pressa de volta ao vilarejo de Ellefen. O lento sacolejar não incomodava, tornava-
Nico não tomou o chá, como esperado, embora Mercstzine quase tenha perdido a paciência duas vezes e feito ele engolir à força com xícara e tudo. Ela foi piedosa, mas o obrigou a ficar na sua tenda enquanto fazia uma limpeza em várias partes da estalagem. Não se passara muito tempo desde a última vez, mas montes de teias de aranha surgiam de um dia para o outro, acompanhadas de um pó acinzentado que se acumulava sobre os antigos móveis da família, que exibiam um leve ar suntuoso em meio àquele cenário humilde.Apesar do cheiro deliciosamente chamativo, o caldo de Mercstzine não dava sinais de que faria uma boa venda naquela manhã, porém até o meio-dia e o fim da paciência de Nico, o fundo da panela foi ficando visível sem muito esforço e uma bolsinha ganhou o peso de algumas moedas. O pouco que era muito quando se tinha quase nada.Nico retornou à estalagem e encontrou Mercstzine na cozinha. Terminara a limpeza e colocava uma panela sobre o fogo enquan
A chuva começou a cair no instante em que todos se reuniram à mesa de jantar. Mercstzine recebeu Tarci com um tapa na cabeça e comentou sobre a sorte dos três não serem pegos pela nuvem que caía, mas disse que teriam o seu magnífico chá para ajudar no caso de um indesejado resfriado, informação que os obrigou a torcer o nariz.A lenha crepitava na lareira em uníssono com as gotas de chuva que açoitavam a estalagem. Mercstzine fizera uma sopa de legumes para ajudar a espantar o frio, algo que fez Nico agradecer, apenas seus pés reclamavam da ausência de calor. Endrick se enganara ao pensar que tinha um par extra de botas, e os pés de Tarci eram menores do que os de Nico, a única solução foi continuar descalço.Endrick apoiava o queixo em suas mãos e os cotovelos na mesa. Ondeava a sopa com o talher de forma distraída, sequer cogitava tomar um pouco. Seus pensamentos estavam distantes, além do mar, porém permanecia ciente de tudo ao redor. Nico não o vi