Apoiando os cotovelos na mesa e esfregando as mãos, Uchôa demonstrava preocupação e seu semblante se contraiu com o sofrimento das lembranças que tinha daquele dia específico. Iniciou a narrativa:
— O inverno daquele ano foi bem rigoroso e procurei logo uma caverna para hibernar. Coloquei tudo o que precisava lá dentro e me acomodei. Passados mais ou menos um mês, meu urso sentiu um cheiro diferente na entrada da caverna e acordou, fomos ver o que era e a surpresa foi terrível. — Você quer dizer terrível de ruim? — perguntou Demétrio. — Sim. Era muito sangue. Foi aí que encontrei minha companheira, foi o cheiro dela que me acordou. Adentrei novamente a caverna, voltei à forma humana e me vesti. Quando a examinei, percebi que o sangue não era dela, ela só estava muito abatida, mas encolhida dentro de seus braços, estava uma lobinha, muito ferida, quase morta, na verdade. — Sua voz era baixa e suave ao contar, a tristeza era visível em suas feições. — Você identificou que tipo de ferimentos eram? — perguntou o Alfa, também contrito com a narrativa. — Eram mordidas de lobos selvagens. Nesta época de inverno intenso, a fome é tanta, que eles comem os mais fracos. Tornam-se canibais. A pequena estava assim, toda mordida e em algumas partes, faltavam pedaços de pele e até carne. — Que horror!! — exclamou Demétrio. — Sim, foi horrível. Mas continuando, eu acordei Blanca com muita dificuldade, ela estava em sua forma shifter ursa e quando sentiu meu cheiro, também me reconheceu. Pedi que me desse a lobinha e entrasse na caverna, o que ela fez quase se arrastando. Lá tinha um estoque de hadoque, que eu havia pescado e ela se alimentou bem. Peguei a lobinha e levei para o fundo da caverna onde estava aquecido e limpei-a. — Ela estava na forma de loba? Mas eu nunca tinha visto ela transformada, procuramos o tempo todo uma criança na forma humana. Meu Deus! — falou Demétrio. — É verdade, não procuramos uma lobinha — concordou o Alfa — continua, Uchôa. — Bem, depois de limpá-la, rasguei uma camiseta e enfaixei suas feridas, derramei caldo de sopa pela sua boca, pois sabia que se ela estivesse nutrida, curaria mais rápido, mas demorou três dias para ela iniciar o processo de cura. Seu corpo ainda doía, mas as feridas cicatrizaram e Blanca se revezava entre dormir e cuidar dela. — Foi uma narrativa dramática. Shirley estava no quarto, mas pelo silêncio, Zoren intuía que ela estava escutando e devia estar sendo difícil enfrentar tudo isso. Imaginar sua filhinha, transformada e sendo devorada por lobos, é muita dor para uma mãe que sempre foi tão zelosa com todas as crianças. — Algo quebrou dentro da menina, porque quando ela voltou a forma humana, nunca mais se transformou em sua loba. Ela caça, trata e cuida da Floresta de Pinheiros, na forma humana, é uma menina muito forte. O resto ela mesma pode te contar. Blanca cuidou dela até a adolescência e então ela foi estudar na cidade, no instituto para menores órfãos, desculpe, ela nunca falou de sua família ou de onde veio — completou o urso, levantando-se e colocando um panelão de sopa para esquentar. Mas bem nesta hora, a porta se abriu e ela entrou, carregando duas pernas de alce. Zoren levantou para ajudá-la, mas ela desviou dele e foi até a pia e largou-as lá. Virando-se, ela o encarou e depois fitou os dois homens parados de pé em sua frente. Ao olhar para eles, algo se mexeu dentro dela e uma dor difícil de suportar se fez por todo o seu corpo, ela caiu de joelhos gritando e iniciou sua transformação. Em questão de segundos, uma grande loba branca estava parada à frente deles, com as presas à mostra e orelhas levantadas, rosnando. Zoren olhava para aquela loba enorme, branca, olhos azuis e linda. Uma Alfa tão grande que mal cabia no espaço apertado. Pensou que alguma coisa muito grave aconteceu com ela em sua primeira transformação. Ela encarava-os com tal agressividade, que talvez ela ainda não os tivessr atacado, por Ava não ser de natureza violenta. Ava matou os caçadores, mas não foi com voracidade e por mais que ela tenha sido arredia quando conheceu Zoren, também não foi agressiva, contando com isso, ele foi se aproximando aos poucos, mas ela arreganhou mais aquelas mandíbulas cheias de dentes afiados e rosnava cada vez mais alto. De supetão a porta do quarto se abriu e Blanca passou por ela e logo encarou a loba enorme. Ela pôs a mão na boca e seus olhos se encheram d'água. — Minha lobinha, você veio me ver? — Surpreendentemente, Blanca não teve medo, mas estava feliz. A loba a reconheceu e parando de rosnar, baixou a cabeça e ganiu baixinho, parecia uma lobinha pequena choramingando por algo. Blanca se aproximou e a acariciou. Sua mão deslizava pelo pêlo macio, em um carinho apaziguador. Shirley havia aproveitado essa hora para aparecer na porta e a loba sentiu seu aroma e levantou as orelhas, reconhecendo o cheiro de sua mãe. Blanca se afastou e a loba foi até Shirley e lambeu seu rosto e depois apoiou seu grande focinho, no ombro da mãe. Ela a reconheceu. Mas porque, com os homens, ela reagiu diferente, o que tinham os homens que a provocavam raiva ou seria instinto de defesa? Shirley abraçou o pescoço da loba, que de tão alta, fazia sua mãe ter que ficar na ponta dos pés para a abraçar. Aos poucos a loba foi se acalmando e todos perceberam que ela estava voltando a forma humana e Zorem rapidamente tirou seu casaco e se preparou para cobrir sua fêmea. E assim foi, ela voltou, ainda amparada pelos braços de sua mãe e ele a cobriu com o seu casaco. Ava olhou nos olhos de Shirley e pronunciou a palavra que ela mais ansiava ouvir: — Mamãe, senti tanto a sua falta — chorou. — Eu também, minha menina, eu também. Aliás, todos nós sentimos sua falta — olhou para os três homens na sala. Mas Ava ao ouvir sua mãe mencionar os homens, rosnou para eles, os afastando. Com certeza havia algo nesta situação que ainda não havia sido contada. Seriam homens em geral ou só lobos? Uchôa era um shifter e cuidou dela, ela o aceita bem, mas ele é um urso. Blanca pediu que elas entrassem no quarto para Ava se vestir. Pronto, agora os machos estão mais inseguros do que antes. — O que terá acontecido, para ela nos rejeitar desta maneira? — perguntou Zoren. — E não foi só você, foram os três. — Acrescentou Uchôa. — Talvez eu saiba o que seja… — Demétrio estava com sua alma quebrada, seu lobo se encolheu e ele não conseguia se perdoar pelo que fez. — Então conta, menino! — mandou o pai dele. — Uchôa disse que ela foi atacada por lobos selvagens que a queriam devorar. Lembrei que passamos por alguns, quando procurávamos pela Aveline e eles estavam maltratando um filhote que já estava estendido no chão ensanguentado, mas eles continuavam sobre ele. Vocês lembram? — perguntou Demétrio. Os dois, o Alfa e Begai, forçaram a memória, até que o Alfa lembrou de algo. — Lembro de uma confusão de selvagens lutando pela comida, mas não vi direito o que era e você me perguntou se iríamos interferir e eu disse que era coisa deles, que não valia a pena pararmos nossas buscas, até porque, o animal parecia já estar morto. É isso? — perguntou o Alfa. — Sim, lembra que Uchôa contou que Aveline estava em forma de loba? Então, aquele animalzinho podia ser Aveline. Ouvi um gemido do animal, quando nos viramos para ir embora, como se estivesse nos chamando, mas nós procurávamos uma menina e não uma lobinha. — Completou Demétrio.