Ponto de Vista de Kaia
Lá fora, as ruas da cidade brilhavam com o clima festivo. Casais andavam de mãos dadas. Crianças carregavam bengalas de doce. Cada pessoa que passava parecia estar indo para casa.
Casa. Aquela palavra já não significava muito para mim.
Continuei andando. Sem destino. Apenas me movendo.
De alguma forma, meus pensamentos voltaram para aquela noite, quando a ligação sobre os nossos pais chegou. Acidente de avião. Viagem de negócios rotineira. Tinham partido.
Chorei até adormecer no chão da sala. Quando acordei, meus três irmãos estavam enrolados ao meu redor como uma fortaleza.
Asher, corajoso e gentil, me segurou apertado e sussurrou:
— Não se preocupe, Kaia. Ainda temos você. Você nunca estará sozinha.
Eu me perguntei se aquele Asher ainda se reconheceria hoje.
A irmã que ele jurou proteger? Ele a jogou para fora como se nunca tivesse importado.
Uma semana. Só faltava uma semana.
Depois, eu iria embora. Esperava que meus irmãos ficassem felizes com isso. Não parecia que eles ainda me viam como parte da família.
...
Sempre fui a mais inteligente. Primeira da classe. Nível de gênio em química e física. Enquanto meus colegas se alinhavam para vagas nas empresas da lista Fortune 500, eu não ligava.
Voltei para casa.
O negócio da família Renner não figurava exatamente nas listas da Forbes. Lidávamos com drogas, aquelas que não vêm com receita.
E eu? Era a mais jovem química de toda a nossa operação. Meu trabalho era simples: desenvolver novos produtos para inundar o mercado e encher os bolsos.
Meus irmãos nunca viram valor nisso. Para eles, ser química era um papel de apoio. A força, os negócios, a lavagem de dinheiro, isso é o que realmente importava. Que adianta uma fórmula se ninguém estiver movimentando o produto?
Nunca entenderam que, sem mim, não haveria nada para vender.
Mas eu já estava com um pé fora da porta, com uma semana para resolver os últimos detalhes. Isso significava terminar os testes finais do produto no laboratório. Me enterrei nas fórmulas, nos frascos, determinada a deixar o trabalho pronto antes de sair.
Quando tirei as luvas e saí do laboratório, já era bem depois da meia-noite.
Então me lembrei, ainda não tinha arrumado o meu antigo quarto na mansão.
Não morava lá há anos. Mas também nunca tinha me mudado oficialmente. Minhas coisas ainda estavam guardadas nas gavetas e nos armários.
Entrei na casa como um fantasma, subindo pela escada dos fundos em direção ao meu quarto.
— Você parece mais uma ladra do que alguém que já morou aqui. — Disse a voz de Asher, baixa e sem emoção, atrás de mim.
Virei-me.
— Desculpa. — Falei. — Só estou aqui para pegar minhas coisas.
Ele cruzou os braços e me olhou fixo.
— Você disse outro dia que estava indo testar novos produtos. Onde exatamente vai?
— Eu... — Meus olhos desviaram para trás dele. Sylvie tinha saído das sombras, me observando com uma curiosidade inocente.
— Só o velho laboratório em Cuba. — Falei, tranquila. — Nada demais.
— Boa. — Ele assentiu uma vez. — Faça seu trabalho direito.
Ele se virou para ir embora. Sylvie hesitou.
— Kaia. — Sussurrou ela, a voz baixa o suficiente para que só eu a ouvisse. — Quanto tempo você vai ficar fora?
— Muito tempo. — Observei o rosto dela se iluminar como se eu tivesse lhe dado um presente de Natal adiantado.
Asher olhou para trás.
— Sylvie, Kaia está te incomodando de novo?
— Não! — Ela balançou a cabeça, rápido demais. Então virou-se para mim com os olhos arregalados e um sorriso meloso. — Eu só não quero que a Kaia vá embora. E eu não posso ficar no quarto dela. Por favor, não mude de casa...
— Não se preocupe. — Falei, calmamente. — Não vou pedir o quarto de volta.
Jace subiu a escada, com os braços cruzados e um sorriso de deboche no rosto.
— Uau. Que dramática. Se você realmente vai embora, quem sabe só... vá. Poupe-nos do monólogo.
Não respondi. Apenas virei e entrei no meu quarto.
...
No momento em que pisei dentro do meu quarto, a verdade me atingiu com força.
Meus desenhos de infância ainda estavam no quadro de cortiça. Uma foto de família desbotada estava na mesa. No canto, meu vestido rosa de princesa do meu sétimo aniversário, ainda embalado em plástico, como se significasse algo.
Engoli em seco e comecei a trabalhar. Não havia tempo para lágrimas.
Quando terminei, já havia empacotado cinco caixas. Todo vestígio meu sumira. Até as pequenas marcas de lápis na parede, que marcavam a minha altura ao longo dos anos, estavam quase apagadas.
Eles ficariam felizes agora. A garotinha deles poderia finalmente se mudar, sem ser incomodada pelos meus vestígios.
Chamei James, meu guarda-costas, para carregar as caixas. Ele apareceu em minutos, levando tudo para o carro esperando.
Lá fora, a chuva já tinha começado. Suave, constante. Perfeitamente miserável.
Jace estava na porta, com os braços cruzados e uma expressão de superioridade, como se tivesse sido feita sob medida para ele.
— Melhor não vir se lamentando depois. Não vamos te dar o quarto de volta.
— Não vou. — Falei, nem me dando ao trabalho de olhar por cima do ombro.
Não olhei para a mansão pela última vez. Não olhei para Asher, Jace ou Noah. Mas senti os olhos deles nas minhas costas.
Uma pesada escuridão me envolveu enquanto James me pegava nos braços.
— Você está bem? — Perguntou ele, a voz baixa.
Balancei a cabeça, lutando para permanecer consciente.
— Sim. Sem preocupações.
James olhou para meus irmãos, numa expressão indecifrável, só então se voltou para mim.
— Vamos.
Mas, claro, eles não poderiam me deixar partir sem dar a última alfinetada.
— Hmm. — Noah disse, casualmente, como se fosse apenas mais uma conversa de jantar. — Então é por isso que você saiu correndo. Já está se envolvendo com o seu guarda? Kaia, estou desapontado.
Me encolhi.
— Eu não... — Minha voz mal saiu dos meus lábios.
James se endireitou, colocando-se na minha frente como um escudo humano.
— Somos amigos, Sr. Renner. Por favor, mostre respeito pela sua irmã, e por mim.
Asher bufou, a voz dele subindo com fúria.
— O que foi que você acabou de dizer? Você é só um guarda. Achou que merece respeito?
Eu puxei a manga de James, meus dedos se fechando ao redor do tecido como um pedido.
— Não.
Não lute com eles. Não vale a pena. Você só vai se machucar.
James olhou para mim, e a pena nos seus olhos atingiu-me mais forte do que qualquer insulto poderia. Perfurou-me como uma lâmina.
— Tudo bem. — Murmurou ele. — Não é como se eles importassem mais. Vamos embora...
— James! — Retruquei, puxando-o em direção à caminhonete.
Mas já era tarde.
O olhar de Noah se afiou.
— Vão embora? — Ecoou ele, tão calmo quanto sempre. — O que ele quis dizer com essas palavras?
— Nada. — Disse rapidamente. — Ele só está falando sobre minha viagem. Vou levá-lo junto.
Houve um brilho nos olhos de Noah, como se ele quisesse dizer algo mais. Como se talvez, só talvez quisesse que eu ficasse. Ou talvez fosse coisa da minha cabeça.
No fim das contas, por que ele iria querer que eu ficasse aqui? Eles já haviam se esquecido de que eu um dia fiz parte dessa família.