Ponto de vista de Kaia
— Eles vão se arrepender. — Disse James assim que entramos no carro, as portas se fechando atrás de nós como uma sentença final. — Desculpe se eu ultrapassei os limites. Eu só não consigo entender, que tipo de irmãos escolhem uma estranha em vez da própria irmã?
Eu fiquei olhando pela janela, observando a chuva embaçando o vidro.
— Eles nem sempre foram assim. — Sussurrei. — Já me trataram bem.
Eu fui uma surpresa. Um milagre tardio.
Meus pais já estavam mergulhados até o pescoço no império Renner quando eu cheguei, já na casa dos quarenta. Criar-me? Essa passou a ser tarefa dos meus irmãos.
Teve uma época em que eu me meti em confusão na escola, nada demais, apenas uma travessura estúpida. O diretor chamou meus pais, mas quem apareceu foi o Asher. Estava todo arrumado, a gravata torta, fingindo ser nosso pai.
Ele sempre me protegeu.
E o Jace? Ele era impulsivo, barulhento e leal da forma como só meninos mais novos conseguem ser. Certa noite, eu disse que queria ver estrelas cadentes. À meia-noite, ele me levou para fora, pela garagem, sabendo muito bem que o Asher o mataria se soubesse.
Deitamos na grama molhada do parque, contando estrelas como se tivéssemos todo o tempo do mundo.
Naquela época, eles eram o meu universo inteiro.
Então, pouco antes do meu décimo sexto aniversário, mamãe e papai viajaram para o que deveria ter sido uma viagem de negócios rotineira. Uma rápida reunião com algum líder de cartel no Sul. Nada de extraordinário.
O avião deles caiu. Ambos morreram na hora.
Foi o Asher quem trouxe os corpos de volta. Ele mal tinha trinta anos e, da noite para o dia, teve que se tornar a nova espinha dorsal do império Renner.
O homem mais confiável de papai, Ary, morreu com eles naquele dia. Ary tinha uma filha, supostamente da minha idade. O nome dela era Sylvie.
Então, meus irmãos a trouxeram para casa e me disseram que a trataríamos como uma de nós.
O que eles não sabiam, ou não se importaram em descobrir, era que a garota que trouxeram não era filha de Ary.
Ela era sobrinha dele. A doente, cujo nome verdadeiro era Anna.
Eu descobri isso por acaso, durante uma visita ao hospital. Seus registros.
A nova Sylvie descobriu que eu sabia. Ela e a mãe dela se empenharam ao máximo para apagar Anna e substituí-la por Sylvie. A versão nova e melhorada. A órfã piedosa que precisava de proteção. A garota com uma história de vida triste pela qual todos podiam se comover.
Eu contei para o Asher. Implorei para que ele investigasse mais a fundo.
Ele fez isso. E então, chegou em casa e me acusou de mentir.
— Não faça isso, Kaia. — Disse ele, a voz fria e cansada. — Não se transforme nessa garota; aquela que inventa histórias por inveja. Eu vi o arquivo da Sylvie. Ela é filha de Ary. E depois de tudo o que ela passou, devemos isso a ela. Se o pai dela não tivesse morrido salvando o nosso, ela ainda teria uma família de verdade.
Ele não via como a Sylvie havia se infiltrado em nossas vidas; uma mentira de cada vez.
Ela era inteligente, tenho que admitir isso. Inteligente o suficiente para saber exatamente como me colocar contra os meus irmãos. Como fazer-se de inocente quando me peguei a observando fuçar no escritório do papai. Pedi para ela sair, para respeitar aquele espaço.
Mas, claro, quando minhas palavras chegaram aos meus irmãos, estavam distorcidas. Retorcidas. E como eu aparentemente “menti uma vez”, foi fácil acreditar que eu mentiria novamente.
A Sylvie me reescreveu. Me transformou na mimada. Na rainha do drama.
E meus irmãos acreditaram em cada palavra.
Mesmo quando ela pulou na piscina congelada, no meio de dezembro, sem ninguém por perto, só eu; a culpa foi minha.
Eu a empurrei, aparentemente. Porque esse era o tipo de garota que eles acreditavam que eu era agora.
— Você está bem? — Perguntou James, ligando o carro, os olhos se voltando para mim entre as trocas de marcha.
— Estou. — Virei o rosto em direção à janela. Sequei as lágrimas em silêncio, os dedos trêmulos.
Faltavam apenas alguns dias. E então eu estaria fora.
Se eles não conseguiam honrar a minha verdade, então qual era o sentido de ser honesta?
Que ficassem com suas mentiras bonitinhas.
Eu tinha uma nova vida para construir, uma que não incluísse eles nela.
...
No dia seguinte, voltei para o laboratório Renner, de volta ao trabalho.
Eu estava quase terminando de finalizar o novo composto quando ouvi vozes ecoando pelo corredor.
Asher tinha trazido a Sylvie.
Eu já tinha dito ao Asher uma vez que, por mais que ele a mimasse, o laboratório era proibido para ela. Esse lugar guardava os projetos mais sensíveis da família Renner.
Não era um parque de diversões.
Mas a lógica nunca teve chance contra o desejo do Asher de mimá-la.
— Ela não pode estar aqui. — Disse, com firmeza, tirando os óculos de segurança enquanto saía de trás da divisória de testes. — Estamos no meio de ensaios de produtos.
— Eu sei. — Respondeu Asher, totalmente impassível. — Ela só queria dar uma olhada. Só isso.
Não discuti. Me afastei e fui até o terraço fumar um cigarro. Um vício ruim do qual raramente me entregava.
Quando voltei, o composto no qual estava trabalhando havia sumido.
Procurei em todos os lugares. Prateleiras mais altas. Gavetas de baixo. Finalmente encontrei; enfurnado bem no fundo da lixeira mais distante.
Minhas mãos tremiam enquanto eu pegava o frasco, o conteúdo arruinado.
Não havia câmeras. Muito do nosso trabalho era confidencial. Mas eu não precisava de gravações para saber quem havia feito aquilo.
Encontrei a Sylvie na sala de descanso, tomando uma xícara de chá como se fosse parte da mobília.
— Você jogou fora o novo composto? — Perguntei baixinho.
Sylvie piscou, depois sorriu. E, tão rápido quanto, seus lábios tremeram, os olhos se enchendo de lágrimas perfeitas e cintilantes.
— Por favor, Kaia... Eu não fiz nada...
A voz dela quebrou como porcelana. No momento exato, Asher apareceu, os passos apressados assim que a viu chorar.
— Que diabos você está fazendo? — Ele estourou comigo.
— Ela jogou nossa nova fórmula no lixo. Está inutilizável. Vamos ter que recomeçar.
A mandíbula dele se tensionou.
— Você tem provas?
— Eu—
— Se não tem, então não trate ela como uma criminosa. Está interrogando ela por nada.
— Porque eu sei. — Sibilei. — Mesmo que eu não possa provar, eu sei.
Asher se virou para a Sylvie, a voz dele suavizando.
— Foi você quem fez isso?
Ela fungou e balançou a cabeça.
— Não...
Isso foi o suficiente.
Se a nova fórmula não pudesse ser concluída antes de eu ir... talvez não fosse para ser.
Asher me alcançou perto do elevador. Andamos em silêncio, mas eu sentia os olhos dele em mim. Sempre me vigiando.
— Você tem estado estranha ultimamente. — Disse ele. — Olha, eu sei que você está chateada. Mas você não pode descontar isso na Sylvie assim.
Eu parei. Me virei para enfrentá-lo.
— Irmão. — Disse baixinho. — Você não precisa ficar criando desculpas para a Sylvie. Se ela não fez, tudo bem, eu estava errada. Mas se ela fez... o que exatamente você está protegendo?
Encarei-o sem hesitar.
— A ovelha? Ou o lobo em pele de ovelha?
O elevador fez o som do "ding" atrás de mim. Antes que ele pudesse responder, entrei e deixei as portas se fecharem.