Noah - Surpresa boa

NOAH

A verdade? Eu não tinha planejado levar Ella para lugar nenhum.

Mas, quando a vi pronta para sair — mochila nas costas, cabelo preso às pressas, expressão concentrada — algo em mim simplesmente… moveu. Um instinto, talvez. Um impulso. Ou apenas a necessidade de prolongar um pouco mais a sensação estranha que eu tive desde que voltei para casa.

Ella Monteiro não era mais a garotinha que corria pelos corredores com Olívia atrás dela.

Não era a adolescente tímida que mal conseguia olhar nos meus olhos sem corar.

Não.

A mulher que estava na minha frente tinha postura, firmeza, um olhar seguro… e um corpo que acendeu alerta em todos os cantos do meu cérebro.

Eu me odiava um pouco por perceber isso, porque Ella cresceu dentro da minha casa. Fui embora quando ela tinha treze anos. E agora, cinco anos depois… é como se eu estivesse conhecendo alguém completamente novo.

E eu não estava preparado.

— Posso te levar — disse, antes de pensar.

Ela tentou recusar. Claro que tentou. Ella sempre foi orgulhosa, sempre quis ser independente, sempre odiou dar trabalho. Mas eu insisti. Não sei se foi ego, culpa, ou apenas uma vontade estúpida de ficar perto dela — mas insisti.

Agora, enquanto ela entra no meu carro e afivela o cinto, tento agir como um ser humano normal. Só que é difícil.

Ella mexe em uma mecha de cabelo solta, mas o faz com uma delicadeza involuntária que chama minha atenção. E eu desvio o olhar antes de me perder em coisas que não posso — e não devo — sentir.

Dou partida no carro.

— Então, você está estudando Administração... — digo, tentando puxar conversa.

— Sim, mas não precisa fingir que se interessa pela minha vida... — Ela dá um sorrisinho de canto, mas sem olhar diretamente pra mim.

E eu sorrio também.

— Não tem graça se você não contar nada.

Ela finalmente me encara por meio segundo. Um olhar rápido, quase defensivo.

— Não tem muito o que contar, Noah. Eu estudo, faço estágio na área e trabalho com a minha mãe à tarde… e só.

— Trabalha demais — murmuro, sem pensar.

— E você que acha pouco.

Ok. Touche.

Ella sempre teve essa coisa… essa sinceridade afiada que me desmonta porque ela não diz pra ferir — diz porque não sabe ser diferente.

— Não é isso — respondo, dirigindo sem tirar os olhos da pista. — É que você merecia ter outra rotina. Fazer só o que quisesse fazer.

Ela ri. Um riso curto, quase irônico.

— Isso é coisa que rico fala. Eu faço o que preciso, não o que quero.

Engulo seco.

Não sei por quê, mas a frase me atinge mais do que deveria.

***

O resto do caminho é silencioso, mas não é um silêncio sujo, desconfortável. É um silêncio… atento. Um tipo de tensão que cresce devagar, quase imperceptível, mas que está ali.

Quando estaciono na frente da faculdade, Ella segura a mochila e hesita antes de abrir a porta.

— Obrigada pela carona.

— Sempre que quiser.

Ela abre a porta. Mas antes de sair, olha pra mim rápido — como se pensasse, como se reconsiderasse. E é suficiente para meu peito apertar de um jeito perigoso.

— Boa noite, Noah — diz, com uma voz baixa demais.

— Boa aula, Ella.

Ela sai. E eu fico ali olhando até ela desaparecer no movimento da calçada.

E, pela primeira vez desde que voltei… sinto que alguma coisa dentro de mim se deslocou.

***

No dia seguinte...

A empresa do meu pai sempre foi o motivo central das nossas conversas — ou discussões. É um império. E, desde que nasci, estava definido: um dia seria meu.

Chego cedo. Meu pai já está na sala de reuniões, como sempre. Determinado, rígido, dono do mundo.

— Noah — ele diz, apertando minha mão. — Hoje é um dia importante.

— Eu sei.

— Helena Ferraz virá à tarde conversar sobre a expansão internacional.

Sinto os ombros travarem por um segundo.

Helena.

Claro.

— Certo — murmuro.

Meu pai me dá um olhar avaliador, como se quisesse medir minha reação. Como se esperasse entusiasmo. Não recebe nenhum.

O dia segue frenético. Reuniões, apresentações, dados, funcionários novos. As horas passam e, mesmo com o ritmo acelerado, algo permanece latejando no fundo da minha mente.

Ella.

O jeito que ela segurava a mochila.

A forma como desviava o olhar sempre que eu chegava perto demais.

O silêncio carregado dentro do carro.

E… a pergunta inevitável:

Ela está tentando evitar alguma coisa? Ou está sentindo a mesma tensão que eu senti?

É ridículo eu pensar nisso no meu primeiro dia oficial na empresa da família. Mas quanto mais tento ignorar, mais forte fica.

Na hora do almoço, entro no refeitório executivo — um espaço cheio de vidro, jardim japonês do lado de fora, mesas elegantes. Moderno. Frio.

E é justamente ali que eu a vejo.

Ella.

Com uma bandeja simples nas mãos, caminhando para a mesa dos funcionários do administrativo. Ela está rindo de algo que uma colega disse, e por um segundo, tudo em volta perde o foco.

Meu peito aperta.

Caralho.

Eu não sabia que ela estava ali. Nunca associei que, com o estágio da faculdade, ela poderia trabalhar aqui. No império do meu pai. No meu futuro escritório.

E ela está tão à vontade naquele ambiente… tão diferente da casa onde nos cruzamos sempre com memórias, regras, limites.

Aqui, ela parece outra versão de si mesma. Mais livre. Mais viva. Mais… distante de mim.

Ela me vê.

Congela.

Eu também.

O tempo para.

Um segundo.

Dois.

Três.

Ella desvia o olhar primeiro.

E isso me inquieta mais do que deveria.

Meu pai aparece ao meu lado, sem perceber nada.

— A equipe do administrativo é talentosa, mas tem alguns estagiários dispersos — comenta como se estivesse analisando objetos. — Se algum deles não performar, descartamos.

Meu sangue ferve.

— Estagiários não são descartáveis — respondo, firme demais.

Ele me olha, surpreso.

Mas eu nem penso antes de completar:

— E alguns trabalham mais que muita gente aqui dentro.

Meus olhos voltam para Ella.

Ela está tentando fingir que não me vê.

E falhando.

Meu pai começa a falar sobre números, contratos, expansão… mas tudo o que consigo sentir é a tensão crescente que está prestes a explodir entre nós dois.

Ella não é mais a menina que eu deixei para trás.

E eu não sou o homem que deveria estar tão afetado por ela.

Mas estou.

E alguma coisa me diz que isso vai custar muito mais do que uma simples carona.

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