Kyra
Acordei no meio da madrugada com meu celular vibrando ao meu lado, atendi com urgência pensando ser algo importante, mas era apenas o banco me lembrando que tenho dívidas. A janela do quarto estava entreaberta, e o vento frio estava me congelando. Eu sabia que não estava em minha casa — se é que algum dia eu tive uma casa — mas, ainda sim, tive a ousadia de descer até a cozinha. — Deveria estar dormindo. Amanhã será um longo dia. Julie tem bastante tarefas ao decorrer do dia. — Blackthorne estava parado, de costas para mim, sem camisa e com um copo de whisky na mão. — Desculpe, eu desci apenas para tomar água, mas já vou subir. — Confesso que nao era sede que eu tinha, era ansiedade e solidão. Fiz menção em subir de volta para o quarto, mas fui interrompida antes mesmo de pisar no segundo degrau. — O que te trouxe até aqui, Kyra? — Não era uma pergunta sobre como eu estava na cozinha, mas em como eu consegui transformar minha vida nessa merda que é hoje. — Eu... eu precisava sobreviver, assim como todo ser humano. E você sabe, quem não nasce rico, tem que se virar na vida. — Não deixava de ser verdade, mas não era por isso que eu me encontro nesta situação. Antes de viver essa merda de vida, eu tinha um bom emprego em uma boa empresa. Tinha uma casa, amigos e achava que tinha um bom namorado ao meu lado, mas tudo que eu tinha eram pessoas que sabiam de tudo que Marcelo fazia comigo. Vídeos e fotos íntimas vazadas em grupos, filmadas sem que eu soubesse de nada... e tudo que me restou foi vergonha, humilhações e o abandono da minha própria mãe. A vida dele era completamente o oposto da minha. E sabe, eu tenho que pensar antes de falar com ele, porque tenho medo de me perder nas palavras e acabar falando algo que não deveria ser dito. — Nem sempre as coisas foram fáceis para mim, Kyra. Você não sabe nada sobre mim. Você é apenas a babá da minha filha e nem pense que poderá ser mais que isso. — Eu também prefiro colocar culpa na bebida. — De fato, senhor Blackthorne. Eu não sei nada sobre o senhor, sou apenas babá da sua filha e jamais irei me envolver em sua vida, senhor. Peço desculpas se vim en uma má hora. Já estou voltando para o meu quarto. — Você não tem nada aqui, Kyra. O quarto não é seu, é apenas temporário. — Desculpe, eu pensei que fosse permitido que eu dormisse aqui até que... — Até que o quê? Na sua descrição eu nao li que você estava precisando de um lugar para morar. Afinal, o que você é, Kyra? O que você acha que eu sou? Acha que pode substituir a Ana? Eu não respondi, apenas subir, troquei de roupas, peguei minha mochila e desci novamente. Eu estava cansada de ser tratada como lixo, mas ainda tenho a liberdade de poder sair. Ele ainda estava na cozinha quando passei ao lado. — São quase 02h da manhã, onde está indo? — Até mais tarde, senhor Blackthorne. Estarei aqui às 06h em ponto, não se preocupe. — Sair depressa, antes que ele dissesse mais alguém coisa. Agora, definitivamente eu estou sozinha, andando pelas ruas, sem saber o que fazer e sem uma casa para voltar. Assim que comecei a trabalhar, fui despejada do apartamento em que estava morando, devido aos atrasos dos aluguéis. Queria largar esse emprego, mas é a unica coisa que eu tenho no momento, a unica fonte de renda eu posso ter. Liam Não a vi retornar, mas a vi chegando no horário exato. Sem nenhum minuto de atraso. Sem nenhuma explicação e sem nenhuma palavras além do "obrigatório". Ela estava sentada à mesa com Julie, a observando tomar seu café da manhã enquanto penteada seus cabelos, enquanto ela levava a colher de cereal a boca e ria. Eu apenas observava de longe, sem que me vissem. — Eu gosto quando você pentea meus cabelos, Kyra. Você tem a mão levinha. — Minha filha estava radiante, como eu não a via há dias. — Eu também adoro pentear seus cabelos, pequena. Eles parecem cabelos de fadas. — Carinhosamete, Kyra alisou seu rosto, como se ja conhecesse cada detalhe do mesmo. Então eu apareci. Era meu dia de folga, como eu havia avisado, antes de contratar Kyra. Ao me verem ali, as duas ficaram sérias no mesmo instante. — Bom dia, senhor Blackthorne. — Kyra levantou-se e ficou de pé. Julie apenas continuou comendo como se eu fosse um peso ali. — Bom dia, Kyra. Bom dia Julie. Estava pensando em levá-las para um passeio, o que acham? — Um passei no parque, papai? Com cupcake e suco de maçã? — Kyra não respondeu e nem me olhava nos olhos. — Claro. Hoje você escolhe tudo. — Beijei sua testa e esperei alguma reação de Kyra, mas ao invés de concordar comigo, fez o contrário. — Posso falar com o senhor, Blackthorne? — Sua voz soou gentil, mas eu sabia que era por causa de Julie ali. Andamos pelos corredores até chegar no escritório, e então percebi o quão silenciosa era aquela casa e o quanto eu me arrependo pelo que disse ontem. Estava fora de mim, não pensei antes de falar e o pior: ela esta agindo como se estivesse tudo bem. Após entrarmos, fechei a porta e fiz menção para que ela sentasse, mas a mesma segurou e foi direto ao ponto. — Eu quero me desculpar por ontem. Eu estava cansada, mas sempre soube o meu lugar. E, quero lhe pedir que não me faça ir ao parque. O senhor deixou claro no contrato: quando ela estiver comigo, a presença da contratada não será necessária. E... quero perguntar se o senhor poderia adiantar meu salário. Eu sei que tenho apenas alguns dias, mas eu juro que não irei sumir, senhor. Seus olhos estavam perdidos, como se buscasse palavras certas para explicar-se. — Quero me desculpar por ontem, Kyra. Eu nao costumo agir assim. Eu... estava... perdido e casado. E peço que quebre algumas regras, Julie adora você. — Eu também adoro sua filha, mas também fui avisada sobre regras. — Ela era desafiadora, e isso me fazia querer possuí-la mais do que eu gostaria de admitir. — Precisa que eu esteja de volta à que horas, senhor Blackthorne? Ouvir meu nome sair de sua boca era tentador, mas também irritante. Eu sentia a provocação em seus lábios. Via sua inocência e vazio, tudo nos mesmos olhos azuis que ela tinha. — Pare de me chamar de senhor, por favor. Achei que fosse organizar seu quarto para voltar. Me desculpe, não haverá mais cenas como aquela. Eu juro. Ela iria contestar, mas peguei o telefone e fiz a transferência de cinco mil dólares para sua conta. Eu deveria me desculpar apenas com palavras, mas o útil sempre se une ao agradável. Lhe mostrei o comprovante e ela me olhou, desta vez, fixo o bastante em meus olhos. — Espero que aceite como desculpas. Obrigada por ter voltado, eu não saberia mais o que dizer a Julie. — Eu não vou me demitir se é o que o senhor espera. Até lá, ficarei ao lado da sua filha por um bom tempo. Ela não falou mais nada, mas antes de sair, olhou para mim e disse: — Eu não ocupar mais seu espaço. Jamais quero tomar o lugar da sua esposa, senhor Blackthorne. Estarei de volta antes das 16h. E assim ela se foi... ajudou Julie a se vestir, arrumou sua mini mochila com bastante capricho, que eu jamais conseguiria fazer. Estava colocando Julie na cadeirinha e a vi saindo, com sua mochila surrada e passos rápidos como se estivesse correndo de alguém. Eu não queria fazer isso, mas não tive escolhas e acabei a seguindo. Ela pegou um táxi e parou não muito longe. Entrou em um prédio — velho e quase caindo para o lado, com o aspecto de que pode desabar a qualquer momento —, estava com cartarez escrito: aluga-se apartamento. Ela não demorou para sair dali, mas saiu feliz e saltitando enquanto andava. Girando as chaves nos dedos, então me caiu a ficha. Ela não tinha para onde ir na madrugada. Saiu por orgulho e por orgulho vai sair de vez. Uma tremenda burrice minha.